Brasil de extremos climáticos: a natureza
dá conta de se regenerar?
Após as enchentes
históricas no Rio Grande do Sul, especialistas começaram a contabilizar os
danos, comparando o evento ao impacto do Furacão Katrina em New Orleans,
Estados Unidos, em 2005. O tempo de recuperação da economia do estado foi
estimado em uma década. Mas e quanto ao solo arrastado junto da vegetação e
animais, que levou para casas de Porto Alegre argilas constituídas há mais de
um século? O tempo na natureza é outro e isso também vale para sua recuperação.
Um exemplo é a
população de botos na região de Tefé, Amazonas, que sofreu morte expressiva na
seca de 2023 e, neste ano, voltou a apresentar um cenário preocupante: uma
morte por dia em um período de uma semana. A região Norte tem passado por secas
extremas, as ondas de calor e estiagem acentuada no Pantanal criam cenários
propícios para a propagação de incêndios com alta mortandade, e o Rio Grande do
Sul ainda tenta contabilizar os danos causados à fauna e à flora da região. A
biodiversidade brasileira está em risco.
O Pantanal, a maior
planície alagada do mundo, acumula déficits de chuva desde o verão de
2019/2020. A extensão do fogo em 2024 chegou a ser 54% superior à do período de
2020. Esse cenário de seca transforma a vegetação nativa, camalotes e outras
plantas flutuantes, aponta José Eugênio Figueira, do departamento de Genética,
Ecologia e Evolução do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFMG: “essa
vegetação vai sendo incorporada no solo, camada após camada e se torna um solo
muito orgânico, com densidade baixa, poroso”.
É essa matéria
orgânica que torna as queimadas em incêndios de elevada intensidade e difíceis
de controlar. Eles se espalham rapidamente, subindo também para a copa das
árvores e subterrâneo. Neste cenário de devastação, a fauna fica muito
vulnerável: “cobras e jacarés, por exemplo, são animais ectotérmicos – a
temperatura corporal deles acompanha a temperatura ambiente. Animais de pequeno
porte como gambás, tamanduás, macacos, animais mais lentos, como tartarugas,
também são pegos pelo fogo”.
E mesmo os animais que
fogem do fogo, como onças que podem farejar a fumaça, caem em braseiros
formados pelos incêndios subterrâneos. Muitos também morrem pela intoxicação
dos gases nocivos que são expostos. E os que sobrevivem? Para onde foi o mundo
deles? “Eles já estão fragilizados, aí vem a fome e estresse provocado pela
falta de água e comida. Muitos acabam morrendo”, completa.
Especialistas do
ICMBio contabilizam que, nos incêndios de 2020, cerca de 75 milhões de animais
vertebrados e 4,6 bilhões de invertebrados foram afetados diretamente e
indiretamente. O bioma, após quatro anos, ainda não se recuperou e as espécies
não voltaram ao tamanho que eram.
Assim como Pantanal, a
Amazônia é um bioma acostumado com períodos de altas e baixas dos rios. O que
era natural e marcava a floração e frutificação de diversas árvores, hoje gera
dúvida nos especialistas sobre como será o futuro das espécies – se elas vão se
adaptar e existir nas próximas décadas.
No mesmo ano, o Acre
viveu a maior enchente da sua história e a maior seca em mais de meio século. O
rio Negro chegou a registrar seu menor nível em mais de 120 anos de medição e a
Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) confirmou que todos os
1.248.000 km² de área do Pará estão sob influência da seca em algum nível.
Em Tefé, as plantas
têm seus ciclos de frutificação, perda e nascimento de folhas em processos
ligados ao clima e as cheias da região. Porém, o cenário agora na região da
bacia do rio Solimões é de seca. “Muitas espécies têm dispersão de frutos
ligados às cheias. Se essas cheias não acontecem, como isso vai afetar as
plantas? E os animais que dependem dos frutos dessas plantas?”, questiona
Darlene Gris, pesquisadora do Instituto de Desenvolvimento Sustentável
Mamirauá.
Darlene também pontua
outra característica da relação da flora com as cheias: a captura de carbono.
“Se as cheias são modificadas, como vai ficar o ritmo desse processo? A gente
trabalha aqui no nosso grupo com modelagem para entender o que as mudanças climáticas
podem ocasionar na floresta”, explica.
O aumento da
temperatura e a diminuição das chuvas, por exemplo, fez com que algumas
espécies chamadas de “generalistas” expandissem suas áreas de ocorrências.
“Elas vão acabar tomando o espaço de outras áreas florestais”, relata, “e o
contrário é também possível: espécies mais sensíveis podem deixar de existir”.
Para Darlene, o tempo
de estudo dos impactos dos eventos extremos sobre a fauna e flora é longo,
primeiro pela falta de mãos em monitorar impactos cada vez mais frequentes,
segundo pela análise a longo prazo. “Não é só a questão da mortandade de
animais e plantas. Tem efeitos que vão demorar para aparecer, por exemplo, os
ciclos biogeoquímicos”, afirma.
Se fogo e estiagem
alteram o equilíbrio socioambiental, as enchentes também mudam paisagens e
ciclos naturais. Ainda se contabiliza os impactos das fortes chuvas do primeiro
semestre no Rio Grande do Sul, mas análises já mostram a migração de peixes e
anfíbios, carregados para fora de seu habitat com a força da água.
As inundações trazem
impactos variados à biodiversidade: mamíferos terrestres podem até saber nadar,
mas não conseguem por um longo período de tempo. Anfíbios e répteis são
melhores nadadores, mas a força das correntezas acaba afogando eles. Já os
insetos são os mais vulneráveis. Para alguns, a fauna aquática do Rio Grande do
Sul, em geral, levará até dois anos para se recuperar.
