quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Saúde Única: prevenir agora, proteger sempre

O impacto devastador da pandemia de Covid-19 revelou a fragilidade dos sistemas de saúde ao redor do mundo e a necessidade urgente de implementar estratégias mais eficazes e integradas para enfrentar riscos futuros. Ganha força a demanda pela adoção de um novo paradigma que reconheça a interdependência entre a saúde humana, animal e ambiental: o conceito de Saúde Única. Este artigo apresenta as bases desse conceito, que defende a colaboração entre atores e saberes para prevenir pandemias e minimizar os efeitos de crises sanitárias.

•        Quais são os custos de remediar e de prevenir uma pandemia?

A pandemia de Covid-19 resultou em consideráveis perdas humanas e econômicas em escala global. Conforme apresentado por Dobson et al. (2020), a perda do Produto Interno Bruto (PIB) global em decorrência da pandemia foi estimada em US$ 5,6 trilhões, enquanto o valor das vidas perdidas, calculado com base no valor de uma vida estatística, variou de US$ 2,5 trilhões a US$ 10,2 trilhões, dependendo das estimativas de mortalidade e dos métodos de valoração. Ao combinar esses fatores, os custos econômicos totais da pandemia alcançaram até US$ 15,8 trilhões, superando amplamente o montante que teria sido necessário para a implementação de medidas preventivas.

Os custos das ações preventivas, quando comparados aos prejuízos causados pela Covid-19, revelam um desequilíbrio substancial e a urgência de adotar estratégias preventivas para mitigar futuras pandemias. Estima-se que os custos brutos anuais para a implementação de programas globais destinados à redução do transbordo zoonótico, ao aprimoramento da detecção precoce e à mitigação do desmatamento variam entre US$ 22 bilhões e US$ 31,2 bilhões. Tais despesas abrangem uma gama de ações, como o monitoramento do comércio de vida selvagem (até US$ 750 milhões anuais), a redução do desmatamento (até US$ 9,59 bilhões anuais) e o fim do comércio de carne de caça na China (estimado em US$ 19,4 bilhões anuais).

Ademais, os benefícios adicionais proporcionados pelas medidas preventivas, como a diminuição das emissões de CO2 em decorrência da redução do desmatamento — responsável por uma diminuição de 118 milhões de toneladas anuais de emissões de CO2 —, poderiam gerar uma economia adicional de US$ 4,31 bilhões em custos sociais relacionados às mudanças climáticas, reduzindo ainda mais os custos líquidos de prevenção para valores entre US$ 17,7 bilhões e US$ 26,9 bilhões anuais.

A diferença significativa entre os custos de prevenção e os prejuízos totais causados pela pandemia evidencia a eficiência econômica de investir em medidas preventivas. Para alcançar o equilíbrio dos custos, uma redução de apenas 26,7% na probabilidade anual de ocorrência de uma pandemia já justificaria o gasto com prevenção, isto é, reduzir a probabilidade de uma pandemia de 1% para 0,733%. Em outros cenários, a redução necessária na probabilidade varia de 11,8% a 75,7%, conforme as suposições relativas aos custos preventivos e reativos. Portanto, os dados demonstram que as medidas preventivas não apenas são viáveis economicamente, mas também imprescindíveis para evitar os custos financeiros e sociais massivos decorrentes de pandemias.

<><> Como reduzir o risco de futuras pandemias?

O conceito de Saúde Única oferece uma resposta sistêmica aos desafios interconectados das crises globais de saúde, particularmente aqueles relacionados às doenças zoonóticas, como a Covid-19 (Rabinowitz et al., 2018). A abordagem de Saúde Única enfatiza as complexas interações entre a saúde humana, animal e ambiental, sugerindo que considerar os riscos à saúde em um desses domínios requer uma compreensão integrada e intervenções nos três. Esse conceito tem sido cada vez mais considerado essencial para a gestão de doenças infecciosas emergentes, muitas das quais têm origem zoonótica, ou seja, transmitem-se de animais para humanos.

 De acordo com o Painel de Alto Nível de Especialistas em Saúde Única (OHHLEP, na sigla em inglês), essa perspectiva é definida como “uma abordagem integrada e unificadora que visa equilibrar e otimizar de forma sustentável a saúde de pessoas, animais e ecossistemas. Reconhece-se que a saúde dos seres humanos, animais domésticos e selvagens, plantas e do ambiente mais amplo, incluindo os ecossistemas, está estreitamente ligada e é interdependente” (OHHLEP, 2022).

