'Não consigo ver as horas no relógio ou
decorar meu telefone': a rotina de quem vive com discalculia
A incapacidade de ver
a hora no relógio de ponteiro, de contar certo o troco do supermercado e de
decorar o próprio número de telefone levaram a psicóloga Larissa Pessoa a
descobrir que sua dificuldade com os números, a qual acreditava ser comum, era,
na verdade, um transtorno de aprendizado.
Intitulado
discalculia, o transtorno de aprendizado diagnosticado em Larissa consiste em
uma dificuldade fora do normal da pessoa entender e manipular números e
conceitos matemáticos. E, por mais, que possa parecer raro é cada vez mais
comum entre os brasileiros. Para se ter uma ideia, estudo estima que, entre 6%
e 7% dos brasileiros em idade escolar possuem discalculia.
Larissa, de 26 anos,
já perdeu as contas de quantas vezes tentou entender um relógio de ponteiro,
sem ter que perguntar para alguém como funciona. A dificuldade é apenas uma
dentre inúmeras que passa diariamente por ter discalculia.
"Minha
dificuldade com números vem desde que eu me conheço por gente. Na escola,
sempre era um desafio entender o que meus professores de matemática diziam e
mesmo estudando por horas não conseguia compreender”.
Na época, por não
conseguir assimilar matemática, professores lhe classificavam como uma aluna
rebelde, sem vontade de aprender, o que a fez desistir dos estudos.
Larissa somente
concluiu o ensino médio por meio do Encceja — exame destinado àquelas pessoas
que não concluíram o ensino fundamental ou médio na idade adequada e fazem a
prova para obter o certificado de conclusão.
"Infelizmente, há
dez anos, não se falava em discalculia no Brasil. Por isso, muitas pessoas
achavam que a minha dificuldade era um ato de rebeldia. Ou que eu não fazia
esforço para aprender."
"Tanto que
somente descobri que tinha discalculia aos 18 anos. Lembro que ao pesquisar o
termo na internet, boa parte do que aparecia eram de reportagens ou artigos em
inglês, porque não no Brasil nem se falava deste transtorno de
aprendizado", conta a psicóloga.
• 'As pessoas acham que sou de outro
mundo'
Quem viveu situação
parecida na escola foi Isabela Aquino, de 20 anos. A estudante de artes visuais
conta que além da dificuldade em matemática, outro dilema que enfrenta até hoje
é de como as pessoas encaram sua dificuldade.
"Muita gente
quando vê alguém que não consegue entender relógio de ponteiro ou têm
dificuldade para fazer operações simples de matemática em uma calculadora acham
que somos de outro mundo", diz.
O problema é que essa
dificuldade com os números não impacta apenas os estudos, mas também interfere
na vida financeira de quem tem discalculia.
A publicitária Jenifer
Mendes, de 36 anos, conta que por ter dificuldades em operações básicas de
matemática, devido ao diagnóstico de discalculia, é comum errar o valor das
compras.
"Já tive situação
de achar estar gastando R$ 100 em uma loja e no momento de chegar no caixa
descobrir que tudo era R$ 1.000. Tudo pela minha dificuldade de fazer
cálculos."
"Nessas situações
não tem como não se sentir constrangida."
Outra dificuldade
comum por quem tem discalculia acontece na hora de fazer uma simples receita de
bolo.
"Já tive
situações de não conseguir fazer um bolo porque não conseguir colocar em
prática o um quarto de determinando ingrediente", diz Larissa.
"Até mesmo
lembrar que número corresponde ao mês é difícil. Por exemplo, sei que três
refere-se ao mês de março, porque é até onde eu consigo. Mas se você perguntar
que número corresponde a outubro, não sei."
Ana Helena Guimarães,
21 anos, estudante de educação física, conta que por ter o transtorno de
aprendizado passou a criar mecanismos para sofrer menos no dia-dia.
"Hoje, sempre uso
cartão de crédito para evitar que alguém me peça dez centavos para facilitar o
troco e consequentemente eu fique parada na frente do atendente sem
entender", conta Ana Helena.
"Já nas provas da
faculdade que tem cálculos, procuro dar o máximo nas questões que não envolvem
números para compensar minha dificuldade. Porque sei que mesmo estudando muito,
não vou ir bem", completou.
• Causas da discalculia
Especialistas ouvidos
pela BBC News Brasil explicam que diferente de uma dificuldade em matemática,
comum entre os alunos brasileiros - segundo o último Programa Internacional de
Avaliação de Estudantes (PISA), que avaliou o desempenho de alunos de 15 anos
de 81 países, sete em cada dez estudantes brasileiros não conseguem fazer
simples de matemática, como, por exemplo, dizer, quantos reais equivalem a dois
dólares, sabendo o valor de um dólar.
