sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Inclusão de pessoas com autismo: uma questão social

A discussão sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA) tem avançado, impulsionada por leis que promovem maior visibilidade e protagonismo para a luta dos autistas por direitos básicos. Avanços como a implementação do cordão de identificação e a inclusão do autismo na carteira de vacinação representam passos significativos. Contudo, entidades e representantes alertam para a urgente necessidade de iniciativas adicionais, incluindo a promoção do conhecimento da população sobre o tema. Com o aumento dos diagnósticos – atualmente, 1 em cada 36 crianças nos EUA é diagnosticada com autismo – o debate sobre o mercado de trabalho torna-se cada vez mais relevante. No Brasil, estima-se que 85% das pessoas com autismo estejam desempregadas.

Os desafios enfrentados por pessoas autistas começam com a dificuldade no diagnóstico e o acesso limitado a tratamentos e educação. Ao atingirem a maioridade, enfrentam novos obstáculos, como a descontinuidade de projetos de apoio e a difícil inserção no mercado de trabalho. “A sociedade precisa abrir os olhos para o fato de que o autista cresce, mas sofre com a morte social. Após os 18 anos, a visibilidade do autista é muito reduzida”, afirma Pollyana Paraguassú, gestora da Associação Amigos dos Autistas do Espírito Santo (AMAES), que atende 1.400 famílias em seis municípios, realizando cerca de 8.000 atendimentos mensais.

A Lei 14.992/24, sancionada no início de outubro pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, busca ampliar a inclusão de pessoas com transtorno do espectro autista (TEA) no mercado de trabalho. Entre as principais medidas, destaca-se a exigência de que o Sistema Nacional de Emprego (Sine) adapte sua infraestrutura e equipe às normas de acessibilidade da ABNT, facilitando a empregabilidade desse grupo. A legislação também incentiva a integração de dados e promove ações para melhorar o acesso ao trabalho para pessoas com TEA. Para Ben Hur Botelho, advogado, professor e mestre em Direito com ênfase em Políticas Públicas para os direitos dos autistas, a lei tem como objetivo materializar algo que é muito importante para inclusão dos autistas no mercado de trabalho, que é a sensibilização dos empregadores: “A Lei n. 14.992/2024 traz como ponto chave a materialização da conscientização do empregador, por meio da sensibilização em face do público (TEA) que tanto necessita ser visto”.

Por outro lado, embora o Brasil possua leis que incentivam a inclusão de pessoas com autismo no mercado de trabalho, essa inserção ainda é raramente concretizada. Botelho defende que, para tornar essa inclusão mais efetiva, são necessárias medidas adicionais, como políticas fiscais que beneficiem empresas e concursos públicos que priorizem a contratação de pessoas com autismo. “Uma proposta interessante é a criação de incentivos fiscais para empresas que contratam pessoas com autismo, como a redução de impostos municipais como ISS e IPTU. Essas medidas podem aumentar a inclusão no setor privado, onde a inclusão de pessoas com deficiência intelectual, como o autismo, ainda é limitada”, justifica.

•        Leis não são suficientes

Autor do livro Políticas Públicas de proteção integral à pessoa com autismo no ordenamento jurídico brasileiro e a inclusão no mercado de trabalho, Ben Hur acredita que é fundamental contextualizar a interação entre o Estado (primeiro setor), o setor privado (segundo setor) e as organizações sem fins lucrativos (terceiro setor) na promoção da inclusão. Ele ressalta que o terceiro setor preenche frequentemente as lacunas deixadas pelo Estado, enquanto o segundo setor enfrenta desafios para se adequar às exigências de inclusão. Por isso, acredita que a relação entre os setores é fundamental para desenvolver estratégias eficazes que garantam a inclusão e os direitos das pessoas com deficiência.

Neste contexto, contudo, somente leis – embora fundamentais – não são suficientes, defende a gestora da AMAES. “Não precisamos de muitas leis, mas sim que elas sejam realmente cumpridas e efetivadas”. Por isso, defende que o poder público deve estabelecer uma direção clara e intervir precocemente, utilizando uma estrutura avaliativa composta por instituições, associações e espaços adequados.

Para Ana Patrícia Batista, advogada e membro da comissão de direito dos autistas da OAB na região Nordeste, a falta de cumprimento de leis, como a que assegura a redução da jornada de trabalho para servidores públicos com filhos com deficiência, ilustra como direitos já estabelecidos frequentemente não são respeitados, agravando os desafios enfrentados por essas famílias. “São muitas questões; é muito complexo. Então, para conseguirmos assegurar esse direito ao mercado de trabalho, precisamos trabalhar todos os outros direitos garantidos desde a infância, para podermos prepará-los para o mercado de trabalho”.

Na prática, a legislação exige que empresas com mais de 100 funcionários reservem de 2% a 5% das vagas para pessoas com deficiência. Contudo, muitas não cumprem essa determinação e acabam sendo multadas com frequência, observa. Para o cumprimento dessas leis existem inúmeros obstáculos. Muitas empresas preferem cumprir as cotas de forma superficial, contratando principalmente pessoas com deficiências mais visíveis ou que demandem menos adaptações, como as deficiências físicas, explica a advogada. “A sociedade está habituada a reconhecer deficiências físicas, mas não está preparada para lidar com deficiências invisíveis ou ocultas, que podem ser de natureza mental, neurológica ou outras”, diz.