Já o solo é outra
história. Segundo Valério De Patta Pillar, professor do Departamento de
Ecologia do Instituto de Biociências da UFRGS, o processo erosivo na região foi
tamanho que deve-se levar décadas, até séculos, para se recuperar. “É de uma
outra ordem de magnitude, não é o tempo que leva para crescer e restaurar a
vegetação”, afirma.
Valério aponta que a
água adquiriu força e volume muito grande nas partes altas da bacia do Taquari
que, sem cobertura da vegetação nativa, carregou campos de commodities, em
especial, de soja. Análises posteriores mostram que o lado menos preservado do Vale
do Taquari foi o mais atingido e que a vegetação nativa poderia ter reduzido o
impacto da catástrofe.
As variações
climáticas são normais e fazem parte do ciclo biológico das plantas e animais.
Porém, o que vemos atualmente é a acentuação desses eventos, promovidos
especialmente pela queima de combustíveis fósseis e desmatamento. Não há espaço
para a natureza se regenerar. Os distúrbios ecológicos que vemos acontecer nos
últimos anos no Pantanal, Amazônia e Pampa são reflexos de um todo, expresso na
última atualização do “Planeta Vivo 2024: Um Sistema em Perigo”, da ong WWF.
O mundo perdeu 73% da
biodiversidade em 50 anos, a América Latina e o Caribe registraram as maiores
quedas médias nas populações de animais selvagens, com uma impressionante
redução de 95%. Não há mais tempo, ações de proteção à fauna e flora são
urgentes.
• A Terra entra em nova fase crítica da
crise climática
Uma coalizão
internacional de cientistas conclui, em seu relatório anual publicado na
BioScience, que o agravamento dos sinais vitais da Terra indica uma “nova fase
crítica e imprevisível da crise climática” e que “uma ação decisiva é
necessária e rápida”.
O relatório descreve
áreas onde a mudança de política é necessária – energia, poluentes, natureza,
alimentos e economia. O relatório é intitulado “The 2024 State of the Climate Report: Perilous
Times on Planet Earth”.
Dos 35 sinais vitais
planetários que os cientistas usam para rastrear as mudanças climáticas
anualmente, 25 estão em extremos recordes.
Os três dias mais
quentes de todos os tempos vieram em julho de 2024, e as emissões de
combustíveis fósseis estão em alta, assim como a população humana e a população
de gado ruminantes, mostra o relatório climático.
A população humana
está aumentando a uma taxa de aproximadamente 200.000 pessoas por dia, e o
número de animais ruminantes – mamíferos de cascos, como gado, ovelhas e
cabras, que produzem gases de efeito estufa e são intensivos em energia para
criar – aumenta em cerca de 170.000 por dia.
O consumo anual de
combustíveis fósseis subiu 1,5% em 2023, principalmente devido a grandes saltos
no carvão (1,6%) e no uso de petróleo (2,5%), indica o relatório.
O uso de energia
renovável também aumentou em 2023 – o consumo solar e eólico juntos aumentaram
15% em relação a 2022. Mas o uso de energias renováveis é apenas um décimo
quarto do uso de combustíveis fósseis, e o recente aumento no uso de energias
renováveis é atribuível principalmente ao aumento da demanda e não ao fato de
estarem substituindo os combustíveis fósseis.
O relatório mostra que
a perda anual de cobertura arbórea em todo o mundo aumentou de 22,8 milhões de
hectares em 2022 para 28,3 milhões em 2023, e com base nas médias globais do
ano, as concentrações de dióxido de carbono atmosférico e metano estão em alta
histórica.
Outros pontos de
preocupação do relatório são:
o A temperatura média da superfície da
Terra está em alta.
o A acidez do oceano e o conteúdo de
calor, bem como o nível médio global do mar, estão em extremos recordes.
o A massa de gelo da Groenlândia, a massa
de gelo da Antártida e a espessura média das geleiras estão em níveis mais
baixos de todos os tempos.
o Foram identificados 28 ciclos de
feedback amplificador – aqueles que exacerbam a mudança climática, como o
descongelamento do permafrost.
o Em 2023, houve uma estimativa de 2.325
mortes relacionadas ao calor nos Estados Unidos, um aumento de 117% em relação
a 1999.
Os cientistas dizem
que seu objetivo é “informar insights claros e baseados em evidências que
inspirem respostas informadas e ousadas de cidadãos a pesquisadores e líderes
mundiais”. Especificamente, eles recomendam a rápida adoção de políticas que:
o Implementem um preço global do carbono
que poderia limitar as emissões dos ricos, ao mesmo tempo em que potencialmente
fornece financiamento para novas ações climáticas.
o Melhorem a eficiência energética e a
conservação, substituindo os combustíveis fósseis por fontes renováveis de
baixo carbono.
o Limitem as emissões de gases de efeito
estufa, incluindo aqueles categorizados como poluentes de curto prazo, como o
metano.
o Protejam e restaurem ecossistemas
biodiversos, que desempenham papéis fundamentais no ciclo e armazenamento de
carbono.
o Incentivem uma mudança em direção a
hábitos alimentares que enfatizem os alimentos à base de plantas.
o Promovam a economia ecológica
sustentável e reduzir muito o consumo excessivo e o desperdício pelos ricos.
o Integrem a educação sobre mudanças
climáticas em currículos globais para aumentar a conscientização, a
alfabetização e a ação.
O futuro da humanidade
depende da criatividade, de parâmetros éticos e da perseverança. Se as gerações
futuras herdarão o que deixarmos, é necessária uma ação decisiva e rápida.
Fonte: ClimaInfo/Eco
Debate
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