quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Marcelo Siano Lima: As placas se movem no cenário político nacional

Para o sociólogo José de Souza Martins, os resultados do pleito do dia 6 de outubro demonstram que “o Brasil continua, disfarçadamente, o mesmo que sempre foi. Num país polarizado, como o nosso, não dá para fazer interpretação de resultados eleitorais com base no pressuposto de que se trata de embate entre esquerda e direita”. A análise de Martins diz muito sobre a realidade política e social brasileira, que, nas urnas, periodicamente, expressa a força de sua pulsão avassaladora. As eleições deste ano, como demonstram os resultados do primeiro turno, indicam que, aparentemente, os movimentos das placas tectônicas da política brasileira deram um giro de 360º, mudando, para nada mudar. Mas essa permanência tem, no caso deste ano, algumas particularidades importantes, que precisam ser analisadas, permitindo a real compreensão do movimento das forças políticas e da motivação do eleitorado. Pode ser que estejamos diante de um movimento mais profundo e complexo dessas placas tectônicas, muito além do embate entre esquerda e direita, um elemento já constante de nossa história.

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Indiscutivelmente, a extrema-direita obteve resultados que a colocam como um player importante da política brasileira. Trata-se de um fenômeno que, ao longo das três primeiras décadas deste século, está se consolidando por diversos países do ocidente, movido pelos interesses, pela agenda, pela organização e pelo financiamento do movimento – a organização supranacional que reúne os grupos radicais de extrema-direita de todos os matizes. Esse crescimento vigoroso da extrema-direita nos diferentes países ocidentais tem nas redes sociais um elemento impulsionador dos mais vigorosos. A extrema-direita entendeu as redes, sua gramática e o seu ecossistema, transformando-as em um instrumento de constante mobilização e de doutrinação das massas, como produtores e difusores de conteúdos seletivos.  Surfam, como no fascismo histórico italiano e alemão dos anos 1920 e 1930, nos efeitos da crise aguda do capitalismo, neste caso, com sua feição neoliberal, que corroeu os modelos de organização e os pactos civilizatórios os quais, ao longo de séculos, foram sendo construídos nos diferentes países.

Sua gramática é a do ódio e propugnam pela antipolítica, pelo antissistema, pela destruição de “tudo o que está aí”, que é projetado como opressor da livre expressão de pensamento e de ação das pessoas. A extrema-direita, valendo-se com competência das redes sociais e verbalizando toda a cosmogonia do populismo mais radical, soube encantar as massas, autorizando a expressão de ideias e comportamentos retrógrados e autoritários que remontam ao processo de formação social e política do Brasil, mas que haviam sido contidos ao longo da história em razão do avanço das lutas sociais, da democracia liberal, de suas instituições e de seu ideário. Sua estratégia é óbvia: valer-se da democracia liberal, sempre contraditória, para, alcançando o poder, moldar as instituições e o Estado aos seus interesses, suprimindo as dissidências, cancelando-as, atiçando o sentimento das massas a partir do acionamento de um imaginário brutal, que desconhece limites e direitos. A experiência da Hungria, sob o governo de Viktor Orbán, é o modelo mais bem acabado do êxito dessa estratégia aplicada aos Estados Nacionais.  É a autocracia elevada à condição de normalidade em um Estado totalmente transformado ao longo do governo de Orbán.

