Marcelo Siano Lima: As placas se movem no
cenário político nacional
Para o sociólogo José
de Souza Martins, os resultados do pleito do dia 6 de outubro demonstram que “o
Brasil continua, disfarçadamente, o mesmo que sempre foi. Num país polarizado,
como o nosso, não dá para fazer interpretação de resultados eleitorais com base
no pressuposto de que se trata de embate entre esquerda e direita”. A análise
de Martins diz muito sobre a realidade política e social brasileira, que, nas
urnas, periodicamente, expressa a força de sua pulsão avassaladora. As eleições
deste ano, como demonstram os resultados do primeiro turno, indicam que,
aparentemente, os movimentos das placas tectônicas da política brasileira deram
um giro de 360º, mudando, para nada mudar. Mas essa permanência tem, no caso
deste ano, algumas particularidades importantes, que precisam ser analisadas,
permitindo a real compreensão do movimento das forças políticas e da motivação
do eleitorado. Pode ser que estejamos diante de um movimento mais profundo e
complexo dessas placas tectônicas, muito além do embate entre esquerda e
direita, um elemento já constante de nossa história.
Indiscutivelmente, a
extrema-direita obteve resultados que a colocam como um player importante
da política brasileira. Trata-se de um fenômeno que, ao longo das três
primeiras décadas deste século, está se consolidando por diversos países do
ocidente, movido pelos interesses, pela agenda, pela organização e pelo
financiamento do movimento – a organização supranacional que
reúne os grupos radicais de extrema-direita de todos os matizes. Esse
crescimento vigoroso da extrema-direita nos diferentes países ocidentais tem
nas redes sociais um elemento impulsionador dos mais vigorosos. A
extrema-direita entendeu as redes, sua gramática e o seu ecossistema,
transformando-as em um instrumento de constante mobilização e de doutrinação
das massas, como produtores e difusores de conteúdos seletivos. Surfam,
como no fascismo histórico italiano e alemão dos anos 1920 e 1930, nos efeitos
da crise aguda do capitalismo, neste caso, com sua feição neoliberal, que
corroeu os modelos de organização e os pactos civilizatórios os quais, ao longo
de séculos, foram sendo construídos nos diferentes países.
Sua gramática é a do
ódio e propugnam pela antipolítica, pelo antissistema, pela destruição de “tudo
o que está aí”, que é projetado como opressor da livre expressão de pensamento
e de ação das pessoas. A extrema-direita, valendo-se com competência das redes
sociais e verbalizando toda a cosmogonia do populismo mais radical, soube
encantar as massas, autorizando a expressão de ideias e comportamentos
retrógrados e autoritários que remontam ao processo de formação social e
política do Brasil, mas que haviam sido contidos ao longo da história em razão
do avanço das lutas sociais, da democracia liberal, de suas instituições e de
seu ideário. Sua estratégia é óbvia: valer-se da democracia liberal, sempre
contraditória, para, alcançando o poder, moldar as instituições e o Estado aos
seus interesses, suprimindo as dissidências, cancelando-as, atiçando o
sentimento das massas a partir do acionamento de um imaginário brutal, que
desconhece limites e direitos. A experiência da Hungria, sob o governo de
Viktor Orbán, é o modelo mais bem acabado do êxito dessa estratégia aplicada
aos Estados Nacionais. É a autocracia elevada à condição de normalidade
em um Estado totalmente transformado ao longo do governo de Orbán.
