sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Crise hídrica global ameaça produção de alimentos

Mais da metade da produção mundial de alimentos pode estar em risco até 2050 se medidas urgentes contra a crise global de água não forem adotadas, alertou um grupo de líderes e especialistas em um relatório publicado nesta quinta-feira (17/10).

"Quase 3 bilhões de pessoas e mais da metade da produção mundial de alimentos estão agora em áreas onde o armazenamento total de água tende a diminuir", diz o relatório produzido pela Comissão Global sobre a Economia da Água (GCEW, na sigla em inglês).

Intitulada A economia da água: valorizar o ciclo hidrológico como um bem comum global, a análise alerta que a crise hídrica pode levar a uma redução média de 8% no Produto Interno Bruto (PIB) em países de alta renda até 2050 e de até 15% em países de baixa renda.

Os declínios econômicos seriam consequência "dos efeitos combinados das mudanças nos padrões de precipitação e do aumento das temperaturas devido às mudanças climáticas, juntamente com o declínio do armazenamento total de água e a falta de acesso a água limpa e saneamento".

A GCEW considera que "a utilização destrutiva da terra e a persistente má gestão dos recursos hídricos se juntaram ao agravamento da crise climática para colocar o ciclo global da água sob uma pressão sem precedentes".

Em hidrologia, o chamado ciclo da água ou ciclo hidrológico refere-se à troca contínua de água entre a atmosfera, a água do solo, águas superficiais, subterrâneas e das plantas.

"Pela primeira vez na história da humanidade, estamos desequilibrando o ciclo global da água. Já não podemos confiar na chuva, a fonte de toda a água doce, devido às alterações climáticas e de uso da terra causadas pela humanidade, que prejudicam a base do bem-estar humano e da economia mundial", afirma Johan Rockström, diretor do Instituto de Potsdam de Pesquisa sobre Impactos Climáticos (PIK) e um dos cinco copresidentes da GCEW.

<><> Relatório "histórico"

A Comissão Global sobre a Economia da Água foi criada pela Holanda em 2022, com base no trabalho de dezenas de cientistas e economistas de renome, com o objetivo de formar uma visão abrangente sobre o estado dos sistemas hidrológicos globais e sua gestão.

O relatório de 194 páginas publicado nesta quinta é o maior estudo global a analisar os vários aspectos da crise da água e sugerir soluções. O documento, que a comissão classifica de "histórico", argumenta que as abordagens existentes ocasionaram a crise da água, por não levarem em conta o seu valor para a economia e a preservação dos ecossistemas. 

Embora a água seja frequentemente percebida como "um presente abundante da natureza", o relatório enfatiza que ela é escassa e cara para transportar.

Em julho de 2010, a Assembleia Geral das Nações Unidas reconheceu o direito de todas as pessoas ao acesso a água suficiente para uso pessoal e doméstico, o que equivaleria a entre 50 e 100 litros por dia. A GCEW, no entanto, afirma que essa quantidade foi subestimada e sustenta que "uma vida digna – incluindo nutrição e consumo adequados – requer um mínimo de cerca de 4.000 litros por pessoa por dia".

<><> Água como bem comum global

Os especialistas apelaram para que o ciclo da água seja considerado um "bem comum global", o que exige uma "colaboração através de fronteiras e culturas", e para uma transformação na governança da água em todos os níveis.

"Os custos envolvidos nessas ações são muito pequenos em comparação ao dano que a inação contínua causará às economias e à humanidade", destacaram os especialistas.

Para enfrentar a crise, é necessária uma "nova economia da água", baseada num "pensamento mais ousado e integrado e numa reformulação da estrutura das políticas", defende a comissão.

"Só podemos resolver esta crise se pensarmos em termos muito mais amplos sobre como governamos a água. Reconhecendo as interações da água com as alterações climáticas e a biodiversidade. Mobilizando todas as nossas ferramentas econômicas e financiamento público e privado para inovar e investir na água. Pensando e agindo multilateralmente", resume outro copresidente da GCEW, o líder de Singapura, Tharman Shanmugaratnam.