Apesar da consolidação política da extrema-direita, as fissuras em suas bases começaram a ser notadas e potencializadas. Até então, os personagens que habitam os ecossistemas digitais não tinham a relevância de que hoje passaram a desfrutar, nem eram percebidos como players eles próprios, mas, sim, como apoiadores fundamentais dos grupos políticos estabelecidos, além de operarem negócios lucrativos em uma nova economia. A candidatura de Pablo Marçal à Prefeitura de São Paulo expôs as vísceras dessas fissuras. No início do processo eleitoral deste ano, a extrema-direita brasileira tinha no ex-Presidente Jair Bolsonaro (PL) a sua grande referência em termos de liderança política. Mas Bolsonaro impôs uma dinâmica própria à sua ação política. Ele é um ator advindo de partidos de direita, integrantes do Centrão, tendo incorporado o pragmatismo e a conduta nefasta desse grupo em sua ação parlamentar. Bolsonaro, sobre quem também pesam sérias e fundadas suspeitas de ligações com as milícias do Rio de Janeiro, tentou, uma vez no governo, a partir de janeiro de 2019, coadunar esse seu passado  com a agenda e a gramática radical da extrema-direita. Houve resistências, e severas, aplacadas todas as vezes que se manifestavam pela retórica de enfrentamento adotada pelo ex-Presidente, que sempre criava e escalava sucessivas crises. Era a forma que tinha de ir se equilibrando entre o seu passado de parlamentar conservador, de político com supostas ligações com organizações criminosas, e o ideário da extrema-direita.

Bolsonaro foi, inicialmente, um projeto do chamado “Partido Militar”, que jamais se conformou com a perda do controle do Estado e de todo o seu aparato, em 1985, com o fim da ditadura civil-militar iniciada em 1964. Fiéis a princípios históricos bem enraizados, os militares não abandonaram a pretensão de manterem-se como possuidores de um inexistente Poder Moderador, o que supostamente lhes recobre de legitimidade, e de projetarem em si o papel de tutores da vida nacional, como observa o historiador Francisco Carlos Teixeira. Bolsonaro foi o personagem escolhido para representar esse projeto de poder, tendo agregado, com competência, toda a gramática da extrema-direita e de seus variados grupos, especialmente os fundamentalistas cristãos, católicos e protestantes. Em 2018, no rastro da crise institucional iniciada em 2013, ele foi o personagem com que o radicalismo de direita tanto sonhara, tendo condições de vitória nos pleitos eleitorais majoritários.

Pablo Marçal não é um outsider, e, sim, um quadro forjado nessa cultura política da extrema-direita e das redes sociais, que usa do populismo mais explícito para mobilizar as massas, valendo-se, também, de uma gramática que remete, de forma seletiva, a passagens do Antigo Testamento bíblico. Ele trouxe para o mundo político brasileiro a dinâmica da economia da atenção, oriunda das redes sociais e baseada na curtida, no engajamento e nos lucros financeiros que daí advêm. Marçal, a propósito, é um homem que amealha sua riqueza valendo-se de sua imagem e de produtos comercializados em suas redes sociais. O funcionamento das engrenagens dessa economia da atenção exige que se escale na confrontação de forma constante. O populismo radical de direita, oriundo do ecossistema digital, está conseguindo ocupar os espaços públicos, e com grande aderência de pessoas, o que preocupa os setores estabelecidos, de todos os matizes ideológicos.   A proliferação de atores políticos como Marçal está sendo protegida e incentivada pela falta de ação da Justiça Eleitoral e pelo desejo das mídias corporativas de avançarem sobre o capital acumulado pelos autodenominados influenciadores digitais. Essa é uma realidade que se apresenta, cada vez mais, desprovida de ética e de responsabilidade política. Segundo a pesquisa do Instituto Quaest, realizada com duas mil pessoas, entre os dias 25 e 29 de setembro deste ano, Marçal, símbolo dessa economia da atenção, numa disputa presidencial, hoje, desponta como um player muito competitivo, estando bem atrás do Presidente Lula (PT) na intenção de votos, mas com vantagem sobre o atual Governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), o nome em torno do qual os setores conservadores estão se reunindo na busca de uma candidatura viável nas próximas eleições presidenciais. Isso acende o alerta vermelho nos partidos e grupos políticos conservadores, os quais se mostram atordoados com a emergência de um personagem que, usando das redes sociais, soube apropriar-se da liderança de ampla parcela do eleitorado brasileiro.

