Saúde Única: prevenir agora, proteger
sempre
O impacto devastador
da pandemia de Covid-19 revelou a fragilidade dos sistemas de saúde ao redor do
mundo e a necessidade urgente de implementar estratégias mais eficazes e
integradas para enfrentar riscos futuros. Ganha força a demanda pela adoção de
um novo paradigma que reconheça a interdependência entre a saúde humana, animal
e ambiental: o conceito de Saúde Única. Este artigo apresenta as bases desse
conceito, que defende a colaboração entre atores e saberes para prevenir
pandemias e minimizar os efeitos de crises sanitárias.
• Quais são os custos de remediar e de
prevenir uma pandemia?
A pandemia de Covid-19
resultou em consideráveis perdas humanas e econômicas em escala global.
Conforme apresentado por Dobson et al. (2020), a perda do Produto Interno Bruto
(PIB) global em decorrência da pandemia foi estimada em US$ 5,6 trilhões, enquanto
o valor das vidas perdidas, calculado com base no valor de uma vida
estatística, variou de US$ 2,5 trilhões a US$ 10,2 trilhões, dependendo das
estimativas de mortalidade e dos métodos de valoração. Ao combinar esses
fatores, os custos econômicos totais da pandemia alcançaram até US$ 15,8
trilhões, superando amplamente o montante que teria sido necessário para a
implementação de medidas preventivas.
Os custos das ações
preventivas, quando comparados aos prejuízos causados pela Covid-19, revelam um
desequilíbrio substancial e a urgência de adotar estratégias preventivas para
mitigar futuras pandemias. Estima-se que os custos brutos anuais para a implementação
de programas globais destinados à redução do transbordo zoonótico, ao
aprimoramento da detecção precoce e à mitigação do desmatamento variam entre
US$ 22 bilhões e US$ 31,2 bilhões. Tais despesas abrangem uma gama de ações,
como o monitoramento do comércio de vida selvagem (até US$ 750 milhões anuais),
a redução do desmatamento (até US$ 9,59 bilhões anuais) e o fim do comércio de
carne de caça na China (estimado em US$ 19,4 bilhões anuais).
Ademais, os benefícios
adicionais proporcionados pelas medidas preventivas, como a diminuição das
emissões de CO2 em decorrência da redução do desmatamento — responsável por uma
diminuição de 118 milhões de toneladas anuais de emissões de CO2 —, poderiam
gerar uma economia adicional de US$ 4,31 bilhões em custos sociais relacionados
às mudanças climáticas, reduzindo ainda mais os custos líquidos de prevenção
para valores entre US$ 17,7 bilhões e US$ 26,9 bilhões anuais.
A diferença
significativa entre os custos de prevenção e os prejuízos totais causados pela
pandemia evidencia a eficiência econômica de investir em medidas preventivas.
Para alcançar o equilíbrio dos custos, uma redução de apenas 26,7% na
probabilidade anual de ocorrência de uma pandemia já justificaria o gasto com
prevenção, isto é, reduzir a probabilidade de uma pandemia de 1% para 0,733%.
Em outros cenários, a redução necessária na probabilidade varia de 11,8% a
75,7%, conforme as suposições relativas aos custos preventivos e reativos.
Portanto, os dados demonstram que as medidas preventivas não apenas são viáveis
economicamente, mas também imprescindíveis para evitar os custos financeiros e
sociais massivos decorrentes de pandemias.
<><> Como
reduzir o risco de futuras pandemias?
O conceito de Saúde
Única oferece uma resposta sistêmica aos desafios interconectados das crises
globais de saúde, particularmente aqueles relacionados às doenças zoonóticas,
como a Covid-19 (Rabinowitz et al., 2018). A abordagem de Saúde Única enfatiza as
complexas interações entre a saúde humana, animal e ambiental, sugerindo que
considerar os riscos à saúde em um desses domínios requer uma compreensão
integrada e intervenções nos três. Esse conceito tem sido cada vez mais
considerado essencial para a gestão de doenças infecciosas emergentes, muitas
das quais têm origem zoonótica, ou seja, transmitem-se de animais para humanos.