<><> Do fim de subsídios a dietas de origem vegetal

Entre outras medidas, o documento da GCEW defende a eliminação de subsídios prejudiciais em setores de uso intensivo de água. "Precisamos vincular a precificação da água a subsídios apropriados", disse Ngozi Okonjo-Iweala, Diretora-Geral da Organização Mundial do Comércio (OMC) e copresidente da GCEW.

A primeira missão, segundo a comissão, deverá ser o lançamento de uma revolução nos sistemas alimentares, o que incluiria o uso da microirrigação (técnica de irrigação que consiste na aplicação de água de forma precisa e controlada) na agricultura e a mudança progressiva "de dietas de origem animal para dietas de origem vegetal".

A GCEW recomenda também que sejam conservados e restaurados habitats naturais essenciais para preservar a umidade nos solos e plantas, que retorna e circula pela atmosfera e gera chuva.

<><> "Nenhuma comunidade ou economia será poupada"

O relatório apela ainda pela proteção dos mais pobres e vulneráveis. "A crise global da água atinge primeiro, e de forma mais dura, os mais vulneráveis. Mais de mil crianças com menos de 5 anos de idade morrem todos os dias por causa de água imprópria e falta de saneamento", diz o relatório.

"No entanto, nenhuma comunidade ou economia será poupada das consequências de um ciclo da água desregulado — resultado de nossas ações coletivas ao longo de décadas. O mais perigoso é que falharemos no combate às mudanças climáticas se falharmos na gestão da água", alerta o texto.

 

•        Iniciativa tenta aliviar escassez de água na América Latina

A situação é grave, mas uma iniciativa pretende estar à altura do desafio: aliviar a escassez de água na América Latina.

"Os desafios da água na América Latina são enormes e complexos. A região está enfrentando uma pressão crescente sobre seus recursos hídricos, devido às mudanças climáticas, ao crescimento populacional, à urbanização e à poluição", diz Mauro De la Vega, diretor do Fundo Uruguaio da Água, em entrevista à DW.

"Países como México, Peru e Chile são particularmente afetados", afirma. "Trinta por cento da água adequada para consumo humano é encontrada na América Latina. No entanto, 160 milhões de pessoas não têm água na região", diz a Aliança Latino-Americana de Fundos de Água em seu vídeo de apresentação.

O Brasil, por exemplo, vive a sua pior seca em 70 anos, inpulsionando recordes de queimadas.

Dados do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) mostra que, em agosto, 71% das cidades brasileiras estavam vivendo algum grau de seca, um total de 3.978 municípios. Em seca severa, havia 232 cidades. E a situação pode piorar em setembro, uma vez que a previsão é de atraso no início da estação chuvosa.

<><> Magnitude do fenômeno

"A água é distribuída de forma muito desigual pelo território, e muitas das grandes cidades da região estão localizadas em regiões semidesérticas ou desérticas", explica Melissa Boisson, representante da aliança.

"A América Latina é uma região muito vulnerável aos efeitos hidrometeorológicos da mudança climática, como secas e inundações", aponta.

"Os mais afetados são sempre as populações mais pobres, crianças e mulheres: sua vulnerabilidade os expõe a sofrer diretamente", diz Manuel Guerrero, secretário técnico do Fundo de Água da Costa Rica, Agua Tica.

<><> A ferramenta que quer mudar a história

"Os fundos de água são mecanismos de ação coletiva que envolvem diferentes setores da sociedade na proteção e no gerenciamento sustentável das bacias hidrográficas", diz De la Vega.

Esse modelo de parceria nasceu na região e já foi replicado na América do Norte, Europa, Ásia e África.

Uma das características desses fundos é a ação conjunta de diferentes atores: instituições públicas, privadas, da sociedade civil e acadêmicas, entre outras.

O primeiro fundo de água foi criado em Quito, Equador, em 2000. Hoje, já existem 26 fundos distribuídos em 11 países do continente, que estão agrupados na Aliança Latino-Americana de Fundos de Água. A aliança recebeu o apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento, entre outras organizações multilaterais de financiamento.