Esse modelo não apenas reconhece as interrelações entre esses sistemas, mas também destaca a necessidade de colaboração multissetorial e comunicação transdisciplinar para enfrentar os desafios globais de saúde mais urgentes. Conforme observado por De Castañeda et al. (2023), Saúde Única vai além da prevenção de doenças zoonóticas, abrangendo também questões como a resistência antimicrobiana, as mudanças climáticas e a perda de biodiversidade.

Os princípios fundamentais de Saúde Única, conforme destacados pela OHHLEP, incluem equidade entre atores e saberes, gestão responsável e equilíbrio socioecológico, propondo uma estratégia sistêmica e sustentável para enfrentar os desafios de saúde. Ao adotar essa visão, Saúde Única alinha-se a conceitos como o de Saúde Planetária, que foca na relação mais ampla entre sustentabilidade ambiental e saúde humana. Enquanto a Saúde Única está diretamente preocupada com a interface entre a saúde humana, animal e ambiental, a Saúde Planetária adota uma perspectiva mais antropocêntrica, ao destacar como a degradação ambiental ameaça o bem-estar humano.

Dessa forma, a visão da Saúde Planetária sublinha a importância do desenvolvimento sustentável e da conservação ambiental para proteger a saúde humana frente às mudanças climáticas, perda de biodiversidade e poluição ambiental (De Castañeda et al., 2023). Esse escopo mais amplo complementa o foco da Saúde Única nas ameaças imediatas zoonóticas e antimicrobianas, criando uma estrutura abrangente que une saúde, conservação ambiental e sustentabilidade.

<><> Por que Saúde Única pode ser uma política estratégica?

A Saúde Única representa uma transformação essencial na maneira como lidamos com os desafios globais de saúde. Para compreender por que esse conceito se apresenta como a resposta mais eficaz, é fundamental reconhecer as complexas interconexões entre os diferentes domínios da saúde e avaliar as alternativas que a Saúde Única oferece.

Uma das razões centrais para a relevância do arcabouço da Saúde Única é sua capacidade de enfrentar as doenças zoonóticas, isto é, doenças infecciosas que passam de animais para humanos. Nas últimas décadas, houve um aumento notável no número de surtos de doenças zoonóticas, como o vírus do Nilo Ocidental, Ebola, SARS e, mais recentemente, Covid-19. Essas doenças estão frequentemente associadas às mudanças ambientais impulsionadas por atividades humanas, como desmatamento, comércio de vida selvagem e expansão agrícola. Por exemplo, o desmatamento aumenta o contato entre humanos e animais selvagens, criando caminhos para que vírus sejam transmitidos às populações humanas. As doenças zoonóticas refletem as interações complexas entre os ecossistemas e a saúde humana e animal.

A abordagem da Saúde Única lida diretamente com essas dinâmicas ao reconhecer que a saúde humana não pode ser isolada da saúde dos animais e do meio ambiente. Nessa perspectiva, prevenir futuras pandemias requer estratégias que não apenas enfoquem o sistema de saúde e as populações humanas, mas também a proteção dos ecossistemas e a regulamentação das práticas que impactam a vida selvagem. Uma maneira seria regular o comércio de vida selvagem e prevenir o desmatamento para reduzir o risco de emergência de doenças zoonóticas. Sem abordar esses fatores ambientais, qualquer tentativa de controle dessas doenças será incompleta.

•        Mudanças climáticas e sustentabilidade ambiental

Outro componente crítico da perspectiva da Saúde Única é seu foco na sustentabilidade ambiental. A saúde humana está intrinsecamente relacionada aos sistemas ambientais, e a degradação desses sistemas – por meio da poluição e do desmatamento — representa ameaças significativas tanto para a saúde humana quanto animal. As mudanças climáticas estão associadas a eventos climáticos extremos, elevação do nível do mar e alterações nos vetores de doenças, todos capazes de exacerbar crises de saúde pública.

A Saúde Única reconhece que promover a sustentabilidade ambiental é fundamental para garantir a saúde a longo prazo de humanos e animais. Nesse sentido, não se trata apenas de prevenir doenças; ela também defende políticas e práticas que protejam os ecossistemas naturais e mitiguem os efeitos das mudanças climáticas. Essa visão incentiva práticas agrícolas sustentáveis, redução da poluição e esforços de conservação como formas de criar um ambiente global mais saudável e resiliente. Sem essas medidas, a saúde de humanos e animais continuará a deteriorar-se.