De acordo com o Painel de Alto Nível de
Especialistas em Saúde Única (OHHLEP, na sigla em inglês), essa perspectiva é
definida como “uma abordagem integrada e unificadora que visa equilibrar e
otimizar de forma sustentável a saúde de pessoas, animais e ecossistemas.
Reconhece-se que a saúde dos seres humanos, animais domésticos e selvagens,
plantas e do ambiente mais amplo, incluindo os ecossistemas, está estreitamente
ligada e é interdependente” (OHHLEP, 2022).
Esse modelo não apenas
reconhece as interrelações entre esses sistemas, mas também destaca a
necessidade de colaboração multissetorial e comunicação transdisciplinar para
enfrentar os desafios globais de saúde mais urgentes. Conforme observado por De
Castañeda et al. (2023), Saúde Única vai além da prevenção de doenças
zoonóticas, abrangendo também questões como a resistência antimicrobiana, as
mudanças climáticas e a perda de biodiversidade.
Os princípios
fundamentais de Saúde Única, conforme destacados pela OHHLEP, incluem equidade
entre atores e saberes, gestão responsável e equilíbrio socioecológico,
propondo uma estratégia sistêmica e sustentável para enfrentar os desafios de
saúde. Ao adotar essa visão, Saúde Única alinha-se a conceitos como o de Saúde
Planetária, que foca na relação mais ampla entre sustentabilidade ambiental e
saúde humana. Enquanto a Saúde Única está diretamente preocupada com a
interface entre a saúde humana, animal e ambiental, a Saúde Planetária adota
uma perspectiva mais antropocêntrica, ao destacar como a degradação ambiental
ameaça o bem-estar humano.
Dessa forma, a visão
da Saúde Planetária sublinha a importância do desenvolvimento sustentável e da
conservação ambiental para proteger a saúde humana frente às mudanças
climáticas, perda de biodiversidade e poluição ambiental (De Castañeda et al.,
2023). Esse escopo mais amplo complementa o foco da Saúde Única nas ameaças
imediatas zoonóticas e antimicrobianas, criando uma estrutura abrangente que
une saúde, conservação ambiental e sustentabilidade.
<><> Por
que Saúde Única pode ser uma política estratégica?
A Saúde Única
representa uma transformação essencial na maneira como lidamos com os desafios
globais de saúde. Para compreender por que esse conceito se apresenta como a
resposta mais eficaz, é fundamental reconhecer as complexas interconexões entre
os diferentes domínios da saúde e avaliar as alternativas que a Saúde Única
oferece.
Uma das razões
centrais para a relevância do arcabouço da Saúde Única é sua capacidade de
enfrentar as doenças zoonóticas, isto é, doenças infecciosas que passam de
animais para humanos. Nas últimas décadas, houve um aumento notável no número
de surtos de doenças zoonóticas, como o vírus do Nilo Ocidental, Ebola, SARS e,
mais recentemente, Covid-19. Essas doenças estão frequentemente associadas às
mudanças ambientais impulsionadas por atividades humanas, como desmatamento,
comércio de vida selvagem e expansão agrícola. Por exemplo, o desmatamento
aumenta o contato entre humanos e animais selvagens, criando caminhos para que
vírus sejam transmitidos às populações humanas. As doenças zoonóticas refletem
as interações complexas entre os ecossistemas e a saúde humana e animal.
A abordagem da Saúde
Única lida diretamente com essas dinâmicas ao reconhecer que a saúde humana não
pode ser isolada da saúde dos animais e do meio ambiente. Nessa perspectiva,
prevenir futuras pandemias requer estratégias que não apenas enfoquem o sistema
de saúde e as populações humanas, mas também a proteção dos ecossistemas e a
regulamentação das práticas que impactam a vida selvagem. Uma maneira seria
regular o comércio de vida selvagem e prevenir o desmatamento para reduzir o
risco de emergência de doenças zoonóticas. Sem abordar esses fatores
ambientais, qualquer tentativa de controle dessas doenças será incompleta.