Apesar da consolidação
política da extrema-direita, as fissuras em suas bases começaram a ser notadas
e potencializadas. Até então, os personagens que habitam os ecossistemas
digitais não tinham a relevância de que hoje passaram a desfrutar, nem eram percebidos
como players eles próprios, mas, sim, como apoiadores
fundamentais dos grupos políticos estabelecidos, além de operarem negócios
lucrativos em uma nova economia. A candidatura de Pablo Marçal à Prefeitura de
São Paulo expôs as vísceras dessas fissuras. No início do processo eleitoral
deste ano, a extrema-direita brasileira tinha no ex-Presidente Jair Bolsonaro
(PL) a sua grande referência em termos de liderança política. Mas Bolsonaro
impôs uma dinâmica própria à sua ação política. Ele é um ator advindo de
partidos de direita, integrantes do Centrão, tendo incorporado o pragmatismo e
a conduta nefasta desse grupo em sua ação parlamentar. Bolsonaro, sobre quem
também pesam sérias e fundadas suspeitas de ligações com as milícias do Rio de
Janeiro, tentou, uma vez no governo, a partir de janeiro de 2019, coadunar esse
seu passado com a agenda e a gramática radical da extrema-direita. Houve
resistências, e severas, aplacadas todas as vezes que se manifestavam pela
retórica de enfrentamento adotada pelo ex-Presidente, que sempre criava e
escalava sucessivas crises. Era a forma que tinha de ir se equilibrando entre o
seu passado de parlamentar conservador, de político com supostas ligações com
organizações criminosas, e o ideário da extrema-direita.
Bolsonaro foi,
inicialmente, um projeto do chamado “Partido Militar”, que jamais se conformou
com a perda do controle do Estado e de todo o seu aparato, em 1985, com o fim
da ditadura civil-militar iniciada em 1964. Fiéis a princípios históricos bem
enraizados, os militares não abandonaram a pretensão de manterem-se como
possuidores de um inexistente Poder Moderador, o que supostamente lhes recobre
de legitimidade, e de projetarem em si o papel de tutores da vida nacional,
como observa o historiador Francisco Carlos Teixeira. Bolsonaro foi o personagem
escolhido para representar esse projeto de poder, tendo agregado, com
competência, toda a gramática da extrema-direita e de seus variados grupos,
especialmente os fundamentalistas cristãos, católicos e protestantes. Em 2018,
no rastro da crise institucional iniciada em 2013, ele foi o personagem com que
o radicalismo de direita tanto sonhara, tendo condições de vitória nos pleitos
eleitorais majoritários.
Pablo Marçal não é
um outsider, e, sim, um quadro forjado nessa cultura política da
extrema-direita e das redes sociais, que usa do populismo mais explícito para
mobilizar as massas, valendo-se, também, de uma gramática que remete, de forma
seletiva, a passagens do Antigo Testamento bíblico. Ele trouxe para o mundo
político brasileiro a dinâmica da economia da atenção, oriunda das redes
sociais e baseada na curtida, no engajamento e nos lucros financeiros que daí
advêm. Marçal, a propósito, é um homem que amealha sua riqueza valendo-se de
sua imagem e de produtos comercializados em suas redes sociais. O funcionamento
das engrenagens dessa economia da atenção exige que se escale na confrontação
de forma constante. O populismo radical de direita, oriundo do ecossistema
digital, está conseguindo ocupar os espaços públicos, e com grande aderência de
pessoas, o que preocupa os setores estabelecidos, de todos os matizes
ideológicos. A proliferação de atores políticos como Marçal está
sendo protegida e incentivada pela falta de ação da Justiça Eleitoral e pelo
desejo das mídias corporativas de avançarem sobre o capital acumulado pelos
autodenominados influenciadores digitais. Essa é uma realidade que se
apresenta, cada vez mais, desprovida de ética e de responsabilidade política.
Segundo a pesquisa do Instituto Quaest, realizada com duas mil pessoas, entre
os dias 25 e 29 de setembro deste ano, Marçal, símbolo dessa economia da
atenção, numa disputa presidencial, hoje, desponta como um player muito
competitivo, estando bem atrás do Presidente Lula (PT) na intenção de votos,
mas com vantagem sobre o atual Governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas
(Republicanos), o nome em torno do qual os setores conservadores estão se
reunindo na busca de uma candidatura viável nas próximas eleições
presidenciais. Isso acende o alerta vermelho nos partidos e grupos políticos
conservadores, os quais se mostram atordoados com a emergência de um personagem
que, usando das redes sociais, soube apropriar-se da liderança de ampla parcela
do eleitorado brasileiro.