Batista ressalta que ainda é necessário disseminar mais informações sobre neurodiversidade e preparar as equipes para evitar atitudes capacitistas. Entretanto, o processo de inclusão vai além de adaptar fisicamente o ambiente de trabalho – envolve uma mudança de mentalidade e a aceitação da diversidade. Ela destaca, no entanto, que o setor de tecnologia tem avançado na inclusão, aproveitando características específicas de pessoas autistas, como habilidades em tarefas metódicas e com números. “Em outros setores não vimos tanta oportunidade. Por quê? Não é fácil. É necessário, mas não é fácil”. Em sua opinião, isso se deve a falta de informação e de conhecimento.

Segundo Ben Hur Botelho, as empresas consideram mais “fácil” contratar uma pessoa com deficiência física, pois, nesse caso, a necessidade se resume a uma inserção, e não a uma inclusão – uma distinção crucial. A inserção envolve simplesmente posicionar alguém em um espaço já existente, sem exigir adaptações ou a compreensão de suas necessidades específicas. Em contraste, a inclusão requer um entendimento mais profundo e adaptações que atendam a todas as formas de deficiência. “Isso seria o correto em todas as formas de relações humanas: a inclusão, não apenas a inserção”, diz.

•        Barreiras de pessoas com autismo começam no diagnóstico

Muito antes do mercado de trabalho, as barreiras começam a surgir já na fase de diagnóstico, acompanhadas da demora para obter o laudo e iniciar o tratamento, explica Ana Patrícia Barbosa. Na rede privada, o processo pode levar seis meses ou mais para a obtenção do laudo, enquanto na saúde pública essa espera tende a ser ainda maior, o que atrasa tanto os tratamentos quanto a inclusão do autista nos sistemas de saúde e educação.

“Esse acesso ao mercado de trabalho fica inviabilizado em decorrência da dificuldade de acesso à saúde”, esclarece Batista. Ela ressalta que também existem dificuldades no acesso à educação, uma vez que muitos alunos são obrigados a deixar as escolas devido à falta de adaptação, acolhimento, inclusão e acessibilidade. Em várias situações, as famílias optam por manter as crianças em casa, sem estudar, pois as instituições não estão preparadas para atendê-las. Para ela, é preciso reconhecer a cadeia de responsabilidades existente e estabelecer uma base sólida que garanta o respeito efetivo a todos os direitos.

Mesmo quando a contratação ocorre, os obstáculos ainda persistem, aponta Ben Hur. Esses desafios incluem discriminação por parte dos colegas, falta de suporte educacional no ambiente de trabalho, além da oferta de vagas de baixa qualidade e a escassez de formação técnica e profissional. Um levantamento americano examinou as razões pelas quais pessoas autistas frequentemente abandonam a universidade. O estudo apontou que a falta de pertencimento à comunidade universitária pode dificultar os estudos, o que, por sua vez, pode levar à decisão de abandonar os cursos. Com mais apoio acadêmico, social e na transição, os estudantes autistas teriam melhores chances de se formar.

Outro ponto mencionado por ele é o reconhecimento do potencial dos profissionais autistas, que frequentemente possuem habilidades valiosas, como hiperfoco, excelente memória para detalhes e adesão a rotinas e regras. “Quando bem direcionadas, essas características podem ser altamente benéficas para diversas empresas e funções”.

•        Atuação das associações e coletivos

Para enfrentar os inúmeros desafios, associações e coletivos atuam de forma ativa. A Associação Amigos dos Autistas do Espírito Santo (AMAES), por exemplo, nasceu da insatisfação de pais com as políticas públicas existentes. A entidade oferece atendimentos gratuitos nas áreas de saúde, educação e assistência social, por meio de parcerias locais. Atualmente, mais de 1.600 pessoas aguardam na fila de espera.

“Cada vez mais, vemos a visibilidade do autismo, até pela quantidade de diagnósticos que vem surgindo, mas é preciso mais fiscalização das leis”, diz Pollyana Paraguassú, gestora da AMAES. Para eles, um dos maiores desafios é garantir a continuidade dos projetos diante da instabilidade no financiamento, o que prejudica os autistas, que ficam sem acesso às atividades. Muitas das parcerias com prefeituras e o Estado frequentemente sofrem com o contingenciamento de verbas. Outro desafio é o encerramento de projetos voltados para autistas ao atingirem a maioridade. Por isso, defende a urgência de uma abordagem educacional mais ampla, que sensibilize tanto a sociedade quanto os profissionais sobre o autismo. Além disso, destaca a importância da educação e do empoderamento das famílias, para garantir o acesso a recursos e informações adequadas.

Outra iniciativa que busca fomentar o diálogo é o Coletivo Autista da USP (CAUSP), voltado para alunos e funcionários com autismo da Universidade de São Paulo. Embora a universidade já ofereça programas de inclusão, ainda há muito a ser feito para atender às necessidades de alunos e funcionários autistas. Fundado em 2021, o coletivo é composto majoritariamente por estudantes, além de ex-alunos, funcionários e alguns docentes autistas, contando atualmente com 220 membros.

Victor Passarelli, presidente interino do CAUSP afirma que os atuais avanços são lentos, e que sociedade e governo precisam se mobilizar. “Falta muito, principalmente no mercado de trabalho. A gente vê muita questão de falta de adaptações. Ou por falta de informação, ou por não quererem fazer adaptação mesmo”, afirma.

Segundo ele, o coletivo enfrenta desafios relacionados à visibilidade e à adaptação, já que o mercado de trabalho e a sociedade ainda precisam compreender melhor o autismo. Após os 18 anos, muitos serviços e atendimentos são reduzidos; por isso, defende a necessidade urgente de um suporte contínuo para adultos autistas.

 

Fonte: Futuro da Saúde

 

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