<><> Como funcionam?

Uma vez identificadas as principais partes interessadas para a boa gestão da água em uma bacia, o fundo de água se aproxima delas e gera as condições necessárias para o diálogo, às vezes atuando como uma ponte entre os diferentes setores.

O fundo de água fornece informações científicas para a identificação e a priorização dos desafios a serem resolvidos, de modo que a tomada de decisões seja baseada na ciência e incorpore as diferentes visões e possíveis soluções para melhor contribuir com a segurança hídrica das cidades.

<><> Visão geral das conquistas

"Implementamos com sucesso vários projetos, tanto como uma aliança em nível regional quanto com o trabalho dos fundos de água em nível local', diz Boisson, que também é diretora de Segurança Hídrica da Fundação FEMSA do México.

"Os fundos de água reuniram mais de 340 partes interessadas públicas e privadas para apoiar suas ações. Até agosto de 2024, eles realizaram intervenções para melhorar as condições de segurança hídrica em mais de 565 mil hectares, beneficiando diretamente mais de 137 mil famílias, explica.

Da mesma forma, a organização investiu mais de 50 milhões de dólares na "identificação, criação e consolidação dos fundos de água".

<><> O momento é hoje

O desafio, presente e futuro, é enorme. "Até 2040, Peru, Chile, México, República Dominicana e Argentina provavelmente serão os países mais afetados pelo estresse hídrico, e 43% da população da América Latina e do Caribe viverão em áreas de estresse hídrico moderado a extremo, de acordo com a Superintendência Nacional de Serviços de Saneamento do Peru", observa Boisson.

"Durante muito tempo, pensamos que os recursos hídricos eram infinitos e sempre disponíveis, mas isso não é verdade", diz Guerrero sobre um sentimento ainda presente em alguns setores da população.

"Embora haja uma conscientização crescente sobre a gravidade da situação, ainda há muito a ser feito", diz De la Vega. "Em alguns setores, especialmente entre jovens e comunidades afetadas, a conscientização é alta. Entretanto, ela precisa ser traduzida em ações concretas por todos os atores da sociedade", afirma.

 

•        Como a mudança climática altera o ciclo global da água

O processo pelo qual a água se move através do solo, mares e atmosfera da Terra denomina-se ciclo hidrológico. Seja na forma gasosa, líquida ou sólida, a água é parte do ciclo natural que reabastece continuamente o suprimento necessário à sobrevivência dos humanos e de todos os demais seres vivos.

Dessa reserva finita, 97% é salgada, e o 3% restante, de água doce, serve para beber, banhar-se, irrigar plantações, entre inúmeros outros usos. No entanto, a maior parte está fora de alcance, presa em geleiras ou no subsolo profundo, em aquíferos. Assim, apenas cerca de 1% das reservas hídricas totais está disponível para manter toda a vida no planeta.

<><> Como funciona o ciclo hidrológico?

A água contida em lagos, rios, oceanos e mares é constantemente aquecida pelo sol. À medida que as superfícies se aquecem, ela se transforma em vapor, escapando para a atmosfera, num processo que o vento acelera. As plantas igualmente liberam água pelos poros das folhas e caules, por transpiração.

Uma vez no ar, o vapor esfria e passa a se condensar em torno de minúsculas partículas suspensas de poeira, fumaça e outros poluentes, formando nuvens. Estas se movem em torno do planeta em "rios atmosféricos", uma característica crucial do ciclo global que alimenta os sistemas meteorológicos.

A partir de um certo volume, as gotículas suspensas nas nuvens se fundem, formando gotas maiores. Quando estão pesadas demais, caem ao chão em forma de chuva, neve ou granizo, dependendo da temperatura do ar. Essa precipitação reabastece os rios, lagos e outros corpos hídricos, e o ciclo recomeça.

A água também se infiltra no solo por influência da gravidade e pressão, onde fica coletada em reservatórios e aquíferos subterrâneos. Ela continua penetrando cada vez mais fundo, às vezes ao longo de milhares de anos, antes de escoar para um corpo hídrico, retornando ao ciclo.

