Inclusão de pessoas com autismo: uma
questão social
A discussão sobre o
Transtorno do Espectro Autista (TEA) tem avançado, impulsionada por leis que
promovem maior visibilidade e protagonismo para a luta dos autistas por
direitos básicos. Avanços como a implementação do cordão de identificação e a
inclusão do autismo na carteira de vacinação representam passos significativos.
Contudo, entidades e representantes alertam para a urgente necessidade de
iniciativas adicionais, incluindo a promoção do conhecimento da população sobre
o tema. Com o aumento dos diagnósticos – atualmente, 1 em cada 36 crianças nos
EUA é diagnosticada com autismo – o debate sobre o mercado de trabalho torna-se
cada vez mais relevante. No Brasil, estima-se que 85% das pessoas com autismo
estejam desempregadas.
Os desafios
enfrentados por pessoas autistas começam com a dificuldade no diagnóstico e o
acesso limitado a tratamentos e educação. Ao atingirem a maioridade, enfrentam
novos obstáculos, como a descontinuidade de projetos de apoio e a difícil
inserção no mercado de trabalho. “A sociedade precisa abrir os olhos para o
fato de que o autista cresce, mas sofre com a morte social. Após os 18 anos, a
visibilidade do autista é muito reduzida”, afirma Pollyana Paraguassú, gestora
da Associação Amigos dos Autistas do Espírito Santo (AMAES), que atende 1.400
famílias em seis municípios, realizando cerca de 8.000 atendimentos mensais.
A Lei 14.992/24,
sancionada no início de outubro pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
busca ampliar a inclusão de pessoas com transtorno do espectro autista (TEA) no
mercado de trabalho. Entre as principais medidas, destaca-se a exigência de que
o Sistema Nacional de Emprego (Sine) adapte sua infraestrutura e equipe às
normas de acessibilidade da ABNT, facilitando a empregabilidade desse grupo. A
legislação também incentiva a integração de dados e promove ações para melhorar
o acesso ao trabalho para pessoas com TEA. Para Ben Hur Botelho, advogado,
professor e mestre em Direito com ênfase em Políticas Públicas para os direitos
dos autistas, a lei tem como objetivo materializar algo que é muito importante
para inclusão dos autistas no mercado de trabalho, que é a sensibilização dos
empregadores: “A Lei n. 14.992/2024 traz como ponto chave a materialização da
conscientização do empregador, por meio da sensibilização em face do público
(TEA) que tanto necessita ser visto”.
Por outro lado, embora
o Brasil possua leis que incentivam a inclusão de pessoas com autismo no
mercado de trabalho, essa inserção ainda é raramente concretizada. Botelho
defende que, para tornar essa inclusão mais efetiva, são necessárias medidas
adicionais, como políticas fiscais que beneficiem empresas e concursos públicos
que priorizem a contratação de pessoas com autismo. “Uma proposta interessante
é a criação de incentivos fiscais para empresas que contratam pessoas com
autismo, como a redução de impostos municipais como ISS e IPTU. Essas medidas
podem aumentar a inclusão no setor privado, onde a inclusão de pessoas com
deficiência intelectual, como o autismo, ainda é limitada”, justifica.
• Leis não são suficientes
Autor do livro
Políticas Públicas de proteção integral à pessoa com autismo no ordenamento
jurídico brasileiro e a inclusão no mercado de trabalho, Ben Hur acredita que é
fundamental contextualizar a interação entre o Estado (primeiro setor), o setor
privado (segundo setor) e as organizações sem fins lucrativos (terceiro setor)
na promoção da inclusão. Ele ressalta que o terceiro setor preenche
frequentemente as lacunas deixadas pelo Estado, enquanto o segundo setor
enfrenta desafios para se adequar às exigências de inclusão. Por isso, acredita
que a relação entre os setores é fundamental para desenvolver estratégias
eficazes que garantam a inclusão e os direitos das pessoas com deficiência.
Neste contexto,
contudo, somente leis – embora fundamentais – não são suficientes, defende a
gestora da AMAES. “Não precisamos de muitas leis, mas sim que elas sejam
realmente cumpridas e efetivadas”. Por isso, defende que o poder público deve
estabelecer uma direção clara e intervir precocemente, utilizando uma estrutura
avaliativa composta por instituições, associações e espaços adequados.
Para Ana Patrícia
Batista, advogada e membro da comissão de direito dos autistas da OAB na região
Nordeste, a falta de cumprimento de leis, como a que assegura a redução da
jornada de trabalho para servidores públicos com filhos com deficiência,
ilustra como direitos já estabelecidos frequentemente não são respeitados,
agravando os desafios enfrentados por essas famílias. “São muitas questões; é
muito complexo. Então, para conseguirmos assegurar esse direito ao mercado de
trabalho, precisamos trabalhar todos os outros direitos garantidos desde a
infância, para podermos prepará-los para o mercado de trabalho”.
Na prática, a
legislação exige que empresas com mais de 100 funcionários reservem de 2% a 5%
das vagas para pessoas com deficiência. Contudo, muitas não cumprem essa
determinação e acabam sendo multadas com frequência, observa. Para o
cumprimento dessas leis existem inúmeros obstáculos. Muitas empresas preferem
cumprir as cotas de forma superficial, contratando principalmente pessoas com
deficiências mais visíveis ou que demandem menos adaptações, como as
deficiências físicas, explica a advogada. “A sociedade está habituada a
reconhecer deficiências físicas, mas não está preparada para lidar com
deficiências invisíveis ou ocultas, que podem ser de natureza mental,
neurológica ou outras”, diz.