• Mudanças climáticas e sustentabilidade
ambiental
Outro componente
crítico da perspectiva da Saúde Única é seu foco na sustentabilidade ambiental.
A saúde humana está intrinsecamente relacionada aos sistemas ambientais, e a
degradação desses sistemas – por meio da poluição e do desmatamento —
representa ameaças significativas tanto para a saúde humana quanto animal. As
mudanças climáticas estão associadas a eventos climáticos extremos, elevação do
nível do mar e alterações nos vetores de doenças, todos capazes de exacerbar
crises de saúde pública.
A Saúde Única
reconhece que promover a sustentabilidade ambiental é fundamental para garantir
a saúde a longo prazo de humanos e animais. Nesse sentido, não se trata apenas
de prevenir doenças; ela também defende políticas e práticas que protejam os
ecossistemas naturais e mitiguem os efeitos das mudanças climáticas. Essa visão
incentiva práticas agrícolas sustentáveis, redução da poluição e esforços de
conservação como formas de criar um ambiente global mais saudável e resiliente.
Sem essas medidas, a saúde de humanos e animais continuará a deteriorar-se.
• Segurança global em saúde
A Covid-19 ressaltou a
importância da segurança global em saúde. Doenças infecciosas não estão
confinadas por fronteiras nacionais, e a saúde de uma nação pode rapidamente
causar impacto à comunidade global. A Saúde Única promove a segurança global de
saúde ao encorajar sistemas de detecção precoce e ao fomentar a colaboração
entre áreas do conhecimento – saúde pública, epidemiologia, medicina
veterinária, ciências ambientais, políticas públicas, ciências dos dados. Essa
abordagem colaborativa permite a identificação oportuna de ameaças emergentes e
a rápida implementação de medidas de controle.
Programas de
vigilância que monitoram a vida selvagem e o gado em busca de novos patógenos
podem servir como um sistema de alerta precoce para o surgimento de doenças.
Esses programas podem detectar doenças zoonóticas antes que elas se espalhem
para populações humanas, proporcionando às autoridades de saúde uma vantagem na
contenção de possíveis pandemias. A Saúde Única também defende um diálogo mais
constante e a cooperação entre governos nacionais, organizações internacionais
e comunidades locais para garantir que surtos de doenças sejam geridos de forma
rápida e eficaz.
• Resistência antimicrobiana
Outro desafio
importante que a Saúde Única enfrenta é a resistência antimicrobiana (RAM). O
uso excessivo de antibióticos, tanto na saúde humana quanto na agricultura
animal, levou ao desenvolvimento de cepas resistentes de bactérias,
representando uma séria ameaça à saúde pública. O uso generalizado de
antibióticos na criação de gado, em particular, contribuiu significativamente
para a crise da RAM, pois bactérias resistentes podem ser transmitidas de
animais para humanos por meio do contato direto, do consumo de alimentos ou da
contaminação ambiental.
A Saúde Única atua
nessa questão ao promover o uso responsável de antibióticos. Ela incentiva a
adoção de políticas que limitem o uso de antibióticos na agricultura e
fortaleçam as regulamentações sobre o uso de antibióticos tanto em humanos
quanto em animais. Ao enfrentar a RAM de múltiplos ângulos – medicina humana,
saúde animal e gestão ambiental –, a Saúde Única oferece uma solução abrangente
para essa crescente ameaça global à saúde.
<><> Quais
fatores considerar na formulação de uma política de Saúde Única?
