sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Sem diretrizes, tratamento do autismo segue sendo desafio para operadoras e beneficiários

A denúncia de entidades ligadas a pessoas com transtorno do espectro autista (TEA) sobre tratamentos excessivos realizados por clínicas privadas a crianças e adolescentes, feita pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, chamou atenção para um tema recorrente na saúde suplementar: a necessidade de estabelecer protocolos e diretrizes para tratamento do autismo.

Operadoras de planos de saúde já vinham, desde 2023, alertando a sociedade quanto à falta de padronização, qualidade técnica e o excesso de carga horária dos tratamentos indicados, chegando a 40 horas semanais. Apesar de haver clínicas de referência nos grandes centros urbanos, fora deles há denúncias ligadas a fraudes e desperdícios de recursos.

Sendo a Análise do Comportamento Aplicada (ABA) a abordagem terapêutica mais utilizada no Brasil e no mundo em tratamentos de TEA, criou-se um mercado no país de cursos profissionalizantes que oferecem formação de curta duração. Sem critérios e fiscalização, surgem pessoas que ofertam o tratamento sem a devida qualificação e correta aplicação.

“Essa ideia das 40 horas acabou se propagando em um cenário onde as pessoas são remuneradas por elas. Acaba criando um incentivo perverso mesmo. Não estão comprometidas necessariamente com o bem-estar e autonomia daquela criança. Quando olhamos para essa denúncia, vejo uma grande oportunidade para colocarmos essas coisas na mesa”, afirma Thalita Possmoser, head de Clinical Operations da Genial Care.

A Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) tem orientado seus associados a qualificar profissionais e construir clínicas próprias. No entanto, cobram que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) elabore uma diretriz de utilização (DUT) para proteger os beneficiários e diminuir o risco de abusos.

Em nota, a ANS afirma que “entende a importância da elaboração de uma DUT para o tratamento do Transtorno do Espectro Autista (TEA), para que os pacientes tenham o atendimento e o tratamento corretos, evitando-se abusos. Entretanto, essa é uma medida que não depende apenas da Agência. É preciso que as entidades profissionais da área da saúde e o próprio Ministério da Saúde estejam envolvidos nos estudos sobre essas propostas e a ANS está aberta a debater com todas as entidades”.

Paralelamente, operadoras têm se movimentado para conhecer outros tratamentos disponíveis, que se adaptem à realidade do sistema de saúde brasileiro e mantenham o convívio familiar, social e escolar de crianças. Um deles é o Paediatric Autism Communication Therapy (PACT), utilizado no National Health Service (NHS), sistema de saúde britânico.

“Cada criança tem um plano terapêutico singular. Talvez se ela tiver necessidade, de acordo com o grau de suporte, em algum momento, precise de 40 horas de terapia. O que não dá é para uma criança de grau leve ficar tanto tempo dentro do ambiente clínico. Porque ela não precisa, vai podá-la do convívio, da possibilidade de crescer. Se ficar só dentro da terapia, quando vai colocar em prática na vida dela?”, observa Cassio Ide Alves, diretor técnico-médico da Abramge.

•        Denúncia e tratamento ABA

No dia 10 de setembro, a Associação Nacional para Inclusão das Pessoas Autistas (Autistas Brasil) entregou à ministra dos Diretos Humanos e Cidadania, Macaé Evaristo, uma carta-denúncia onde comparou os tratamentos desproporcionais de pessoas com TEA a um regime manicomial. Isso porque, segundo a entidade, exerce um controle sobre os pacientes e os retira do convívio social.

A denúncia foi formalizada em parceria com a Associação Brasileira para Ação dos Direitos das Pessoas Autistas (Abraça) e a Vidas Negras com Deficiência Importam (VNDI). De acordo com  Guilherme de Almeida, presidente da Autistas Brasil, ela surgiu por relatos recebidos de pais e responsáveis. Em um deles, uma mãe afirmava que o filho ia apenas duas vezes por semana à escola, porque nos outros dias estava em tratamento na clínica.

“A grande problemática é essa intensidade, esse abuso onde não há condições de garantir essa vivência plena da criança em diversos espaços, em diversos momentos, sejam sociais, familiares e pedagógicos. Momentos de tratamento são fundamentais, entendendo que uma criança autista tem diversas demandas de cunho de saúde”, afirma Almeida.

A discussão recai sobre a necessidade do tratamento, com base na terapia ABA, sugerindo em alguns casos o acompanhamento do paciente por 40 horas semanais. Como explica Possmoser, da Genial Care, essa carga horária surgiu com base em uma interpretação equivocada de um estudo dos anos 80, em um contexto onde o tratamento era feito dentro das escolas e através dos pais.

“Será que o modelo dos Estados Unidos, um país tão distinto do Brasil, é o modelo que a gente deveria estar planejando trazer para cá? Isso é efetivo? Como na área do autismo, a gente carece do debate, a nossa primeira ideia é pegar o que funcionou lá e trazer para cá, mas a gente esquece que somos um país muito particular, com necessidades particulares muito distintas dos Estados Unidos”, ressalta.