As diferenças entre Marçal ou similares e Bolsonaro não são cosméticas, mas profundas. Marçal expressa o sentimento raiz da extrema-direita, sempre avessa a composições com as forças políticas tradicionais e com toda a institucionalidade. Mas, pragmaticamente, não abre mão dos benefícios de toda ordem proporcionados pelo Estado e seu aparato, que deseja controlar e aparelhar, mas o sataniza, como nos anos 1920 e 1930, apresentando-o como o principal entrave para suas ações projetadas como “libertadoras”. Essa extrema-direita raiz irá implodir o estado liberal tão logo possa, pois esse é o seu propósito. Observem, com a devida atenção, o que vem fazendo Javier Milei, na Argentina, desde sua posse na presidência, ocorrida em dezembro de 2023, e verão o estrago desse projeto sendo operacionalizado. Nesse sentido, o período de governo de Bolsonaro, entre 2019 e 2022, é visto por muitos dos extremistas como uma oportunidade perdida para o avanço de suas agendas regressivas e autocráticas. Bolsonaro, um ator forjado no que de mais tradicional e desviante existe no mundo político, mostrou-se, por força das circunstâncias, um aliancista, indo ao encontro das forças conservadoras como fiadoras da sua permanência no poder, especialmente após 2020. Esse movimento do “mito” é imperdoável para o extremismo raiz, que se vê puro, quase um “eleito” – no sentido bíblico –, avesso a acordos de quaisquer tipos, aferrando-se ao ódio e à agressividade para mobilizar as massas em torno de seus interesses. Não se pode negar que a extrema-direita age de forma agressiva e impune na construção de seus projetos, desprovida de responsabilidades, mesmo mínimas, para com a cidadania, cujas emoções mais profundas ela toca e mobiliza, catequizando-a com sua gramática e lhe dando a estética necessária para o papel que, desejam, ela desempenhe.

Mas há outro ator de significativa importância que foi trazido para o centro dessas desavenças: o fundamentalismo cristão, católico e protestante. Os embates entre Marçal e o Pastor Silas Malafaia, o mais estridente defensor da agenda de extrema-direita, chegaram a um ponto bastante crítico. Não apenas pela candidatura de Marçal à Prefeitura paulistana, confrontando-se com o amplo arco de aliança conservadora formada em torno do atual Prefeito, Ricardo Nunes (MDB). Marçal, de uma forma bastante afirmativa, avançou sobre o eleitorado cristão fundamentalista, rivalizando com a institucionalidade encarnada por pastores como Malafaia e padres católicos. Sua pregação de prosperidade, a habilidade em operar a economia da atenção, e seu projeto de poder rivalizam com os das lideranças fundamentalistas, que passaram a temer essa ação agressiva de Marçal sobre uma base que julgavam controlar. Marçal, um leigo que se diz evangélico, conseguiu falar e estabelecer laços de representatividade junto a setores da classe trabalhadora, dos desalentados, dos precarizados, dos sempre insatisfeitos e dos setores mais radicais da extrema-direita Daí, suas altercações com Malafaia acabaram por produzir mais um elemento de desestruturação do campo de extrema-direita, que até então se apresentava monolítico. Disputa-se a liderança sobre o mercado da fé do campo fundamentalista cristão, até agora controlado por pastores e padres.

Apesar do crescimento eleitoral da extrema-direita (embora com as mencionadas fissuras e contendas internas), bem como da transposição do universo digital para a vida real de pessoas originárias do complexo ecossistema das redes, em termos numéricos, os partidos do chamado Centrão – PSD, PP, Republicanos e MDB –, bem como seus representantes clássicos, conseguiram vitórias que os mantêm no comando da maioria dos Municípios brasileiros, onde habita a maior parte da população.   Isso se deve, para além da força das lideranças regionais, à farra obscena das emendas parlamentares, que impulsionou candidaturas por todos os Estados e Municípios brasileiros. É a consagração de um novo tipo de clientelismo, com recursos do governo federal, que vai se espraiando, apesar das limitações impostas pelas decisões do STF, através do Ministro Flavio Dino. Lembrando o clássico “Coronelismo, enxada e voto”, título da obra seminal de Victor Nunes Leal, publicada em 1948, que retrata a dinâmica política brasileira da Primeira República (1889-1930), pode-se observar que vivemos, hoje, a era do “coronelismo, emenda e voto”, como constatado pelo cientista político Carlos Melo.