As diferenças entre
Marçal ou similares e Bolsonaro não são cosméticas, mas profundas. Marçal
expressa o sentimento raiz da extrema-direita, sempre avessa a composições com
as forças políticas tradicionais e com toda a institucionalidade. Mas,
pragmaticamente, não abre mão dos benefícios de toda ordem proporcionados pelo
Estado e seu aparato, que deseja controlar e aparelhar, mas o sataniza, como
nos anos 1920 e 1930, apresentando-o como o principal entrave para suas ações
projetadas como “libertadoras”. Essa extrema-direita raiz irá implodir o estado
liberal tão logo possa, pois esse é o seu propósito. Observem, com a devida
atenção, o que vem fazendo Javier Milei, na Argentina, desde sua posse na
presidência, ocorrida em dezembro de 2023, e verão o estrago desse projeto
sendo operacionalizado. Nesse sentido, o período de governo de Bolsonaro, entre
2019 e 2022, é visto por muitos dos extremistas como uma oportunidade perdida
para o avanço de suas agendas regressivas e autocráticas. Bolsonaro, um ator
forjado no que de mais tradicional e desviante existe no mundo político,
mostrou-se, por força das circunstâncias, um aliancista, indo ao encontro das
forças conservadoras como fiadoras da sua permanência no poder, especialmente
após 2020. Esse movimento do “mito” é imperdoável para o extremismo raiz, que
se vê puro, quase um “eleito” – no sentido bíblico –, avesso a acordos de
quaisquer tipos, aferrando-se ao ódio e à agressividade para mobilizar as
massas em torno de seus interesses. Não se pode negar que a extrema-direita age
de forma agressiva e impune na construção de seus projetos, desprovida de
responsabilidades, mesmo mínimas, para com a cidadania, cujas emoções mais
profundas ela toca e mobiliza, catequizando-a com sua gramática e lhe dando a
estética necessária para o papel que, desejam, ela desempenhe.
Mas há outro ator de
significativa importância que foi trazido para o centro dessas desavenças: o
fundamentalismo cristão, católico e protestante. Os embates entre Marçal e o
Pastor Silas Malafaia, o mais estridente defensor da agenda de extrema-direita,
chegaram a um ponto bastante crítico. Não apenas pela candidatura de Marçal à
Prefeitura paulistana, confrontando-se com o amplo arco de aliança conservadora
formada em torno do atual Prefeito, Ricardo Nunes (MDB). Marçal, de uma forma
bastante afirmativa, avançou sobre o eleitorado cristão fundamentalista,
rivalizando com a institucionalidade encarnada por pastores como Malafaia e
padres católicos. Sua pregação de prosperidade, a habilidade em operar a
economia da atenção, e seu projeto de poder rivalizam com os das lideranças
fundamentalistas, que passaram a temer essa ação agressiva de Marçal sobre uma
base que julgavam controlar. Marçal, um leigo que se diz evangélico, conseguiu
falar e estabelecer laços de representatividade junto a setores da classe trabalhadora,
dos desalentados, dos precarizados, dos sempre insatisfeitos e dos setores mais
radicais da extrema-direita Daí, suas altercações com Malafaia acabaram por
produzir mais um elemento de desestruturação do campo de extrema-direita, que
até então se apresentava monolítico. Disputa-se a liderança sobre o mercado da
fé do campo fundamentalista cristão, até agora controlado por pastores e
padres.
Apesar do crescimento
eleitoral da extrema-direita (embora com as mencionadas fissuras e contendas
internas), bem como da transposição do universo digital para a vida real de
pessoas originárias do complexo ecossistema das redes, em termos numéricos, os partidos
do chamado Centrão – PSD, PP, Republicanos e MDB –, bem como seus
representantes clássicos, conseguiram vitórias que os mantêm no comando da
maioria dos Municípios brasileiros, onde habita a maior parte da população.
Isso se deve, para além da força das lideranças regionais, à farra
obscena das emendas parlamentares, que impulsionou candidaturas por todos os
Estados e Municípios brasileiros. É a consagração de um novo tipo de
clientelismo, com recursos do governo federal, que vai se espraiando, apesar
das limitações impostas pelas decisões do STF, através do Ministro Flavio Dino.