•        Segurança global em saúde

A Covid-19 ressaltou a importância da segurança global em saúde. Doenças infecciosas não estão confinadas por fronteiras nacionais, e a saúde de uma nação pode rapidamente causar impacto à comunidade global. A Saúde Única promove a segurança global de saúde ao encorajar sistemas de detecção precoce e ao fomentar a colaboração entre áreas do conhecimento – saúde pública, epidemiologia, medicina veterinária, ciências ambientais, políticas públicas, ciências dos dados. Essa abordagem colaborativa permite a identificação oportuna de ameaças emergentes e a rápida implementação de medidas de controle.

Programas de vigilância que monitoram a vida selvagem e o gado em busca de novos patógenos podem servir como um sistema de alerta precoce para o surgimento de doenças. Esses programas podem detectar doenças zoonóticas antes que elas se espalhem para populações humanas, proporcionando às autoridades de saúde uma vantagem na contenção de possíveis pandemias. A Saúde Única também defende um diálogo mais constante e a cooperação entre governos nacionais, organizações internacionais e comunidades locais para garantir que surtos de doenças sejam geridos de forma rápida e eficaz.

•        Resistência antimicrobiana

Outro desafio importante que a Saúde Única enfrenta é a resistência antimicrobiana (RAM). O uso excessivo de antibióticos, tanto na saúde humana quanto na agricultura animal, levou ao desenvolvimento de cepas resistentes de bactérias, representando uma séria ameaça à saúde pública. O uso generalizado de antibióticos na criação de gado, em particular, contribuiu significativamente para a crise da RAM, pois bactérias resistentes podem ser transmitidas de animais para humanos por meio do contato direto, do consumo de alimentos ou da contaminação ambiental.

A Saúde Única atua nessa questão ao promover o uso responsável de antibióticos. Ela incentiva a adoção de políticas que limitem o uso de antibióticos na agricultura e fortaleçam as regulamentações sobre o uso de antibióticos tanto em humanos quanto em animais. Ao enfrentar a RAM de múltiplos ângulos – medicina humana, saúde animal e gestão ambiental –, a Saúde Única oferece uma solução abrangente para essa crescente ameaça global à saúde.

<><> Quais fatores considerar na formulação de uma política de Saúde Única?

Para formular uma política de Saúde Única, é essencial adotar estratégias que integrem diversas áreas do conhecimento e atores envolvidos no enfrentamento das questões de saúde. Com base na Teoria da Mudança, a seguir está um esboço dos aspectos que devem ser considerados para a formulação eficaz dessa política:

•        Colaboração transdisciplinar e intersetorial

O princípio central da Saúde Única é a colaboração transdisciplinar, que reúne diversas disciplinas acadêmicas, como medicina humana, medicina veterinária, epidemiologia, ciências ambientais, saúde pública, políticas públicas, comunicação social, ciência dos dados, além de incluir conhecimentos de setores não acadêmicos. Isso envolve a participação ativa de comunidades locais, sistemas de conhecimento indígena, formuladores de políticas, organizações não governamentais e a indústria privada. Plataformas colaborativas devem ser criadas para compartilhar conhecimentos, melhores práticas e dados entre os setores, incentivando a cocriação de soluções.

•        Vigilância integrada e compartilhamento de dados

Uma estrutura eficaz de Saúde Única depende de sistemas de vigilância integrados que monitorem as tendências de saúde em humanos, animais e ecossistemas. Esses sistemas devem facilitar a coleta e o compartilhamento de dados em tempo hábil entre as partes interessadas. A vigilância coordenada ajuda na detecção precoce de doenças zoonóticas, resistência antimicrobiana e mudanças ambientais, permitindo uma intervenção proativa.

•        Educação e capacitação continuadas

A educação é essencial para a implementação bem-sucedida da Saúde Única. Desenvolver uma força de trabalho que compreenda a interconexão entre a saúde humana, animal e ambiental é vital para promover a colaboração transdisciplinar.

A Saúde Única deve ser incorporada aos currículos acadêmicos desde os estágios iniciais, garantindo que profissionais de diferentes setores recebam treinamento para trabalhar juntos na solução de questões complexas de saúde. Universidades e instituições de formação profissional devem integrar os princípios de Saúde Única em programas de medicina, veterinária, ciências ambientais e sociais.

Além da educação formal, é necessário treinamento contínuo para profissionais em atividade. Oficinas, conferências e programas de certificação podem ajudar a atualizar os conhecimentos e habilidades relacionadas aos desafios emergentes de saúde, doenças zoonóticas e riscos de saúde associados ao clima.

Além da educação formal, campanhas de conscientização direcionadas ao público em geral são essenciais. Essas campanhas podem fomentar uma compreensão mais profunda de como as ações humanas impactam a saúde dos animais e do meio ambiente, promovendo comportamentos sustentáveis.

•        Engajamento comunitário e conscientização pública

A participação pública é fundamental para o sucesso das iniciativas de Saúde Única. Os membros da comunidade devem estar envolvidos na identificação de questões de saúde locais e na contribuição para soluções. As abordagens transdisciplinares devem incluir sistemas de conhecimento locais e indígenas para construir soluções específicas para cada contexto. Campanhas de conscientização pública devem ser projetadas para educar as pessoas sobre a importância da Saúde Única, especialmente na prevenção de doenças zoonóticas e na proteção da biodiversidade. Capacitar as comunidades a fazerem parte dos mecanismos de vigilância e resposta aumenta a resiliência.

•        Integração de políticas e apoio institucional

Os governos desempenham um papel importante na implementação da Saúde Única, promulgando políticas que apoiem a colaboração transdisciplinar e a alocação de recursos. As políticas devem refletir uma visão sistêmica da saúde, promovendo simultaneamente a proteção ambiental, a segurança alimentar e a saúde pública. Estruturas institucionais devem ser criadas para integrar a Saúde Única nos sistemas de saúde nacionais, garantindo financiamento e governança sustentáveis.

•        Monitoramento, avaliação e gestão adaptativa

O monitoramento e a avaliação regulares das iniciativas de Saúde Única são necessários para avaliar sua eficácia e adaptar estratégias. Isso envolve a definição de indicadores mensuráveis para acompanhar o progresso em áreas como redução de doenças, restauração ambiental e melhoria dos resultados de saúde. Práticas de gestão adaptativa permitem o aprendizado contínuo e o aperfeiçoamento das intervenções com base nos desafios em evolução.

•        Participação em Redes de Saúde Única (OHNs)

A participação em Redes de Saúde Única (OHNs, da sigla em inglês) é um componente que pode auxiliar na formulação de políticas eficazes nesse campo. Essas redes fornecem um espaço de colaboração e troca de conhecimento que é vital para enfrentar de maneira integrada os desafios globais de saúde. Além disso, as OHNs facilitam o compartilhamento de dados, melhores práticas e experiências, o que contribui significativamente para o desenvolvimento de políticas baseadas em evidências.

Globalmente, as Redes de Saúde Única (OHNs) são iniciativas que integram múltiplos atores com o objetivo de enfrentar desafios de saúde compartilhados. Uma revisão global identificou 184 dessas redes, destacando tanto avanços quanto lacunas em sua formação e eficácia. A maioria das OHNs está concentrada na Europa e na América do Norte, enquanto outras regiões, especialmente países de baixa renda, que enfrentam ameaças de saúde mais graves, apresentam déficits significativos na presença dessas redes (OHHLEP, 2023).

O foco predominante das OHNs tem sido em infecções emergentes e novos patógenos, com muitas iniciativas voltadas para a segurança da saúde e a preparação para pandemias. Contudo, há um notável desequilíbrio, pois poucas dessas redes tratam de questões essenciais como a degradação ambiental, as mudanças climáticas e a segurança alimentar, elementos críticos para o conceito ampliado de Saúde Única. Essa limitação de abordagem corre o risco de ignorar as causas profundas do surgimento de doenças, especialmente nas comunidades mais vulneráveis às zoonoses e outras ameaças à saúde pública.

A formação equitativa e eficaz das Redes de Saúde Única enfrenta diversos desafios. Primeiramente, a distribuição geográfica dessas redes é desigual. Regiões como África e Ásia, onde as ameaças à saúde são maiores, têm menos recursos e menor representatividade. Além disso, há desequilíbrios setoriais nas OHNs, que muitas vezes carecem de uma participação adequada de partes interessadas do meio ambiente e dos ecossistemas. Essa falta de integração limita a capacidade de lidar com ameaças de saúde complexas, que exigem participação de setores diversos, como vida selvagem, agricultura e ciências sociais.

Outro desafio diz respeito às estruturas de poder desiguais dentro dessas redes. Países de alta renda frequentemente dominam a liderança e a tomada de decisões nas OHNs, perpetuando um sistema de saúde global que negligencia as necessidades e prioridades de regiões de baixa e média renda. Esse desequilíbrio de poder reduz a eficácia das redes em abordar os desafios de saúde específicos das comunidades marginalizadas.