O crescimento da extrema-direita impactou fortemente setores dos partidos do Centrão, que submergiram diante da força de mobilização e da alteração de padrões da cultura política por ela provocada. Mas há setores radicais no interior do Centrão que aderiram ao extremismo de direita devido à dinâmica própria do grupo, por conveniência ou, principalmente, por terem achado no espectro ideológico um abrigo para o que sempre foram e pensaram. A transferência em bloco desses grupos para o PL é obstaculizada pelas sempre complexas realidades regionais ou pelo temor de se verem aprisionados por esse extremismo, que os despreza, que deles sugará suas energias para depois os deixar fenecer, sem forças. É notório, até por uma definição clássica, que a extrema-direita inadmite dissidências ou personagens que não professem seu credo de forma catequizada. Os quadros da classe política que aderiram ao PL e ao seu extremismo, como o Senador Rogério Marinho (PL-RN), oriundo do ninho tucano, possuem um discurso mais moderado, beirando a conciliação, algo visto com reservas pela base, radicalizada desde sempre. Marinho e o próprio presidente nacional do PL, Valdemar Costa Neto, se equilibram, por conveniência e pressuposta esperteza, entre o extremismo radical de direita e a sempre presente conciliação, um traço característico das forças políticas brasileiras de todos os campos ideológicos, inclusive o PT. Além disso, a extrema-direita e o Centrão possuem um ponto no qual suas forças e interesses convergem: o ataque ao Estado, a transformação das instituições e do ordenamento jurídico, além do controle de seu aparato e de seus recursos financeiros. É o clássico patrimonialismo, uma das chagas do Brasil. Repetem, assim, os movimentos de continuidade que mantêm o Brasil prisioneiro de um imaginário e de um conjunto de instituições autoritárias e excludentes. Nas eleições de 2024, ambos se beneficiaram da subversão institucional que desviou para o Legislativo federal o controle de grande parte do Orçamento da União. São síndicos dessa desorganização institucional que, no limite, afeta de maneira mortal a cidadania, a República e o Estado Democrático de Direito.

Todo o conjunto de violências, desde a simbólica até a real, que caracterizou o “voto de cabresto” da Primeira República e dos seus coronéis – os chefes políticos regionais que definiam as eleições e a composição do Executivo e do Legislativo, o comportamento do Judiciário, além de exercerem um poder desmesurado sobre a população – foi desaparecendo ou sendo contido pelo jogo político mais sofisticado de um Brasil em grande transformação, a partir da segunda metade da década de 1940. Não sucumbiu por completo, mas perdeu parte de sua força, em razão da urbanização e das mudanças provocadas pelo crescimento da economia industrial numa sociedade de massas. As características do coronelismo, especialmente o mandonismo, mantiveram-se vivas, como uma tradição, em locais importantes do território nacional. Nessas áreas, o Estado, as liberdades, as garantias fundamentais e a democracia liberal brasileira ainda se assemelham a ectoplasmas. Mesmo confrontada com a presença dos meios de comunicação, das tecnologias da informação e da ingerência de órgãos públicos no sentido de estabelecer o respeito aos princípios constitucionais e às normas legais brasileiras, essa realidade persiste.  