Lembrando o clássico “Coronelismo, enxada e voto”, título da obra seminal de
Victor Nunes Leal, publicada em 1948, que retrata a dinâmica política
brasileira da Primeira República (1889-1930), pode-se observar que vivemos,
hoje, a era do “coronelismo, emenda e voto”, como constatado pelo cientista
político Carlos Melo.
O crescimento da
extrema-direita impactou fortemente setores dos partidos do Centrão, que
submergiram diante da força de mobilização e da alteração de padrões da cultura
política por ela provocada. Mas há setores radicais no interior do Centrão que
aderiram ao extremismo de direita devido à dinâmica própria do grupo, por
conveniência ou, principalmente, por terem achado no espectro ideológico um
abrigo para o que sempre foram e pensaram. A transferência em bloco desses
grupos para o PL é obstaculizada pelas sempre complexas realidades regionais ou
pelo temor de se verem aprisionados por esse extremismo, que os despreza, que
deles sugará suas energias para depois os deixar fenecer, sem forças. É
notório, até por uma definição clássica, que a extrema-direita inadmite
dissidências ou personagens que não professem seu credo de forma catequizada.
Os quadros da classe política que aderiram ao PL e ao seu extremismo, como o
Senador Rogério Marinho (PL-RN), oriundo do ninho tucano, possuem um discurso
mais moderado, beirando a conciliação, algo visto com reservas pela base,
radicalizada desde sempre. Marinho e o próprio presidente nacional do PL,
Valdemar Costa Neto, se equilibram, por conveniência e pressuposta esperteza,
entre o extremismo radical de direita e a sempre presente conciliação, um traço
característico das forças políticas brasileiras de todos os campos ideológicos,
inclusive o PT. Além disso, a extrema-direita e o Centrão possuem um ponto no
qual suas forças e interesses convergem: o ataque ao Estado, a transformação
das instituições e do ordenamento jurídico, além do controle de seu aparato e
de seus recursos financeiros. É o clássico patrimonialismo, uma das chagas do
Brasil. Repetem, assim, os movimentos de continuidade que mantêm o Brasil
prisioneiro de um imaginário e de um conjunto de instituições autoritárias e
excludentes. Nas eleições de 2024, ambos se beneficiaram da subversão
institucional que desviou para o Legislativo federal o controle de grande parte
do Orçamento da União. São síndicos dessa desorganização institucional que, no
limite, afeta de maneira mortal a cidadania, a República e o Estado Democrático
de Direito.
Todo o conjunto de
violências, desde a simbólica até a real, que caracterizou o “voto de cabresto”
da Primeira República e dos seus coronéis – os chefes políticos regionais que
definiam as eleições e a composição do Executivo e do Legislativo, o comportamento
do Judiciário, além de exercerem um poder desmesurado sobre a população – foi
desaparecendo ou sendo contido pelo jogo político mais sofisticado de um Brasil
em grande transformação, a partir da segunda metade da década de 1940. Não
sucumbiu por completo, mas perdeu parte de sua força, em razão da urbanização e
das mudanças provocadas pelo crescimento da economia industrial numa sociedade
de massas. As características do coronelismo, especialmente o mandonismo,
mantiveram-se vivas, como uma tradição, em locais importantes do território
nacional. Nessas áreas, o Estado, as liberdades, as garantias fundamentais e a
democracia liberal brasileira ainda se assemelham a ectoplasmas. Mesmo
confrontada com a presença dos meios de comunicação, das tecnologias da informação
e da ingerência de órgãos públicos no sentido de estabelecer o respeito aos
princípios constitucionais e às normas legais brasileiras, essa realidade
persiste.