Ela explica que o tratamento do autismo envolve o acompanhamento multidisciplinar, com psicólogos, fonoaudiólogos e terapeutas ocupacionais. A ideia é desenvolver as habilidades através de sessões individuais, com carga horária e um plano individual, sendo a aprendizagem e o comportamento pilares dessa terapia.

Em 2020, o National Clearinghouse on Autism Evidence and Practice (NCAEP) publicou uma revisão de 927 artigos científicos, onde identificou 28 práticas para o tratamento do autismo que possuem evidências de sua aplicação e eficácia, parte delas utilizando terapia ABA como ponto de partida.

Para Guilherme Almeida, da Autistas Brasil, é preciso haver uma fiscalização por parte do Governo para garantir que clínicas não ofereçam tratamentos inadequados, que podem prejudicar a saúde das crianças e adolescentes, além de retirar do convívio social. Por isso, cobra a criação de um referencial sobre o tema.

“A gente espera e acredita, até pelo perfil da nova ministra e da Ana Paula Feminella, que é Secretária Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, que essa questão esteja sendo levada a sério. Fizemos essa carta-denúncia, mas nunca mais foi recebido por nenhuma autoridade. Nosso papel como organização sem fins lucrativos foi, a partir de demandas que existiam dentro da nossa estrutura, levar essa denúncia pro órgão de maior autoridade para que ele fizesse essa investigação”, explica o presidente da associação.

Procurado, o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania afirma que em 25 de setembro a ministra Macaé Evaristo se reuniu com representantes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), membros da União de Mulheres Autistas, Mães Atípicas, Neurodivergentes e Apoiadores (Umana), além de mães e familiares de pessoas com autismo para “ouvir, compreender as necessidades e garantir a continuidade das ações e políticas públicas relacionadas ao autismo”.

O órgão aponta que também foi instaurada a Câmara Técnica sobre Políticas Públicas e Deficiências Psicossociais, com o objetivo de analisar, propor políticas públicas integradas e avaliar os procedimentos e as terapias disponíveis no Brasil. “O autismo é uma das pautas prioritárias do MDHC, que conta com a Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência (SNDPD) liderando os diálogos com entidades federais e privadas, instituições, associações e a sociedade civil”, concluiu a nota do Ministério.

•        Planos de saúde e ANS

O tratamento de pessoas com TEA é fruto de discussão nos planos de saúde desde a ampliação das regras de cobertura para tratamento de transtornos globais do desenvolvimento, em 2022. A mudança tornou o número de sessões com fonoaudiólogos, psicólogos, terapeutas ocupacionais e fisioterapeutas ilimitadas, além de indicar que passa a ser obrigatória a cobertura para qualquer método ou técnica indicado.

Isso aumentou de forma expressiva o custo assistencial das operadoras, o que tem gerado um ruído no mercado. Contudo, entidades representativas de planos de saúde apontam abusos e fraudes nesse segmento, principalmente por haver uma disseminação de clínicas e profissionais com baixo nível de especialização. Elas cobram que é preciso criar regras e definir protocolos para proteger os beneficiários, além de reduzir custos assistenciais.

Em todo o setor, fraudes, abusos e desperdícios representaram cerca de 12,7% em 2022, de acordo com estudo do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS). Apesar de não ser específico para o autismo, o aumento de diagnósticos nos últimos anos e a cobertura ilimitada tornaram o segmento de tratamento de TEA atrativo para golpes. Em setembro, a operadora SulAmérica identificou indícios de irregularidades em uma clínica especializada em tratamento de TEA em São Caetano do Sul, região metropolitana de São Paulo, através de pedidos de reembolsos. Foram encontradas 390 solicitações irregulares, envolvendo 36 beneficiários, o que de acordo com o plano de saúde representa 9 milhões de reais.

“Não vemos uma ação mais estruturada que oriente quais deveriam ser as intervenções terapêuticas com evidências científicas, utilizadas. Também não vemos o órgão regulador deixar explícito. Tem que fazer uma diretriz de utilização super simples. Porque a grande maioria das pessoas tem bom senso e faz coisas óbvias, mas tem um percentual da sociedade que não faz”, afirma Cassio Ide Alves, da Abramge.

Apesar de a ANS afirmar, em nota, que vê a importância da elaboração de uma diretriz de utilização (DUT), a Agência não respondeu ao questionamento se já está fazendo esse documento ou se existe um cronograma para essa elaboração. No entanto, afirma que está aberta a debater o tema com todas as entidades que precisam estar envolvidas nesse processo, como entidades profissionais da área da saúde e o próprio Ministério da Saúde.

Em outubro de 2023, a ANS realizou uma audiência pública para debater a assistência na saúde suplementar aos beneficiários com transtornos globais do desenvolvimento, que inclui TEA. Como resultado, a Agência afirma que adotou ações de monitoramento contínuo da evolução da utilização dos serviços prestados, elaboração de estudos sobre a evolução dos atendimentos de pacientes, formulação de ações regulatórias fundamentadas e realização de mais reuniões com representantes da sociedade civil e do governo, com conselhos e associações profissionais e científicas.

