quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Brasil de extremos climáticos: a natureza dá conta de se regenerar?

Após as enchentes históricas no Rio Grande do Sul, especialistas começaram a contabilizar os danos, comparando o evento ao impacto do Furacão Katrina em New Orleans, Estados Unidos, em 2005. O tempo de recuperação da economia do estado foi estimado em uma década. Mas e quanto ao solo arrastado junto da vegetação e animais, que levou para casas de Porto Alegre argilas constituídas há mais de um século? O tempo na natureza é outro e isso também vale para sua recuperação.

Um exemplo é a população de botos na região de Tefé, Amazonas, que sofreu morte expressiva na seca de 2023 e, neste ano, voltou a apresentar um cenário preocupante: uma morte por dia em um período de uma semana. A região Norte tem passado por secas extremas, as ondas de calor e estiagem acentuada no Pantanal criam cenários propícios para a propagação de incêndios com alta mortandade, e o Rio Grande do Sul ainda tenta contabilizar os danos causados à fauna e à flora da região. A biodiversidade brasileira está em risco.

O Pantanal, a maior planície alagada do mundo, acumula déficits de chuva desde o verão de 2019/2020. A extensão do fogo em 2024 chegou a ser 54% superior à do período de 2020. Esse cenário de seca transforma a vegetação nativa, camalotes e outras plantas flutuantes, aponta José Eugênio Figueira, do departamento de Genética, Ecologia e Evolução do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFMG: “essa vegetação vai sendo incorporada no solo, camada após camada e se torna um solo muito orgânico, com densidade baixa, poroso”.

É essa matéria orgânica que torna as queimadas em incêndios de elevada intensidade e difíceis de controlar. Eles se espalham rapidamente, subindo também para a copa das árvores e subterrâneo. Neste cenário de devastação, a fauna fica muito vulnerável: “cobras e jacarés, por exemplo, são animais ectotérmicos – a temperatura corporal deles acompanha a temperatura ambiente. Animais de pequeno porte como gambás, tamanduás, macacos, animais mais lentos, como tartarugas, também são pegos pelo fogo”.

E mesmo os animais que fogem do fogo, como onças que podem farejar a fumaça, caem em braseiros formados pelos incêndios subterrâneos. Muitos também morrem pela intoxicação dos gases nocivos que são expostos. E os que sobrevivem? Para onde foi o mundo deles? “Eles já estão fragilizados, aí vem a fome e estresse provocado pela falta de água e comida. Muitos acabam morrendo”, completa.

Especialistas do ICMBio contabilizam que, nos incêndios de 2020, cerca de 75 milhões de animais vertebrados e 4,6 bilhões de invertebrados foram afetados diretamente e indiretamente. O bioma, após quatro anos, ainda não se recuperou e as espécies não voltaram ao tamanho que eram.

Assim como Pantanal, a Amazônia é um bioma acostumado com períodos de altas e baixas dos rios. O que era natural e marcava a floração e frutificação de diversas árvores, hoje gera dúvida nos especialistas sobre como será o futuro das espécies – se elas vão se adaptar e existir nas próximas décadas.

No mesmo ano, o Acre viveu a maior enchente da sua história e a maior seca em mais de meio século. O rio Negro chegou a registrar seu menor nível em mais de 120 anos de medição e a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) confirmou que todos os 1.248.000 km² de área do Pará estão sob influência da seca em algum nível.

Em Tefé, as plantas têm seus ciclos de frutificação, perda e nascimento de folhas em processos ligados ao clima e as cheias da região. Porém, o cenário agora na região da bacia do rio Solimões é de seca. “Muitas espécies têm dispersão de frutos ligados às cheias. Se essas cheias não acontecem, como isso vai afetar as plantas? E os animais que dependem dos frutos dessas plantas?”, questiona Darlene Gris, pesquisadora do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá.

Darlene também pontua outra característica da relação da flora com as cheias: a captura de carbono. “Se as cheias são modificadas, como vai ficar o ritmo desse processo? A gente trabalha aqui no nosso grupo com modelagem para entender o que as mudanças climáticas podem ocasionar na floresta”, explica.

O aumento da temperatura e a diminuição das chuvas, por exemplo, fez com que algumas espécies chamadas de “generalistas” expandissem suas áreas de ocorrências. “Elas vão acabar tomando o espaço de outras áreas florestais”, relata, “e o contrário é também possível: espécies mais sensíveis podem deixar de existir”.

Para Darlene, o tempo de estudo dos impactos dos eventos extremos sobre a fauna e flora é longo, primeiro pela falta de mãos em monitorar impactos cada vez mais frequentes, segundo pela análise a longo prazo. “Não é só a questão da mortandade de animais e plantas. Tem efeitos que vão demorar para aparecer, por exemplo, os ciclos biogeoquímicos”, afirma.

Se fogo e estiagem alteram o equilíbrio socioambiental, as enchentes também mudam paisagens e ciclos naturais. Ainda se contabiliza os impactos das fortes chuvas do primeiro semestre no Rio Grande do Sul, mas análises já mostram a migração de peixes e anfíbios, carregados para fora de seu habitat com a força da água.

As inundações trazem impactos variados à biodiversidade: mamíferos terrestres podem até saber nadar, mas não conseguem por um longo período de tempo. Anfíbios e répteis são melhores nadadores, mas a força das correntezas acaba afogando eles. Já os insetos são os mais vulneráveis. Para alguns, a fauna aquática do Rio Grande do Sul, em geral, levará até dois anos para se recuperar.