Há, também, outros
territórios dentro do Brasil que se mantêm à margem do Estado e de todo o
ordenamento constitucional e infraconstitucional. São aqueles localizados,
principalmente, nas cidades que se encontram sob o domínio das milícias e de
outras organizações criminosas, que ocupam os espaços, propositalmente deixados
livres pelo Estado, para sua operação e realização de seus negócios. Cidades
como o Rio de Janeiro e São Paulo possuem vastos territórios com populações
vivendo sob uma ordem que não é a do Estado nacional, e isso sob o olhar
cúmplice deste, que se ausenta e permite vicejar essa realidade cruel para
milhões de pessoas, as quais desconhecem o que seja cidadania e direitos. É do
conhecimento até do reino mineral e dos seres anencéfalos que essa realidade
isenta o Estado da responsabilidade de gerir serviços e investimentos
fundamentais, e que atinge, principalmente, populações pobres, que habitam
territórios desprovidos da qualidade de vida da qual deveriam desfrutar. Essa
realidade, de forma inconteste, aprofunda o fosso entre os múltiplos brasis que
almejam formar uma pátria.
O Brasil que
politicamente emerge das urnas é o mesmo país sempre perpassado por
contradições e subordinado a todo um conjunto de forças ancestrais, originárias
do processo histórico de formação do país, que impõe a subcidadania e a
opressão brutal no plano das classes sociais. Para isso, se vale do peso do
autoritarismo e da dominação, elementos cruciais de uma sociedade que, até
agora, e sabe-se lá até quando, não consegue, ou não deseja, se livrar das
amarras que impedem o seu pleno desenvolvimento e a mudança de paradigma da
própria sociedade e do seu modo de organização e de representação política.
Nesse contexto, não é estranho que os grupos e partidos políticos de
centro, de centro-direita, de direita e de extrema-direita, com férreos laços
com a tradição autoritária e opressiva, se mantenham no comando da maioria das
cidades brasileiras. É a expressão da política local, dos interesses paroquiais
e mega-centrados na comunidade de onde advêm, e de cujo controle não abrem mão.
A tradição, entretanto, molda-se aos novos tempos, incorporando elementos
característicos do processo de radicalização do imaginário político, da cultura
do ódio, das novas formas de geração de renda – apartadas das clássicas
relações entre capital e trabalho, fortemente influenciadas por todo o
receituário neoliberal, sua gramática, seu imaginário, seus cânones, sua
estética e sua cosmogonia.
Desaparecem quaisquer
perspectivas de uma discussão racional sobre o futuro de nossas cidades e da
nossa sociedade. Aquilo que se criticava como vícios, como aberrações
institucionais ou subversão do próprio sentido de interesse público na
República está sendo corroborado por um conjunto de práticas. No limite, essas
práticas tendem a transformar o Estado brasileiro, em seus três níveis de
governo e de organização federativa, em um empreendimento, gerido por CEOs,
gestores de fundos encarregados de promover a maior lucratividade possível para
os investidores, no caso, os grandes grupos econômicos, que vão se afirmando
como os senhores da nova era de mudança de paradigma. Para isso, muito
contribuiu o processo de desmontagem do orçamento público e a subversão dos
princípios constitucionais de competências dos três Poderes da República. Desde
o período em que o Deputado Eduardo Cunha presidiu a Câmara dos Deputados,
entre 2015 e 2016, já nos estertores do segundo governo da Presidenta Dilma
Roussef (2015-2016), o Legislativo vem acumulando sob sua esfera de competência
um volume considerável de recursos públicos orçamentários. Instituiu para si,
mediante norma legal ou artimanha regimental, o direito de administrar e de
aplicar tais recursos. Inexiste qualquer vínculo de racionalidade, de interesse
público e de observância de programas e projetos estruturantes que guiem os
investimentos da administração pública brasileira. Simplesmente, distribuem
recursos públicos, conforme seus interesses próprios.
Durante o governo de
Jair Bolsonaro (PL), especialmente a partir de 2020, o Legislativo, na exata
proporção dos problemas jurídicos de toda a ordem do ex-Presidente, foi
pressionando, sob a forma de achaque, a liberação de mais recursos, criando um
sem-número de aberrações para alocá-los e permitir, dessa forma, que um
Deputado Federal ou um Senador usurpem poderes e prerrogativas que,
constitucionalmente, se localizam na esfera do Poder Executivo. E usurpem
valendo-se do mais imoral clientelismo e da completa ausência de racionalidade.
