Procuradora: “Vamos ver se muda a visão que
a ditadura do Brasil foi a que menos matou”
Com a experiência de
quase 30 anos de Ministério Público Federal (MPF) e de 23 anos lidando com
justiça de transição, a atual presidenta da Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos (CEMDP), Eugênia Augusta Gonzaga, em entrevista à
Agência Pública, defendeu que o Brasil deveria mudar a forma como conta seus
mortos e desaparecidos na ditadura militar (1964-1985).
“Se nós formos
computar as pessoas atingidas pelos atos de exceção, a gente passa facilmente
do número de 10 mil mortos e desaparecidos políticos no Brasil”, afirmou. Para
ela, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi muito conservadora ao listar
somente 434 mortos e desaparecidos políticos em seu relatório, publicado em
2014. “Vamos ver se a partir de agora a gente consegue modificar essa visão que
o Brasil tem de que a ditadura brasileira foi a que menos matou na América
Latina.”
A procuradora regional
da República voltou à presidência da CEMDP em agosto deste ano, cargo que já
havia ocupado entre 2014 e 2019, e afirma que a CNV adotou os critérios
previstos na Lei de Mortos e Desaparecidos Políticos, de 1995. Com isso, “não
conseguiu computar, por exemplo, camponeses, indígenas, vítimas de esquadrão da
morte e do surto de meningite, por exemplo”.
“A Lei sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos foi negociada com os militares em 1995 e estabeleceu o
reconhecimento da morte, mas não reconheceu que o governo matou essas pessoas”,
explica Gonzaga. Segundo a presidenta da CEMDP, pela lei que criou a comissão,
para que uma vítima seja reconhecida como morta ou desaparecida política, seria
necessário que a ocorrência fosse parte da resistência à ditadura militar e “a
família tinha que demonstrar que essa pessoa estava ligada de algum modo a
algum ato de resistência política”.
Em 2002 foi criada a
Comissão de Anistia, cujo critério é mais elástico e prevê indenizações para
pessoas atingidas pelos atos de exceção. “Então, por exemplo, eu era
professora, me demitiram porque eu tinha um livro proibido [pela ditadura]. Eu
não era militante política, mas fui atingida e posso ser anistiada. No Chile e
na Argentina, houve milhares de mortes. Todos os mortos eram militantes
políticos? Não. É o critério desses países que foi muito mais abrangente, como
o adotado em 2002 no Brasil. O critério de 1995 foi muito restrito. E,
infelizmente, a Comissão Nacional da Verdade seguiu o critério de 1995. Por
isso, a CNV não conseguiu mudar esse cenário de que o Brasil teve apenas essas
centenas de mortos e desaparecidos políticos”, explica a procuradora.
“Claro que para fins
criminais você tem que ter essa individualização. Agora, para fins de memória e
verdade, a gente não tem que ter esse detalhamento. Por exemplo, as crianças
que foram vítimas do surto de meningite em São Paulo e cujos corpos foram ‘desaparecidos’
na vala de Perus. Eu tenho como certo que são pessoas atingidas por atos de
exceção. Entendo que todos são mortos e desaparecidos políticos, porque havia
uma política de extermínio”, afirma.
O volume 2 do
relatório da CNV traz relatórios resultantes dos trabalhos sobre camponeses e
indígenas. A estimativa é que “pelo menos” 8.350 indígenas, por exemplo, tenham
sido mortos durante a ditadura. Porém, justamente por conta de todos esses
casos não estarem individualizados (o que era exigido pela lei que criou a
CNV), fato que se repetiu na pesquisa sobre camponeses, o relatório da comissão
não incorporou esses casos à lista oficial de 434 mortos e desaparecidos: o
volume 3 do relatório, que traz a biografia de cada uma das vítimas.