Há, também, outros territórios dentro do Brasil que se mantêm à margem do Estado e de todo o ordenamento constitucional e infraconstitucional. São aqueles localizados, principalmente, nas cidades que se encontram sob o domínio das milícias e de outras organizações criminosas, que ocupam os espaços, propositalmente deixados livres pelo Estado, para sua operação e realização de seus negócios. Cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo possuem vastos territórios com populações vivendo sob uma ordem que não é a do Estado nacional, e isso sob o olhar cúmplice deste, que se ausenta e permite vicejar essa realidade cruel para milhões de pessoas, as quais desconhecem o que seja cidadania e direitos. É do conhecimento até do reino mineral e dos seres anencéfalos que essa realidade isenta o Estado da responsabilidade de gerir serviços e investimentos fundamentais, e que atinge, principalmente, populações pobres, que habitam territórios desprovidos da qualidade de vida da qual deveriam desfrutar. Essa realidade, de forma inconteste, aprofunda o fosso entre os múltiplos brasis que almejam formar uma pátria.

O Brasil que politicamente emerge das urnas é o mesmo país sempre perpassado por contradições e subordinado a todo um conjunto de forças ancestrais, originárias do processo histórico de formação do país, que impõe a subcidadania e a opressão brutal no plano das classes sociais. Para isso, se vale do peso do autoritarismo e da dominação, elementos cruciais de uma sociedade que, até agora, e sabe-se lá até quando, não consegue, ou não deseja, se livrar das amarras que impedem o seu pleno desenvolvimento e a mudança de paradigma da própria sociedade e do seu modo de organização e de representação política.   Nesse contexto, não é estranho que os grupos e partidos políticos de centro, de centro-direita, de direita e de extrema-direita, com férreos laços com a tradição autoritária e opressiva, se mantenham no comando da maioria das cidades brasileiras. É a expressão da política local, dos interesses paroquiais e mega-centrados na comunidade de onde advêm, e de cujo controle não abrem mão. A tradição, entretanto, molda-se aos novos tempos, incorporando elementos característicos do processo de radicalização do imaginário político, da cultura do ódio, das novas formas de geração de renda – apartadas das clássicas relações entre capital e trabalho, fortemente influenciadas por todo o receituário neoliberal, sua gramática, seu imaginário, seus cânones, sua estética e sua cosmogonia.

Desaparecem quaisquer perspectivas de uma discussão racional sobre o futuro de nossas cidades e da nossa sociedade. Aquilo que se criticava como vícios, como aberrações institucionais ou subversão do próprio sentido de interesse público na República está sendo corroborado por um conjunto de práticas. No limite, essas práticas tendem a transformar o Estado brasileiro, em seus três níveis de governo e de organização federativa, em um empreendimento, gerido por CEOs, gestores de fundos encarregados de promover a maior lucratividade possível para os investidores, no caso, os grandes grupos econômicos, que vão se afirmando como os senhores da nova era de mudança de paradigma. Para isso, muito contribuiu o processo de desmontagem do orçamento público e a subversão dos princípios constitucionais de competências dos três Poderes da República. Desde o período em que o Deputado Eduardo Cunha presidiu a Câmara dos Deputados, entre 2015 e 2016, já nos estertores do segundo governo da Presidenta Dilma Roussef (2015-2016), o Legislativo vem acumulando sob sua esfera de competência um volume considerável de recursos públicos orçamentários. Instituiu para si, mediante norma legal ou artimanha regimental, o direito de administrar e de aplicar tais recursos. Inexiste qualquer vínculo de racionalidade, de interesse público e de observância de programas e projetos estruturantes que guiem os investimentos da administração pública brasileira. Simplesmente, distribuem recursos públicos, conforme seus interesses próprios.

Durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), especialmente a partir de 2020, o Legislativo, na exata proporção dos problemas jurídicos de toda a ordem do ex-Presidente, foi pressionando, sob a forma de achaque, a liberação de mais recursos, criando um sem-número de aberrações para alocá-los e permitir, dessa forma, que um Deputado Federal ou um Senador usurpem poderes e prerrogativas que, constitucionalmente, se localizam na esfera do Poder Executivo. E usurpem valendo-se do mais imoral clientelismo e da completa ausência de racionalidade. O saldo disso, além da subversão dos institutos da República, se fez sentir, de forma impactante, nas eleições de 6 de outubro, com o aumento da influência dos parlamentares em razão dos recursos orçamentários por eles liberados diretamente. O apetite dos parlamentares por verbas públicas, votos e poder é de natureza pantagruélica e, mesmo sob a forte influência do neoliberalismo e de toda a sua “organização de mundo”, defendendo o entreguismo do patrimônio público e a redução drástica do Estado, algo caro ao neoliberalismo, não admitem prescindir do poder amealhado ao longo da última década de crise institucional e de redefinição, para pior, dos paradigmas de democracia liberal brasileira.

Eis o grande paradoxo, que confirma o pensamento do Professor José de Souza Martins: no Brasil da terceira década do século 21, retrocedemos institucionalmente aos níveis da Primeira República (1889-1930), com os chefes políticos locais, Deputados e Senadores, manipulando, sem controle formalístico algum, ao menos até a recente e necessária interferência do STF, recursos orçamentários maiores do que aqueles de que o Poder Executivo dispõe para investir de forma discricionária. O nosso sistema de governo é presidencialista, o que agrava ainda mais o caráter pornográfico e subversivo dessa operação danosa ao país, às suas instituições, à fazenda pública e ao interesse coletivo. Tudo isso, e é importante ressaltar, sob o olhar cínico e cúmplice das mídias corporativas, elas próprias controladas, nos Estados, por inúmeros Deputados e Senadores, concessionários desses serviços públicos. Prevalecem os elementos próprios de um continuísmo reafirmado com ênfase, que priva a sociedade de vivenciar experiências transformadoras e libertadoras. Não há que se desanimar com isso, pois é assim desde sempre, com raras exceções ao longo de nossa história. Não são embates entre esquerda e direita, mas entre civilização e barbárie, entre cidadania e opressão, entre o Estado Democrático e a autocracia, entre a tradição e a transformação, entre o caráter laico do Estado e o seu sequestro pelo fundamentalismo religioso. O país chafurda em uma lama pegajosa, que impede seus avanços no sentido de realizar transformações efetivas, mantendo-se paralisado enquanto um conjunto da classe política, mancomunada com o grande capital, depreda mortalmente o patrimônio e o interesse público. Não se discute, por omissão ou conveniência, nada que possa resgatar o país desse atoleiro, ao contrário.

O escritor português José Saramago, no inquietante e lúcido texto Verdade e Ilusão Democrática, de 2003, alerta para a crise da democracia liberal no ocidente e do Estado tal qual o conhecemos, diante de suas contradições e dos ataques constantes advindos de grupos de extrema-direita por todo o mundo, além   da ação deletéria do capitalismo em sua versão neoliberal. Segundo Saramago, é “impossível não nos apercebermos de que a chamada democracia ocidental entrou em um processo de transformação retrógada que é totalmente incapaz de parar e inverter, e cujo resultado tudo faz prever que seja a sua própria negação.” Saramago, ainda na primeira década do século 21, observando a realidade histórica e sua dinâmica, alerta para um futuro que se constrói aos nossos olhos, a cada dia, diante da impotência, da conivência e da concordância de cada vez mais pessoas por todo o ocidente.

Há saídas para os abalos sísmicos causados pelos movimentos destruidores dessas placas tectônicas, que provocam tamanha degeneração da democracia? Eis um questionamento que ainda carece de resposta. A demora da sua formulação é um insumo mortal para a vida das sociedades nesse regime político. Nunca como antes, ao menos desde o fascismo histórico dos anos 1920 e 1930, a democracia liberal esteve sob ataques tão severos, corroendo-se pela sua própria incapacidade de reação às estratégicas populistas de seus detratores. O momento requer atenção e reflexão, mas, fundamentalmente, ação afirmativa em defesa da democracia, uma herança da Grécia clássica, aperfeiçoada e engrossada pelas massas ao longo de séculos, em um processo de muita luta.

 

Fonte: Jornal GGN

 

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