As necessidades concretas da classe
trabalhadora
Em dois dias (13 e 14
de outubro), algumas centrais sindicais, não exatamente as mesmas, lançaram
duas notas: uma, em defesa de um Ministro do STF, contra os ataques que este
vem sofrendo de “milícias digitais”, como diz a nota; e outra, em defesa do próprio
STF (veja aqui), contra as iniciativas que tramitam na Câmara dos Deputados
para: (a) anistiar os golpistas de 08 de janeiro de 2023; (b) limitar decisões
monocráticas dos Ministros do Supremo; (c) permitir a sustação de decisões do
STF pelo Congresso Nacional; e (d) facilitar o impeachment dos Ministros do
STF.
As iniciativas que
tramitam no Congresso constituem, por certo, só por existirem, graves atentados
à ordem jurídica e ao Estado Democrático de Direito.
A questão é que as
instituições democráticas, elas próprias, inclusive e, sobretudo, o próprio
STF, vêm, com o discurso ideológico de cunho neoliberal, priorizando o
interesse econômico, notadamente o internacional, e, com isto, alijando a
classe trabalho da rede de proteção social estatal.
Lembre-se que, em
termos de direitos das trabalhadoras e trabalhadores, nosso contexto histórico
recente foi o da aprovação da “reforma” trabalhista, que, dentre outros
efeitos: dificultou a atuação dos sindicatos; criou mecanismos para aumentar o
tempo da jornada de trabalho; facilitou a dispensa coletiva de trabalhadores e
trabalhadoras; ampliou a terceirização; criou o trabalho intermitente; buscou
impedir o acesso à Justiça do Trabalho etc., sendo que vários desses
retrocessos jurídicos foram convalidados pelo STF, em especial, a ampliação da
terceirização e a validação do negociado sobre o legislado.
Na sequência,
vivenciamos os horrores da pandemia e das iniciativas do governo da época que
foram direcionadas a proteger os interesses econômicos por meio do
aprofundamento das formas de exploração do trabalho e, por consequência, do
sofrimento dos trabalhadores e trabalhadoras, gerando, inclusive, milhares de
vidas perdidas.
As Medidas Provisórias
editadas pelo governo previam ampliação da jornada de trabalho, quando o ideal
seria, exatamente o inverso, e, até mesmo, a suspensão das atividades estatais
de fiscalização da aplicação das normas de saúde e segurança no trabalho.
Tudo isto se fez,
novamente, com o respaldo do Supremo Tribunal Federal, que, mesmo diante do
genocídio praticado contra a classe trabalhadora, não reagiu, a não ser quando
instado formalmente e em situações extremas, como a que se apresentou na
decisão proferida na ADI 6342, que acabou suspendendo a eficácia do artigo 29
da Medida Provisória 927/2020, que absurdamente previa que: “Os casos de
contaminação pelo coronavírus (Covid-19) não serão considerados ocupacionais,
exceto mediante comprovação do nexo causal”.
A “reforma”
trabalhista, ao arrepio da Constituição Federal, com o respaldo do STF (e mesmo
da Justiça do Trabalho) continuou a ser aplicada e se aprofundou durante a
pandemia, sem qualquer rechaço das instituições.
Mais recentemente o
STF, após proferir, durante os debates sobre casos específicos, inúmeras
ofensas explícitas aos direitos trabalhistas, aos sindicatos, à Justiça do
Trabalho e ao Ministério Público do Trabalho, deu início a uma nova escalada de
retração dos direitos trabalhistas, seja reduzindo a autoridade e a competência
da Justiça do Trabalho, seja alterando o próprio pressuposto teórico básico do
Direito do Trabalho, para sobrepor aos princípios da proteção, da primazia da
realidade e da melhoria progressiva da condição social dos trabalhadores e
trabalhadoras, uns tais “princípios” da livre iniciativa e da liberdade de
concorrência, que não estão enunciados em nenhuma preceito constitucional, para
privilegiar os interesses empresarias.
E assim tem agido sem
qualquer respaldo da Constituição Federal, afrontando, pois, o Estado
Democrático de Direito.
Se não bastasse, em 30
de setembro passado, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), superando todas as
amarras do Estado Democrático de Direito constitucionalmente consagradas,
editou a Resolução 586, que estabelece um procedimento judicial destinado à homologação
de acordos extrajudiciais na Justiça do Trabalho, de modo a validar a cláusula
de “quitação ampla, geral e irrevogável” constante desses ajustes, para,
segundo o autor da ideia, Luís Roberto Barroso, solucionar o “problema” do
número elevado de reclamações trabalhistas no Brasil, que dificultam os
negócios e afastam investimentos.
As Centrais não
repudiaram a iniciativa do Conselho Nacional de Justiça; não denunciaram a
quebra de institucionalidade e as afrontas promovidas pelo STF aos direitos
trabalhistas constitucionalmente assegurados; não se rebelaram contra o
silêncio do STF e demais instituições democráticas em face da necropolítica
adotada pelo governo de Jair Bolsonaro; não se mobilizaram com toda a força que
podiam contra a aprovação da “reforma” trabalhista e, mesmo agora, não estão
exigindo do governo Lula a imediata e total revogação da Lei n. 13.467/17,
sendo que, bem ao contrário, têm se mostrado favoráveis a uma inciativa o
governo de legitimar a precarização do trabalho, começando pelos entregadores.