<><> Como a mudança climática está perturbando o ciclo hidrológico?

Pesquisas recentes demonstram que em certas regiões o ciclo da água está se acelerando, em reação às mudanças climáticas ditadas pela ação humana. Temperaturas mais altas aquecem a atmosfera inferior, intensificando a evaporação, injetando mais vapor no ar e aumentando a probabilidade de precipitação pluvial, muitas vezes na forma de tempestades intensas e imprevisíveis.

Em contrapartida, o aumento da evaporação também pode agravar a situação em áreas propensas a secas, pelo fato de o líquido escapar para a atmosfera em vez de permanecer no solo, onde é necessário.

Cientistas do Instituto de Ciências Marinhas de Barcelona, Espanha, demonstraram como a mudança climática está acelerando o ciclo através de uma análise da salinidade da superfície oceânica – a qual aumenta à medida que a evaporação se intensifica.

"A aceleração do ciclo hidrológico tem implicações tanto para o oceano, como para o continente, onde as tempestades podem se tornar cada vez mais intensas", advertiu a principal autora do estudo, Estrella Olmedo, num comunicado de imprensa.

"Essa maior quantidade de água circulando na atmosfera também explicaria o incremento das precipitações detectado em algumas áreas polares, onde o fato de estar chovendo em vez de nevar vem acelerando o derretimento."

<><> Como combater a ruptura do ciclo hidrológico?

Está claro que não será fácil cortar as emissões carbônicas dos combustíveis fósseis, e que avanços perceptíveis não virão rapidamente. Mas são possíveis algumas medidas imediatas para estabilizar o ciclo hidrológico.

Restaurar as zonas úmidas e repensar a agricultura, incorporando técnicas de cultivo que conservem a água e fortaleçam o solo, pode ajudar a manter e restaurar a capacidade do solo de absorver, purificar e armazenar água.

Restabelecer um estado mais natural dos rios e hidrovias é outro meio de reverter parte dos danos. Os projetos para remover represas e açudes obsoletos na Europa e outras regiões são um grande passo para a restauração das várzeas, que absorvem água e contribuem para abastecer as reservas subterrâneas.

As cidades podem igualmente reforçar o ciclo hidrológico de modo natural, tornando as superfícies urbanas mais permeáveis. As superfícies porosas das "cidades-esponjas" permitem que água se infiltre por ruas, praças e outros espaços, em vez de ser canalizada para fora. Assim, criam-se reservas para os períodos de seca, ao mesmo tempo que se combatem as inundações.

<><> O que está em jogo?

Nos próximos anos, as cidades e províncias no divisor de águas das cordilheiras de Hindu Kush e Himalaia, na Ásia Central, talvez precisem passar a adotar soluções desse tipo. Para obter água doce, bilhões de habitantes locais dependem do acúmulo sazonal de neve firme e gelo nas montanhas e geleiras.

Contudo, um terço dos grandes campos glaciais da região devem desaparecer até o fim do século, de acordo com um estudo de 2019, do Centro Internacional do Desenvolvimento Integrado de Montanhas, no Nepal. E isso, só se a humanidade conseguir manter o aquecimento global abaixo de 1,5ºC em relação à era pré-industrial.

Sem um fluxo consistente de água de degelo, a escassez hídrica se agravará para bilhões de indivíduos. Embora as reservas subterrâneas sejam capazes de compensar parte da escassez, também elas deverão diminuir nas décadas futuras, devido à mudança do clima global.

A agricultura já se tornou mais difícil em regiões como a de Ladakh, administrada pela Índia, na cordilheira do Hindu Kush-Himalaia, onde nas últimas décadas se registrou queda da precipitação de neve e recuo das geleiras.

"Essa é a crise de que não se ouve falar", comenta Philippus Wester Centro Internacional do Desenvolvimento Integrado de Montanhas. "Os impactos para a população de uma das regiões montanhosas mais frágeis e expostas a ameaças do mundo, irão desde um aumento dos eventos meteorológicos extremos, à redução das safras e maior frequência de desastres."

 

Fonte: DW Brasil

 

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