Na discalculia, a
dificuldade com os números não pode ser suprimida com aulas de reforço, porque
o impasse para entendê-los é fruto de um transtorno de neurodesenvolvimento -
terminologia utilizada para definir e classificar as alterações do desenvolvimento
cerebral que aparecem nos primeiros anos de vida e que persistem até a morte.
"Ou seja, a
criança nasce com uma disfunção em áreas cerebrais que processam as habilidades
matemáticas", explica Camila León, psicopedagoga e professora convidada da
Associação Brasileira de Dislexia (ABD).
Dentro os transtorno
de neurodesenvolvimento destacam-se o Transtorno do Espectro do Autismo (TEA),
o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), e os Transtornos do
Desenvolvimento da Aprendizagem (TApr), no qual estão incluídos separadamente
os transtornos do aprendizado da leitura (dislexia), da escrita (disgrafia) e o
transtorno do desenvolvimento da aprendizagem com prejuízo na matemática (a
discalculia).
Patrícia Abreu
Pinheiro Crenitte, professora do departamento de fonoaudiologia da USP de Bauru
e coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa em Escrita e Leitura (GREPEL),
explica que a discalculia é causada por uma combinação de fatores genéticos,
neurológicos e ambientais.
• Fatores neurológicos: estudos de
neuroimagem indicam que a discalculia pode estar relacionada a diferenças no
funcionamento de áreas do cérebro envolvidas no processamento numérico,
especialmente no lobo parietal, que é responsável por habilidades espaciais e
matemáticas. Além disso, problemas na comunicação entre diferentes áreas do
cérebro que processam informações matemáticas e numéricas também podem
influenciar a discalculia. Isso inclui dificuldades em conectar os símbolos
numéricos (como números e sinais matemáticos) ao que eles representam.
• Fatores genéticos: a discalculia também
pode ter um componente hereditário. Estudos indicam que familiares de pessoas
com discalculia têm maior probabilidade de apresentar dificuldades semelhantes.
Isso sugere que fatores genéticos podem influenciar a condição, embora ainda
não haja um gene específico identificado como responsável.
• Desenvolvimento cognitivo: problemas
relacionados à memória de trabalho, habilidades visuo-espaciais e outras
funções cognitivas podem contribuir para a discalculia, já que essas funções
são importantes para o processamento matemático.
"Embora a
discalculia tenha uma base neurológica e genética, fatores ambientais também
podem influenciar. Falta de exposição a um ensino adequado de matemática,
situações de estresse emocional ou condições socioeconômicas podem agravar ou
contribuir para o aparecimento de dificuldades matemáticas. Esses fatores por
si só não causam discalculia, mas podem intensificar os sintomas em indivíduos
já predispostos", ressaltou Patrícia.
• Sinais de alerta
Julia Beatriz Lopes
Silva, professora do departamento de psicologia e coordenadora do laboratório
de neuropsicologia do desenvolvimento, ambos da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG), alerta que o primeiro sinal que uma pessoa tem discalculia é quando
seu desempenho com números é quantitativamente abaixo do esperado para a idade
cronológica do indivíduo.
"Os sintomas da
discalculia podem se manifestar de maneira diferente em cada faixa etária.
Crianças, por exemplo, apresentam dificuldades básicas em aprender a contar,
compreender conceitos de quantidade, memorizar tabuadas ou aprender operações
matemáticas básicas."
"Já no caso de
adolescentes e adultos, é possível observar dificuldade em aplicar matemática
em situações práticas do cotidiano, como cálculo de troco, lidar com horários
ou gerir finanças pessoais", ressaltou Silva.
Camila León,
psicopedagoga e professora convidada da ABD (Associação Brasileira de Dislexia)
destaca que geralmente o primeiro a desconfiar que alguém pode ter discalculia
é o professor, uma que vez pode comparar o aluno com os demais da sala. O
problema é que por ser um transtorno de aprendizado novo, muitos profissionais
da educação não o conhecem.
León cita sinais da
discalculia em cada etapa do ensino regular. Confira:
<><>
Educação infantil (3 a 5 anos)
• Dificuldade para aprender a contar;
• Dificuldade para reconhecer padrões
simples;
• Dificuldade para entender o significado
dos numerais (como associar o numeral 3 a um conjunto de três objetos ou à
palavra oral três);
• Dificuldade para entender o conceito de
enumeração (associar um número a uma quantidade de objetos).
<><>
Ensino fundamental 1 (6 a 9 anos)
• Dificuldade de aprender e lembrar fatos
numéricos, como 4 + 2 = 6;
• Uso excessivo dos dedos para contar, em
vez de utilizar métodos mais avançados;
• Dificuldade para identificar símbolos
matemáticos (como + e -) e usá-los corretamente;
• Dificuldade para entender linguagem
matemática, como mais que e menos que;
• Dificuldade para entender o valor
posicional dos algarismos (confundindo 12 e 21, por exemplo).