Em junho deste ano, a Agência também recebeu pais e responsáveis para falar sobre o outro lado. Ao longo de duas horas, as mães expuseram as dificuldades que têm enfrentado para conseguir atendimento para seus filhos pelos planos de saúde, como o acesso a terapias e tratamentos continuados. Elas apresentaram suas reivindicações e um pedido de apoio à ANS para que os direitos às coberturas previstas no Rol de Procedimentos e Eventos fosse garantido.

De acordo com a ANS, as operadoras se comprometeram em verificar todas as questões levantadas. Até setembro, 16.056 reclamações relacionadas à cobertura de tratamento do autismo foram protocoladas na Agência em 2024. No ano anterior, 20.125 reclamações foram recebidas. Para evitar distorções, a Abramge afirma que tem buscado orientar as operadoras para qualificarem os profissionais, com intervenções que mesclam terapias comportamentais e neuroafirmativas. Também estimula que as operadoras criem clínicas próprias, com a possibilidade de parcerias entre as empresas. A ideia é criar um padrão e reduzir riscos de fraudes e abusos.

“Precisa criar um protocolo para organizar de forma que pessoas com TEA recebam intervenções cientificamente comprovadas, na intensidade e na frequência adequada. E que não seja permitido de forma alguma que esses indivíduos virem experimento. Recebemos denúncia de que até tratamento com ozonioterapia tem sido feito”, afirma Alves.

Para Possmoser, a possibilidade de criação de um protocolo é positiva, mas tem que ter espaço para a personalização. “Existe um modelo a ser seguido. É preciso realizar uma avaliação do desenvolvimento daquela criança, traçar objetivos individualizados que vão garantir o sucesso da intervenção. A partir da motivação daquela criança o profissional consegue adaptar qual é o melhor jeito de ensinar. É preciso estar também o tempo inteiro verificando se a intervenção está indo em direção à autônoma independência ou não”, afirma.

•        PACT para tratamento do autismo

Em busca de terapias que tenham menos impacto orçamentário, com comprovação científica e eficácia para os pacientes, as operadoras chegaram à Paediatric Autism Communication Therapy (PACT). Utilizado como um dos tratamentos para TEA no sistema de saúde britânico, o NHS, o método é guiado pelos pais, com apoio de um especialista, com foco na interação e comunicação.

A abordagem tem sido estudada por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), que encontraram evidências iniciais sobre a possibilidade de aplicação no Brasil. Em 2025, um estudo mais robusto será realizado junto a serviços públicos de saúde de todo o Brasil para analisar se a intervenção vai ser absorvida pelos profissionais, aceita pelas famílias e sustentada do ponto de vista de custos, eficácia e adesão.

Um dos desafios para o sucesso da terapia no país, de acordo com Priscilla Godoy, psicóloga clínica e neuropsicóloga do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, pesquisadora envolvida no estudo e sócia fundadora da PACT Brasil, é conseguir mostrar para os responsáveis o potencial e a importância do envolvimento deles no tratamento.

“Muitas famílias podem ter a crença de que essa intervenção, principalmente quando oferecida no serviço público e por planos de saúde,  é de que estão dando uma intervenção para colocar eles para trabalhar, que façam o papel do terapeuta, se eximindo do cuidado. A única coisa que fica faltando nessa ideia é que sim, você é responsável pelo cuidado do seu filho”, afirma Godoy.

Ela explica que através da observação da interação dos pais ou responsáveis com as crianças, o terapeuta realiza uma discussão guiada para orientar, através de perguntas, como identificar e lidar com comportamentos característicos do TEA. A ideia não é mudar a forma que as crianças se portam, mas o olhar dos cuidadores.

“Existe uma ideia ainda muito forte de que se eu tenho um filho autista preciso ensiná-lo a se comportar como uma pessoa típica. A visão de apoio à neurodiversidade ainda é muito inicial no Brasil, e temos predominantemente ainda essa necessidade cultural, de que a gente precisa ensinar ou treinar essas crianças a se comportarem mais próximo do típico possível. As evidências mostram que o ideal é o oposto a isso. Crianças que são expostas a terapias de padronização de comportamento, quando chegam à vida adulta têm altos índices de transtornos de ansiedade, depressão e tentativa de suicídio ”, afirma a pesquisadora.

Do ponto de vista de custos, o PACT não trabalha com cargas horárias. O protocolo inicial inclui 12 sessões com o terapeuta, reduzindo a periodicidade conforme avança, podendo ter uma manutenção mensal após esse período. Em um contexto em que o Brasil tem um número limitado de profissionais para atender a demanda, a telessaúde também é uma opção para a aplicação. Contudo, Godoy explica que o tratamento pode incluir outras abordagens.

“Cada caso é sempre um caso. Quando pensamos em diversidade, cada criança e cada família vai ter uma necessidade. A PACT não descarta a necessidade, em muitos casos, de algumas intervenções de processamento sensorial, realizadas por terapeutas ocupacionais. Existem outros distúrbios da fala que vão precisar de outras intervenções específicas com fonoaudiólogos, por exemplo. Existem outros aspectos que podem ser trabalhados com outras intervenções”, explica ela.

 

Fonte: Futuro da Saúde

 

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