<><> Implicações da Saúde Única para o Brasil

A Covid-19 revelou de forma contundente as vulnerabilidades dos sistemas de saúde globais, e o Brasil, com seu cenário socioambiental único, é particularmente suscetível aos riscos impostos por doenças zoonóticas. Como um ponto de biodiversidade, o Brasil enfrenta o duplo desafio de preservar seus ecossistemas naturais enquanto lida com crescentes pressões da expansão agrícola, do desmatamento e da urbanização. A interseção desses fatores aumenta a probabilidade de transbordamentos zoonóticos, nos quais patógenos são transmitidos de animais para humanos, como observado em pandemias como a Covid-19. A pesquisa de Dobson et al. (2020) demonstra a  eficácia em termos de custo das medidas preventivas em comparação com custos causados por uma pandemia global.

Para o Brasil, esses dados enfatizam a necessidade de estratégias proativas, como a redução do desmatamento e a melhoria dos sistemas de monitoramento do comércio de vida selvagem, para mitigar o risco de futuros surtos zoonóticos.

A economia brasileira, fortemente dependente do agronegócio, também coloca o país no centro das discussões globais sobre o equilíbrio entre produtividade agrícola e sustentabilidade ecológica. A pecuária, embora contribua significativamente para o Produto Interno Bruto (PIB) do país, é conhecida pelo aumento da resistência antimicrobiana (RAM), que representa grave risco à saúde pública. O modelo de Saúde Única oferece uma visão sistêmica do problema, defendendo esforços coordenados que tratem simultaneamente saúde humana, animal e ambiental. Por conseguinte, a implementação de uma melhor gestão do uso de antibióticos na agropecuária, combinada com medidas para proteger os ecossistemas do desmatamento e da perda de habitats, reduziria tanto o risco de transbordamentos zoonóticos quanto a disseminação de patógenos resistentes.

Essas ações se alinham aos objetivos mais amplos do Brasil em termos de clima e sustentabilidade, oferecendo benefícios adicionais, como redução das emissões de carbono e preservação da biodiversidade. À medida que o Brasil busca se posicionar como líder global em desenvolvimento sustentável, a adoção da Saúde Única não é apenas uma necessidade de saúde, mas uma estratégia fundamental para garantir a estabilidade econômica e ambiental de longo prazo do país.

Nesse contexto, destaca-se a importância de uma perspectiva decolonial para a saúde pública, que considere não apenas os riscos zoonóticos associados às interações entre humanos e vida selvagem, mas também os fatores socioambientais mais amplos que influenciam os resultados de saúde em regiões marginalizadas, como as comunidades rurais e indígenas do Brasil (Baquero et al. 2021). Essas comunidades, que muitas vezes sofrem os maiores impactos da degradação ambiental, são essenciais na prevenção de futuras crises ecológicas e de saúde pública.

Um modelo de Saúde Única para o Brasil deve incluir a integração dos sistemas de conhecimento local e indígena para orientar intervenções sustentáveis em saúde, indo além das soluções meramente biomédicas, e adotando uma compreensão sistêmica da gestão ambiental e da resiliência comunitária.

Sendo o Brasil um dos maiores produtores de carne do mundo, o uso generalizado de antibióticos na pecuária contribui para o aumento da resistência antimicrobiana (RAM). A adoção do modelo de Saúde Única no país envolveria a implementação de regulamentos mais rígidos sobre o uso de antibióticos na agropecuária, ao mesmo tempo em que promoveria práticas sustentáveis que reduzam a contaminação ambiental. Essa abordagem mitigaria a RAM e também ajudaria a proteger a biodiversidade brasileira, já que práticas agrícolas menos intensivas contribuem para a preservação dos habitats de vida selvagem.

Além de tratar das doenças zoonóticas e da RAM, é preciso enfatizar a importância da conservação ambiental como um pilar da saúde pública (Whitmee et al. 2015) e Rabinowitz et al. 2018). O papel do Brasil como líder global em sustentabilidade ambiental, particularmente por meio de sua gestão da Floresta Amazônica, ressalta a necessidade de políticas que protejam os ecossistemas como uma forma de preservar tanto a saúde humana quanto a animal.

O desmatamento, como motor das mudanças climáticas e da perda de biodiversidade, exacerba os riscos à saúde pública ao desestabilizar barreiras naturais que protegem as populações humanas contra o surgimento de novas doenças. Ao adotar o modelo de Saúde Única, o Brasil pode alinhar suas políticas ambientais com os objetivos globais de saúde, contribuindo assim para os esforços nacionais e internacionais de combate à dupla crise das mudanças climáticas e das doenças infecciosas emergentes.

 

Fonte: Por Marcos Boulos e Luciana Pereira, no Le Monde

 

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