O saldo disso, além da subversão dos institutos da República, se fez sentir, de
forma impactante, nas eleições de 6 de outubro, com o aumento da influência dos
parlamentares em razão dos recursos orçamentários por eles liberados
diretamente. O apetite dos parlamentares por verbas públicas, votos e poder é
de natureza pantagruélica e, mesmo sob a forte influência do neoliberalismo e
de toda a sua “organização de mundo”, defendendo o entreguismo do patrimônio
público e a redução drástica do Estado, algo caro ao neoliberalismo, não
admitem prescindir do poder amealhado ao longo da última década de crise
institucional e de redefinição, para pior, dos paradigmas de democracia liberal
brasileira.
Eis o grande paradoxo,
que confirma o pensamento do Professor José de Souza Martins: no Brasil da
terceira década do século 21, retrocedemos institucionalmente aos níveis da
Primeira República (1889-1930), com os chefes políticos locais, Deputados e
Senadores, manipulando, sem controle formalístico algum, ao menos até a recente
e necessária interferência do STF, recursos orçamentários maiores do que
aqueles de que o Poder Executivo dispõe para investir de forma discricionária.
O nosso sistema de governo é presidencialista, o que agrava ainda mais o
caráter pornográfico e subversivo dessa operação danosa ao país, às suas
instituições, à fazenda pública e ao interesse coletivo. Tudo isso, e é
importante ressaltar, sob o olhar cínico e cúmplice das mídias corporativas,
elas próprias controladas, nos Estados, por inúmeros Deputados e Senadores,
concessionários desses serviços públicos. Prevalecem os elementos próprios de
um continuísmo reafirmado com ênfase, que priva a sociedade de vivenciar
experiências transformadoras e libertadoras. Não há que se desanimar com isso,
pois é assim desde sempre, com raras exceções ao longo de nossa história. Não
são embates entre esquerda e direita, mas entre civilização e barbárie, entre
cidadania e opressão, entre o Estado Democrático e a autocracia, entre a
tradição e a transformação, entre o caráter laico do Estado e o seu sequestro
pelo fundamentalismo religioso. O país chafurda em uma lama pegajosa, que
impede seus avanços no sentido de realizar transformações efetivas, mantendo-se
paralisado enquanto um conjunto da classe política, mancomunada com o grande
capital, depreda mortalmente o patrimônio e o interesse público. Não se
discute, por omissão ou conveniência, nada que possa resgatar o país desse
atoleiro, ao contrário.
O escritor português
José Saramago, no inquietante e lúcido texto Verdade e Ilusão
Democrática, de 2003, alerta para a crise da democracia liberal no ocidente
e do Estado tal qual o conhecemos, diante de suas contradições e dos ataques
constantes advindos de grupos de extrema-direita por todo o mundo, além
da ação deletéria do capitalismo em sua versão neoliberal. Segundo
Saramago, é “impossível não nos apercebermos de que a chamada democracia
ocidental entrou em um processo de transformação retrógada que é totalmente
incapaz de parar e inverter, e cujo resultado tudo faz prever que seja a sua
própria negação.” Saramago, ainda na primeira década do século 21, observando a
realidade histórica e sua dinâmica, alerta para um futuro que se constrói aos
nossos olhos, a cada dia, diante da impotência, da conivência e da concordância
de cada vez mais pessoas por todo o ocidente.
Há saídas para os
abalos sísmicos causados pelos movimentos destruidores dessas placas
tectônicas, que provocam tamanha degeneração da democracia? Eis um
questionamento que ainda carece de resposta. A demora da sua formulação é um
insumo mortal para a vida das sociedades nesse regime político. Nunca como
antes, ao menos desde o fascismo histórico dos anos 1920 e 1930, a democracia
liberal esteve sob ataques tão severos, corroendo-se pela sua própria
incapacidade de reação às estratégicas populistas de seus detratores. O momento
requer atenção e reflexão, mas, fundamentalmente, ação afirmativa em defesa da
democracia, uma herança da Grécia clássica, aperfeiçoada e engrossada pelas
massas ao longo de séculos, em um processo de muita luta.
Fonte: Jornal GGN
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