Para formular uma
política de Saúde Única, é essencial adotar estratégias que integrem diversas
áreas do conhecimento e atores envolvidos no enfrentamento das questões de
saúde. Com base na Teoria da Mudança, a seguir está um esboço dos aspectos que
devem ser considerados para a formulação eficaz dessa política:
• Colaboração transdisciplinar e
intersetorial
O princípio central da
Saúde Única é a colaboração transdisciplinar, que reúne diversas disciplinas
acadêmicas, como medicina humana, medicina veterinária, epidemiologia, ciências
ambientais, saúde pública, políticas públicas, comunicação social, ciência dos
dados, além de incluir conhecimentos de setores não acadêmicos. Isso envolve a
participação ativa de comunidades locais, sistemas de conhecimento indígena,
formuladores de políticas, organizações não governamentais e a indústria
privada. Plataformas colaborativas devem ser criadas para compartilhar
conhecimentos, melhores práticas e dados entre os setores, incentivando a
cocriação de soluções.
• Vigilância integrada e compartilhamento
de dados
Uma estrutura eficaz
de Saúde Única depende de sistemas de vigilância integrados que monitorem as
tendências de saúde em humanos, animais e ecossistemas. Esses sistemas devem
facilitar a coleta e o compartilhamento de dados em tempo hábil entre as partes
interessadas. A vigilância coordenada ajuda na detecção precoce de doenças
zoonóticas, resistência antimicrobiana e mudanças ambientais, permitindo uma
intervenção proativa.
• Educação e capacitação continuadas
A educação é essencial
para a implementação bem-sucedida da Saúde Única. Desenvolver uma força de
trabalho que compreenda a interconexão entre a saúde humana, animal e ambiental
é vital para promover a colaboração transdisciplinar.
A Saúde Única deve ser
incorporada aos currículos acadêmicos desde os estágios iniciais, garantindo
que profissionais de diferentes setores recebam treinamento para trabalhar
juntos na solução de questões complexas de saúde. Universidades e instituições de
formação profissional devem integrar os princípios de Saúde Única em programas
de medicina, veterinária, ciências ambientais e sociais.
Além da educação
formal, é necessário treinamento contínuo para profissionais em atividade.
Oficinas, conferências e programas de certificação podem ajudar a atualizar os
conhecimentos e habilidades relacionadas aos desafios emergentes de saúde,
doenças zoonóticas e riscos de saúde associados ao clima.
Além da educação
formal, campanhas de conscientização direcionadas ao público em geral são
essenciais. Essas campanhas podem fomentar uma compreensão mais profunda de
como as ações humanas impactam a saúde dos animais e do meio ambiente,
promovendo comportamentos sustentáveis.
• Engajamento comunitário e
conscientização pública
A participação pública
é fundamental para o sucesso das iniciativas de Saúde Única. Os membros da
comunidade devem estar envolvidos na identificação de questões de saúde locais
e na contribuição para soluções. As abordagens transdisciplinares devem incluir
sistemas de conhecimento locais e indígenas para construir soluções específicas
para cada contexto. Campanhas de conscientização pública devem ser projetadas
para educar as pessoas sobre a importância da Saúde Única, especialmente na
prevenção de doenças zoonóticas e na proteção da biodiversidade. Capacitar as
comunidades a fazerem parte dos mecanismos de vigilância e resposta aumenta a
resiliência.
• Integração de políticas e apoio
institucional
Os governos
desempenham um papel importante na implementação da Saúde Única, promulgando
políticas que apoiem a colaboração transdisciplinar e a alocação de recursos.
As políticas devem refletir uma visão sistêmica da saúde, promovendo
simultaneamente a proteção ambiental, a segurança alimentar e a saúde pública.
Estruturas institucionais devem ser criadas para integrar a Saúde Única nos
sistemas de saúde nacionais, garantindo financiamento e governança
sustentáveis.
• Monitoramento, avaliação e gestão
adaptativa
O monitoramento e a
avaliação regulares das iniciativas de Saúde Única são necessários para avaliar
sua eficácia e adaptar estratégias. Isso envolve a definição de indicadores
mensuráveis para acompanhar o progresso em áreas como redução de doenças, restauração
ambiental e melhoria dos resultados de saúde. Práticas de gestão adaptativa
permitem o aprendizado contínuo e o aperfeiçoamento das intervenções com base
nos desafios em evolução.