Dentro desse contexto
histórico, por mais que sejam acertados os argumentos contra as iniciativas que
se apresentam no Congresso Nacional, acima referidas, é inconcebível que as
Centrais tenham se unido para defender as instituições, sobretudo o STF, que,
como visto, desde a fala relevadora do Ministro Marco Aurélio, em 2016, tem se
oferecido ao mercado para ser o protagonista da destruição da Constituição
Federal e da ordem democrática em tudo o que afeta diretamente a classe
trabalhadora.
Ademais, se a
separação e a relação harmônica e independente entre os poderes da República
são essenciais à democracia, igual importância possuem as organizações sociais,
para que sejam levadas adiante as pautas da classe trabalhadora em geral. Às
organizações sindicais, de modo específico, como elemento fundamental da
democracia, cumpre o papel de promoção da defesa dos trabalhadores e
trabalhadoras, até porque não se pode falar em “Estado Democrático, destinado a
assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores
supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”, como
projetado na Constituição Federal, sem a efetivação de direitos trabalhistas e
sociais.
O que era de se
esperar – e ainda se espera – é que promovessem uma autocrítica, notadamente
quanto aos vínculos mantidos com os objetivos restritos e meramente eleitorais
de um partido político que não possui um projeto de país atrelado à primazia
dos interesses imediatos e futuros da classe trabalhadora, que expressassem, em
alto e bom tom, sua indignação contra as atuações do STF (e de seus Ministros)
em matéria trabalhista e que conclamassem a classe trabalhadora ao agir
político coletivo e organizado para, enfim e concretamente, lutar contra todos
esses ataques recentemente sofridos e para a reversão de todas as derrotas
experimentadas.
É urgente refletir
sobre o que representa politicamente esse apoio explícito dado pelas Centrais a
instituições e personagens que, passando por cima dos preceitos constitucionais
e da ordem democrática, assumiram a tarefa de se colocarem como porta-vozes das
concepções de mundo neoliberal.
Esta associação não só
fortalece e “legitima” o movimento de destruição da rede de proteção jurídica
trabalhista, como também afasta ainda mais a classe trabalhadora das
organizações sindicais, vez que, parafraseando Vladimir Saflate, estas parecem
não ter o que dizer aos trabalhadores e às trabalhadoras.
Sem que esteja, de
forma prioritária, na pauta da esquerda e dos movimentos sociais e sindicais a
retomada das utopias em torno de uma outra sociabilidade efetivamente inclusiva
e igualitária e sem que se promovam mobilizações e lutas efetivas contra o rebaixamento
social e por melhores condições de vida e de trabalho, superando as
fragmentações de classe e as violências raciais e de gênero criadas e
alimentadas pelo capital, os trabalhadores e trabalhadoras, premidos pela
necessidade de lutar sozinhos (e uns contra os outros) pela sobrevivência,
acabam não se identificando com as ações e discursos promovidos pelas
organizações sindicais e pelos governos ditos de esquerda que, no fundo, apenas
administram os interesses do capital.
Diante da ausência de
um movimento político e organizacional que explicite suas convicções e suas
ações práticas em torno da defesa radical dos interesses da classe trabalhadora
ou, pior, diante da demonstração explícita de que as entidades historicamente
ligadas às lutas trabalhistas estão se associando aos algozes dos direitos
trabalhistas (que é o que as notas em questão revelam), os trabalhadores e
trabalhadoras se tornam presas fáceis das retóricas do empreendedorismo, que,
tomando para si o discurso da radicalidade e da denúncia sobre as falsas
promessas feitas por um Estado burocratizado e ainda marcado pelo fisiologismo,
o favoritismo e o compadrio, prometem inclusão, liberdade e autonomia
financeira.
Este contexto é o que
tem facilitado, como se pôde constatar do resultado geral da última eleição
municipal e na própria realidade das relações sociais, o caminho para o
conservadorismo, o fascismo, a intolerância, a violência social e o ódio.
E quando o Presidente
Lula, percebendo esta forma de cooptação eleitoral feita pela retórica
conservadora, toma para si o apelo ao empreendedorismo, tentando com isto,
talvez, angariar mais votos para o seu partido, o que consegue é apenas tornar
a esquerda, ao menos aquela representada pelo lulismo, em um movimento
absolutamente idêntico à direita e, até mesmo, à ultradireita.
Fato é que a
inexistência de um compromisso efetivo e radical com as necessidades concretas
da classe trabalhadora está nos legando a ascensão do fascismo, mesmo que,
neste contexto, se preencha o vazio com discurso da defesa da “democracia”.
Fonte: Por Jorge Luiz
Souto Maior, em A Terra é Redonda
Nenhum comentário:
Postar um comentário