Em março de 2024, o
ex-deputado federal e ex-preso político Gilney Viana, pesquisador colaborador
da Universidade de Brasília (UnB), concluiu uma pesquisa que aponta que 1.654
camponeses foram mortos entre 1964 e a promulgação da Constituição de 1988. O trabalho
de Viana avança em relação às conclusões da Comissão Camponesa da Verdade, que
encerrou seus trabalhos em 2015, apontando 1.196 vítimas camponesas no período.
• Identificação de vítimas ainda é
possível
Eugênia Gonzaga
participou do trabalho de investigação que identificou os restos mortais de
cinco desaparecidos desde 2005: Flavio Carvalho Molina, Luiz José da Cunha,
Miguel Sabat Nuet, Dimas Casemiro e Aluísio Palhano. Há ainda 208 desaparecidos
cujos corpos nunca foram identificados e ela afirma ser possível ir além nesse
trabalho. “Há dois ou três casos com alta probabilidade” entre as ossadas
encontradas na vala de Perus, que estão sob os cuidados do Centro de
Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf), da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp).
“É aquele caso que
você não pode dizer 100% de certeza com base no DNA, mas pode bater com uma
marca de arma de fogo, com informações de outros familiares e, se fizer
diligências complementares, pode chegar a um resultado positivo. Então nós
temos pelo menos, eu acho, mais dois ou três casos nessa situação”, explica
Gonzaga. A CEMDP também espera fazer análises de DNA nos restos mortais
encontrados no Araguaia, onde lutou uma guerrilha do PCdoB nos anos 1970 que
foi praticamente dizimada pelas Forças Armadas.
“Nós temos diligências
também para fazer em outros cemitérios, no Rio de Janeiro, no Recife. Sendo bem
objetiva: a resposta é sim. Não vamos conseguir identificar centenas, mas com
certeza a gente vai conseguir identificar mais pessoas”, afirmou.
Não será possível
identificar todos os desaparecidos, mas a presidenta da comissão afirma que a
CEMDP deve investir em outras iniciativas de memória e verdade, tais como a
retificação de assentos de óbito de mortos e desaparecidos políticos para que
esses registros apontem a real circunstância da morte das vítimas da repressão.
Ela apoia também reparações coletivas que vêm sendo apreciadas pela Comissão de
Anistia.
• Reparação vai além do financeiro
Outra possibilidade de
reparação que não envolve indenizações são placas e memoriais, o que pode ser
um alento em casos em que não foi possível localizar os restos mortais da
vítima, como o do ex-integrante da Ação Libertadora Nacional (ALN) João Leonardo
da Silva Rocha (1939-1975), assassinado pela Polícia Militar baiana e enterrado
no cemitério de Palmas de Monte Alto, no sertão da Bahia.
Depois de ter sido um
dos presos trocados, em setembro de 1969, pela libertação do embaixador
americano Charles Burke Elbrick, Rocha passou pelo México e Cuba. Na ilha
comunista, ele passou a integrar o Movimento de Libertação Popular (Molipo), de
José Dirceu, e, em 1971, retornou ao Brasil para viver no interior de
Pernambuco. Depois de alguns anos sem ter realizado nenhuma ação de guerrilha,
ele mudou-se para a Bahia, onde foi morto pela PM e acusado de ter se tornado
um pistoleiro, o que nunca foi provado. Ele foi enterrado no cemitério da
cidade, mas investigações da CNV, em 2014, e da CEMDP, em 2017, não permitiram
precisar a localização exata de sua sepultura devido à desorganização e à falta
de registros do cemitério da cidade.
“Eu acredito também
que é uma forma de reparação a gente ter locais simbólicos de sepultamento,
porque a gente sabe que em muitos casos, infelizmente, os corpos pereceram. O
importante é a revelação da verdade e registrar isso de algum modo, ainda que
seja por meio de placas e outros monumentos. Isso faz parte, sim, do escopo da
nossa comissão, sem prejuízo para outros espaços de memória que estão sendo
trabalhados pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, por meio da
Assessoria Especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade (coordenada por
Nilmário Miranda), como, por exemplo, a transformação da Casa da Morte, em
Petrópolis, e do antigo DOI-Codi, aqui em São Paulo, em espaços de memória. Uma
coisa não inviabiliza a outra”, diz.