• Participação em Redes de Saúde Única
(OHNs)
A participação em
Redes de Saúde Única (OHNs, da sigla em inglês) é um componente que pode
auxiliar na formulação de políticas eficazes nesse campo. Essas redes fornecem
um espaço de colaboração e troca de conhecimento que é vital para enfrentar de
maneira integrada os desafios globais de saúde. Além disso, as OHNs facilitam o
compartilhamento de dados, melhores práticas e experiências, o que contribui
significativamente para o desenvolvimento de políticas baseadas em evidências.
Globalmente, as Redes
de Saúde Única (OHNs) são iniciativas que integram múltiplos atores com o
objetivo de enfrentar desafios de saúde compartilhados. Uma revisão global
identificou 184 dessas redes, destacando tanto avanços quanto lacunas em sua
formação e eficácia. A maioria das OHNs está concentrada na Europa e na América
do Norte, enquanto outras regiões, especialmente países de baixa renda, que
enfrentam ameaças de saúde mais graves, apresentam déficits significativos na
presença dessas redes (OHHLEP, 2023).
O foco predominante
das OHNs tem sido em infecções emergentes e novos patógenos, com muitas
iniciativas voltadas para a segurança da saúde e a preparação para pandemias.
Contudo, há um notável desequilíbrio, pois poucas dessas redes tratam de
questões essenciais como a degradação ambiental, as mudanças climáticas e a
segurança alimentar, elementos críticos para o conceito ampliado de Saúde
Única. Essa limitação de abordagem corre o risco de ignorar as causas profundas
do surgimento de doenças, especialmente nas comunidades mais vulneráveis às
zoonoses e outras ameaças à saúde pública.
A formação equitativa
e eficaz das Redes de Saúde Única enfrenta diversos desafios. Primeiramente, a
distribuição geográfica dessas redes é desigual. Regiões como África e Ásia,
onde as ameaças à saúde são maiores, têm menos recursos e menor representatividade.
Além disso, há desequilíbrios setoriais nas OHNs, que muitas vezes carecem de
uma participação adequada de partes interessadas do meio ambiente e dos
ecossistemas. Essa falta de integração limita a capacidade de lidar com ameaças
de saúde complexas, que exigem participação de setores diversos, como vida
selvagem, agricultura e ciências sociais.
Outro desafio diz
respeito às estruturas de poder desiguais dentro dessas redes. Países de alta
renda frequentemente dominam a liderança e a tomada de decisões nas OHNs,
perpetuando um sistema de saúde global que negligencia as necessidades e
prioridades de regiões de baixa e média renda. Esse desequilíbrio de poder
reduz a eficácia das redes em abordar os desafios de saúde específicos das
comunidades marginalizadas.
<><>
Implicações da Saúde Única para o Brasil
A Covid-19 revelou de
forma contundente as vulnerabilidades dos sistemas de saúde globais, e o
Brasil, com seu cenário socioambiental único, é particularmente suscetível aos
riscos impostos por doenças zoonóticas. Como um ponto de biodiversidade, o
Brasil enfrenta o duplo desafio de preservar seus ecossistemas naturais
enquanto lida com crescentes pressões da expansão agrícola, do desmatamento e
da urbanização. A interseção desses fatores aumenta a probabilidade de
transbordamentos zoonóticos, nos quais patógenos são transmitidos de animais
para humanos, como observado em pandemias como a Covid-19. A pesquisa de Dobson
et al. (2020) demonstra a eficácia em
termos de custo das medidas preventivas em comparação com custos causados por
uma pandemia global.
Para o Brasil, esses
dados enfatizam a necessidade de estratégias proativas, como a redução do
desmatamento e a melhoria dos sistemas de monitoramento do comércio de vida
selvagem, para mitigar o risco de futuros surtos zoonóticos.