Batista ressalta que
ainda é necessário disseminar mais informações sobre neurodiversidade e
preparar as equipes para evitar atitudes capacitistas. Entretanto, o processo
de inclusão vai além de adaptar fisicamente o ambiente de trabalho – envolve
uma mudança de mentalidade e a aceitação da diversidade. Ela destaca, no
entanto, que o setor de tecnologia tem avançado na inclusão, aproveitando
características específicas de pessoas autistas, como habilidades em tarefas
metódicas e com números. “Em outros setores não vimos tanta oportunidade. Por
quê? Não é fácil. É necessário, mas não é fácil”. Em sua opinião, isso se deve
a falta de informação e de conhecimento.
Segundo Ben Hur
Botelho, as empresas consideram mais “fácil” contratar uma pessoa com
deficiência física, pois, nesse caso, a necessidade se resume a uma inserção, e
não a uma inclusão – uma distinção crucial. A inserção envolve simplesmente
posicionar alguém em um espaço já existente, sem exigir adaptações ou a
compreensão de suas necessidades específicas. Em contraste, a inclusão requer
um entendimento mais profundo e adaptações que atendam a todas as formas de
deficiência. “Isso seria o correto em todas as formas de relações humanas: a
inclusão, não apenas a inserção”, diz.
• Barreiras de pessoas com autismo começam
no diagnóstico
Muito antes do mercado
de trabalho, as barreiras começam a surgir já na fase de diagnóstico,
acompanhadas da demora para obter o laudo e iniciar o tratamento, explica Ana
Patrícia Barbosa. Na rede privada, o processo pode levar seis meses ou mais
para a obtenção do laudo, enquanto na saúde pública essa espera tende a ser
ainda maior, o que atrasa tanto os tratamentos quanto a inclusão do autista nos
sistemas de saúde e educação.
“Esse acesso ao
mercado de trabalho fica inviabilizado em decorrência da dificuldade de acesso
à saúde”, esclarece Batista. Ela ressalta que também existem dificuldades no
acesso à educação, uma vez que muitos alunos são obrigados a deixar as escolas
devido à falta de adaptação, acolhimento, inclusão e acessibilidade. Em várias
situações, as famílias optam por manter as crianças em casa, sem estudar, pois
as instituições não estão preparadas para atendê-las. Para ela, é preciso
reconhecer a cadeia de responsabilidades existente e estabelecer uma base
sólida que garanta o respeito efetivo a todos os direitos.
Mesmo quando a
contratação ocorre, os obstáculos ainda persistem, aponta Ben Hur. Esses
desafios incluem discriminação por parte dos colegas, falta de suporte
educacional no ambiente de trabalho, além da oferta de vagas de baixa qualidade
e a escassez de formação técnica e profissional. Um levantamento americano
examinou as razões pelas quais pessoas autistas frequentemente abandonam a
universidade. O estudo apontou que a falta de pertencimento à comunidade
universitária pode dificultar os estudos, o que, por sua vez, pode levar à
decisão de abandonar os cursos. Com mais apoio acadêmico, social e na
transição, os estudantes autistas teriam melhores chances de se formar.
Outro ponto mencionado
por ele é o reconhecimento do potencial dos profissionais autistas, que
frequentemente possuem habilidades valiosas, como hiperfoco, excelente memória
para detalhes e adesão a rotinas e regras. “Quando bem direcionadas, essas
características podem ser altamente benéficas para diversas empresas e
funções”.
• Atuação das associações e coletivos
Para enfrentar os
inúmeros desafios, associações e coletivos atuam de forma ativa. A Associação
Amigos dos Autistas do Espírito Santo (AMAES), por exemplo, nasceu da
insatisfação de pais com as políticas públicas existentes. A entidade oferece
atendimentos gratuitos nas áreas de saúde, educação e assistência social, por
meio de parcerias locais. Atualmente, mais de 1.600 pessoas aguardam na fila de
espera.
“Cada vez mais, vemos
a visibilidade do autismo, até pela quantidade de diagnósticos que vem
surgindo, mas é preciso mais fiscalização das leis”, diz Pollyana Paraguassú,
gestora da AMAES. Para eles, um dos maiores desafios é garantir a continuidade
dos projetos diante da instabilidade no financiamento, o que prejudica os
autistas, que ficam sem acesso às atividades. Muitas das parcerias com
prefeituras e o Estado frequentemente sofrem com o contingenciamento de verbas.
Outro desafio é o encerramento de projetos voltados para autistas ao atingirem
a maioridade. Por isso, defende a urgência de uma abordagem educacional mais
ampla, que sensibilize tanto a sociedade quanto os profissionais sobre o
autismo. Além disso, destaca a importância da educação e do empoderamento das
famílias, para garantir o acesso a recursos e informações adequadas.
Outra iniciativa que
busca fomentar o diálogo é o Coletivo Autista da USP (CAUSP), voltado para
alunos e funcionários com autismo da Universidade de São Paulo. Embora a
universidade já ofereça programas de inclusão, ainda há muito a ser feito para
atender às necessidades de alunos e funcionários autistas. Fundado em 2021, o
coletivo é composto majoritariamente por estudantes, além de ex-alunos,
funcionários e alguns docentes autistas, contando atualmente com 220 membros.
Victor Passarelli,
presidente interino do CAUSP afirma que os atuais avanços são lentos, e que
sociedade e governo precisam se mobilizar. “Falta muito, principalmente no
mercado de trabalho. A gente vê muita questão de falta de adaptações. Ou por
falta de informação, ou por não quererem fazer adaptação mesmo”, afirma.
Segundo ele, o
coletivo enfrenta desafios relacionados à visibilidade e à adaptação, já que o
mercado de trabalho e a sociedade ainda precisam compreender melhor o autismo.
Após os 18 anos, muitos serviços e atendimentos são reduzidos; por isso,
defende a necessidade urgente de um suporte contínuo para adultos autistas.
Fonte: Futuro da Saúde
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