• Falta de padronização de leis favorece a
falta de respostas
As constantes
pesquisas e buscas em cemitérios permitiram a Eugênia Gonzaga acumular
conhecimentos e ter propostas para reduzir os desaparecimentos no futuro. Ela
questiona a ausência de uma lei federal sobre exumações de pessoas enterradas
sem identificação ou não reclamadas por familiares, os chamados indigentes.
Atualmente, cada município tem suas regras.
No passado, essa
flexibilidade beneficiou “operações limpeza” realizadas por agentes da
repressão, que exumavam os restos mortais de “inimigos do regime” nas
datas-limite previstas pelas legislações municipais e colocavam esses restos
mortais em outras áreas dos cemitérios, como valas comuns (casos dos cemitérios
de Perus e Vila Formosa, em São Paulo) e gavetas e columbários, como pesquisa
da CNV indicou que ocorreu no Rio de Janeiro.
“Infelizmente, isso
acontecia no passado e acontece até hoje. No Rio de Janeiro, o que eu notei no
cemitério Ricardo de Albuquerque é que, passados três, quatro, cinco anos, eles
simplesmente eliminam aquelas ossadas não reclamadas. E se a família não sabe?
Não tem uma legislação nacional que previna esse tipo de coisa. Não é que você
não vai encontrar desaparecidos de 40 anos atrás, você não vai encontrar
desaparecidos de dez anos atrás. Infelizmente, essa falta de cuidado favorece
muito o desaparecimento”, afirma.
• Trabalho ainda enfrenta dificuldade de
recursos
A presidenta da CEMDP
afirma que terá que buscar emendas parlamentares para realizar a identificação
de restos mortais. Como a comissão não é um órgão independente na estrutura do
Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, ele recebe uma fatia do já
pequeno orçamento da pasta. Contudo, Gonzaga pode buscar turbinar os recursos
da comissão com emendas dos poucos parlamentares simpáticos à causa. “Foi com
emendas que a gente conseguiu fazer o que fizemos”, afirma.
Além disso, a gestão
da CEMDP contará com um saldo de um contrato ainda em vigor com o Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), para pagar as análises iniciadas.
Outro trabalho, já em
andamento, é reverter o tempo perdido nos últimos cinco anos em que a CEMDP
ficou praticamente paralisada. Apesar de extinta em 2022, no apagar das luzes
do governo Bolsonaro, a comissão foi cozinhada em banho-maria desde agosto de 2019,
quando Gonzaga foi demitida. Um grupo simpático a Jair Bolsonaro, que quando
deputado dizia que “quem procura osso é cachorro”, assumiu a comissão e formou
maioria, travando os trabalhos e arquivando casos, a ponto de dar como
encerrados os trabalhos da comissão , levando à extinção do órgão com apenas
uma canetada do ex-presidente.
“A única maneira de
extinguir qualquer coisa era arquivando. Tanto é que todos os arquivamentos que
eles fizeram, a gente já está conseguindo desarquivar, porque está tudo
registrado. Eles não teriam como apagar, sumir com provas. A questão maior é
que eles não fizeram o que precisava fazer. O principal dano foi o de paralisar
diversas atividades. Eles só faziam o absolutamente essencial, decorrente de
decisão judicial, que era o caso de Perus, por exemplo. Houve uma questão
financeira também, tentaram usar os recursos da comissão para outras pautas que
não fossem do desaparecido político, mas isso não foi possível porque eram
verbas já carimbadas dentro do projeto com o Pnud”, diz.
Fonte: Por Marcelo
Oliveira, em Agência Pública
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