A economia brasileira,
fortemente dependente do agronegócio, também coloca o país no centro das
discussões globais sobre o equilíbrio entre produtividade agrícola e
sustentabilidade ecológica. A pecuária, embora contribua significativamente
para o Produto Interno Bruto (PIB) do país, é conhecida pelo aumento da
resistência antimicrobiana (RAM), que representa grave risco à saúde pública. O
modelo de Saúde Única oferece uma visão sistêmica do problema, defendendo
esforços coordenados que tratem simultaneamente saúde humana, animal e
ambiental. Por conseguinte, a implementação de uma melhor gestão do uso de
antibióticos na agropecuária, combinada com medidas para proteger os
ecossistemas do desmatamento e da perda de habitats, reduziria tanto o risco de
transbordamentos zoonóticos quanto a disseminação de patógenos resistentes.
Essas ações se alinham
aos objetivos mais amplos do Brasil em termos de clima e sustentabilidade,
oferecendo benefícios adicionais, como redução das emissões de carbono e
preservação da biodiversidade. À medida que o Brasil busca se posicionar como
líder global em desenvolvimento sustentável, a adoção da Saúde Única não é
apenas uma necessidade de saúde, mas uma estratégia fundamental para garantir a
estabilidade econômica e ambiental de longo prazo do país.
Nesse contexto,
destaca-se a importância de uma perspectiva decolonial para a saúde pública,
que considere não apenas os riscos zoonóticos associados às interações entre
humanos e vida selvagem, mas também os fatores socioambientais mais amplos que
influenciam os resultados de saúde em regiões marginalizadas, como as
comunidades rurais e indígenas do Brasil (Baquero et al. 2021). Essas
comunidades, que muitas vezes sofrem os maiores impactos da degradação
ambiental, são essenciais na prevenção de futuras crises ecológicas e de saúde
pública.
Um modelo de Saúde
Única para o Brasil deve incluir a integração dos sistemas de conhecimento
local e indígena para orientar intervenções sustentáveis em saúde, indo além
das soluções meramente biomédicas, e adotando uma compreensão sistêmica da
gestão ambiental e da resiliência comunitária.
Sendo o Brasil um dos
maiores produtores de carne do mundo, o uso generalizado de antibióticos na
pecuária contribui para o aumento da resistência antimicrobiana (RAM). A adoção
do modelo de Saúde Única no país envolveria a implementação de regulamentos mais
rígidos sobre o uso de antibióticos na agropecuária, ao mesmo tempo em que
promoveria práticas sustentáveis que reduzam a contaminação ambiental. Essa
abordagem mitigaria a RAM e também ajudaria a proteger a biodiversidade
brasileira, já que práticas agrícolas menos intensivas contribuem para a
preservação dos habitats de vida selvagem.
Além de tratar das
doenças zoonóticas e da RAM, é preciso enfatizar a importância da conservação
ambiental como um pilar da saúde pública (Whitmee et al. 2015) e Rabinowitz et
al. 2018). O papel do Brasil como líder global em sustentabilidade ambiental, particularmente
por meio de sua gestão da Floresta Amazônica, ressalta a necessidade de
políticas que protejam os ecossistemas como uma forma de preservar tanto a
saúde humana quanto a animal.
O desmatamento, como
motor das mudanças climáticas e da perda de biodiversidade, exacerba os riscos
à saúde pública ao desestabilizar barreiras naturais que protegem as populações
humanas contra o surgimento de novas doenças. Ao adotar o modelo de Saúde Única,
o Brasil pode alinhar suas políticas ambientais com os objetivos globais de
saúde, contribuindo assim para os esforços nacionais e internacionais de
combate à dupla crise das mudanças climáticas e das doenças infecciosas
emergentes.
Fonte: Por Marcos
Boulos e Luciana Pereira, no Le Monde
Nenhum comentário:
Postar um comentário