Já o solo é outra história. Segundo Valério De Patta Pillar, professor do Departamento de Ecologia do Instituto de Biociências da UFRGS, o processo erosivo na região foi tamanho que deve-se levar décadas, até séculos, para se recuperar. “É de uma outra ordem de magnitude, não é o tempo que leva para crescer e restaurar a vegetação”, afirma.

Valério aponta que a água adquiriu força e volume muito grande nas partes altas da bacia do Taquari que, sem cobertura da vegetação nativa, carregou campos de commodities, em especial, de soja. Análises posteriores mostram que o lado menos preservado do Vale do Taquari foi o mais atingido e que a vegetação nativa poderia ter reduzido o impacto da catástrofe.

As variações climáticas são normais e fazem parte do ciclo biológico das plantas e animais. Porém, o que vemos atualmente é a acentuação desses eventos, promovidos especialmente pela queima de combustíveis fósseis e desmatamento. Não há espaço para a natureza se regenerar. Os distúrbios ecológicos que vemos acontecer nos últimos anos no Pantanal, Amazônia e Pampa são reflexos de um todo, expresso na última atualização do “Planeta Vivo 2024: Um Sistema em Perigo”, da ong WWF.

O mundo perdeu 73% da biodiversidade em 50 anos, a América Latina e o Caribe registraram as maiores quedas médias nas populações de animais selvagens, com uma impressionante redução de 95%. Não há mais tempo, ações de proteção à fauna e flora são urgentes.

 

•        A Terra entra em nova fase crítica da crise climática

Uma coalizão internacional de cientistas conclui, em seu relatório anual publicado na BioScience, que o agravamento dos sinais vitais da Terra indica uma “nova fase crítica e imprevisível da crise climática” e que “uma ação decisiva é necessária e rápida”.

O relatório descreve áreas onde a mudança de política é necessária – energia, poluentes, natureza, alimentos e economia. O relatório é intitulado “The 2024 State of the Climate Report: Perilous Times on Planet Earth”.

Dos 35 sinais vitais planetários que os cientistas usam para rastrear as mudanças climáticas anualmente, 25 estão em extremos recordes.

Os três dias mais quentes de todos os tempos vieram em julho de 2024, e as emissões de combustíveis fósseis estão em alta, assim como a população humana e a população de gado ruminantes, mostra o relatório climático.

A população humana está aumentando a uma taxa de aproximadamente 200.000 pessoas por dia, e o número de animais ruminantes – mamíferos de cascos, como gado, ovelhas e cabras, que produzem gases de efeito estufa e são intensivos em energia para criar – aumenta em cerca de 170.000 por dia.

O consumo anual de combustíveis fósseis subiu 1,5% em 2023, principalmente devido a grandes saltos no carvão (1,6%) e no uso de petróleo (2,5%), indica o relatório.

O uso de energia renovável também aumentou em 2023 – o consumo solar e eólico juntos aumentaram 15% em relação a 2022. Mas o uso de energias renováveis é apenas um décimo quarto do uso de combustíveis fósseis, e o recente aumento no uso de energias renováveis é atribuível principalmente ao aumento da demanda e não ao fato de estarem substituindo os combustíveis fósseis.

O relatório mostra que a perda anual de cobertura arbórea em todo o mundo aumentou de 22,8 milhões de hectares em 2022 para 28,3 milhões em 2023, e com base nas médias globais do ano, as concentrações de dióxido de carbono atmosférico e metano estão em alta histórica.

Outros pontos de preocupação do relatório são:

o        A temperatura média da superfície da Terra está em alta.

o        A acidez do oceano e o conteúdo de calor, bem como o nível médio global do mar, estão em extremos recordes.

o        A massa de gelo da Groenlândia, a massa de gelo da Antártida e a espessura média das geleiras estão em níveis mais baixos de todos os tempos.

o        Foram identificados 28 ciclos de feedback amplificador – aqueles que exacerbam a mudança climática, como o descongelamento do permafrost.

o        Em 2023, houve uma estimativa de 2.325 mortes relacionadas ao calor nos Estados Unidos, um aumento de 117% em relação a 1999.

Os cientistas dizem que seu objetivo é “informar insights claros e baseados em evidências que inspirem respostas informadas e ousadas de cidadãos a pesquisadores e líderes mundiais”. Especificamente, eles recomendam a rápida adoção de políticas que:

o        Implementem um preço global do carbono que poderia limitar as emissões dos ricos, ao mesmo tempo em que potencialmente fornece financiamento para novas ações climáticas.

o        Melhorem a eficiência energética e a conservação, substituindo os combustíveis fósseis por fontes renováveis de baixo carbono.

o        Limitem as emissões de gases de efeito estufa, incluindo aqueles categorizados como poluentes de curto prazo, como o metano.

o        Protejam e restaurem ecossistemas biodiversos, que desempenham papéis fundamentais no ciclo e armazenamento de carbono.

o        Incentivem uma mudança em direção a hábitos alimentares que enfatizem os alimentos à base de plantas.

o        Promovam a economia ecológica sustentável e reduzir muito o consumo excessivo e o desperdício pelos ricos.

o        Integrem a educação sobre mudanças climáticas em currículos globais para aumentar a conscientização, a alfabetização e a ação.

O futuro da humanidade depende da criatividade, de parâmetros éticos e da perseverança. Se as gerações futuras herdarão o que deixarmos, é necessária uma ação decisiva e rápida.

 

Fonte: ClimaInfo/Eco Debate

 

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