<><>
Ensino fundamental 2 (10 a 14 anos)
• Dificuldade para entender conceitos
matemáticos, como a propriedade comutativa (3 + 5 é igual a 5 + 3) e a inversão
(saber a resposta para 3 + 26 – 26 sem precisar calcular);
• Dificuldade de selecionar uma estratégia
para resolver problemas matemáticos;
• Dificuldade para lembrar o placar em
jogos e atividades esportivas;
• Dificuldade de calcular o preço total de
dois ou mais itens.
<><> Como
funciona o diagnóstico
O diagnóstico da
discalculia é estabelecido por meio de uma avaliação multidisciplinar.
"Por vezes a
realização de teste de QI ou exames de imagem serão úteis, mas não para o
diagnóstico da discalculia propriamente dita, e sim para excluir outras
condições neurológicas que podem estar interferindo no aprendizado."
"Existem também
‘testes de desempenho escolar’, que são padronizados, e tornam-se ferramentas
úteis para o diagnóstico", aponta Júlio Koneski, médico neuropediatra e
membro do departamento científico de transtornos do neurodesenvolvimento da Sociedade
Brasileira de Neurologia Infantil (SBNi).
Segundo Koneski,
durante o diagnóstico, o neuropediatra analisa como é a trajetória do
aprendizado ao longo dos anos escolares iniciais, e se existe algum grau de
dificuldade em outras áreas (leitura e escrita).
"Informações
vindas da escola através de relatórios e análise de cadernos, bem como de
outros profissionais como psicólogos e pedagogos, podem complementar o
diagnóstico."
No Brasil, não existe
um "teste específico de discalculia", sendo necessária a utilização
de vários testes que avaliem as habilidades matemáticas e de outras habilidades
cognitivas associadas ao desempenho com números, como memória, atenção, velocidade
de processamento.
Julia Beatriz Lopes
Silva, professora da UFMG, ressalta que, em regra, a discalculia pode ser
identificada a partir dos 7 anos de idade.
Apesar de não haver
cura para esse transtorno de aprendizado, existem intervenções pedagógicas e
tratamentos focados em habilidades matemáticas que podem ajudar a melhorar o
desempenho e qualidade de vida de quem sofre com o transtorno. Alguns exemplos
de intervenções são:
• Apoio escolar especializado com métodos
adaptados e ferramentas visuais;
• Terapia cognitivo-comportamental para
ajudar a lidar com o impacto emocional e social das dificuldades;
• Tecnologia assistiva, como aplicativos e
softwares que facilitam o aprendizado de matemática.
<><>
Outros transtornos de aprendizado
Além da discalculia,
existem outros dois transtornos de aprendizado: os transtornos do aprendizado
de leitura (dislexia) e o da escrita (disgrafia/ disortografia).
Patrícia Abreu
Pinheiro Crenitte, professora da USP de Bauru diz que, dentre eles, a dislexia
é o mais comum. Estima-se que ela afete entre 5% e 17% da população mundial,
enquanto a discalculia afeta de 3% a 7%.
Indivíduos com
dislexia apresentam dificuldades em decodificar palavras, compreender textos,
identificar sons da fala (consciência fonológica) e associar letras a seus
sons.
Além disso, apresentam
dificuldades em reconhecer palavras rapidamente, ler com fluência, decodificar
palavras, soletrar corretamente, organizar pensamentos em escrita e compreender
o que foi lido.
"Como a leitura e
escrita são pilares da educação formal, os problemas relacionados à dislexia
são rapidamente notados, ao contrário da discalculia e da disortografia, que
afetam a matemática e a escrita, respectivamente, e são menos perceptíveis",
apontou Patrícia.
A professora da UFMG,
Julia Beatriz Lopes Silva, também ressalta que é comum que pessoas que
apresentam dificuldades numéricas (discalculia) também apresentem dificuldades
de leitura (dislexia).
"Existem
estimativas que entre 30 e 70% de pessoas que apresentam um destes transtornos
de aprendizagem também apresentam o outro."
No Brasil, desde 2021,
Lei nº 14.254/21 estabelece que as escolas da rede pública e privada devem
garantir acompanhamento específico, direcionado à dificuldade e da forma mais
precoce possível, aos estudantes com discalculia, disortografia e dislexia.
No caso de candidatos
com discalculia, em vestibulares e concursos públicos, eles têm assegurado
atendimento especializado no momento de realização da prova, como tempo
adicional e até calculadora (fornecida, geralmente, pela própria banca
realizadora da prova).
Fonte: BBC News Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário