sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Valério Arcary: Eleições municipais - dez hipóteses exploratórias

Uma avaliação das eleições municipais não é possível antes da conclusão do segundo turno. A luta só termina quando acaba. A esquerda está presente em mais de vinte disputas no segundo turno, entre elas grandes capitais como Fortaleza e Porto Alegre e, sobretudo, São Paulo, que podem redefinir o signo do balanço nacional. Não é verdade que será impossível vencer. As condições não são favoráveis, em algumas cidades até improváveis. Mas o clima de “já perdeu” é tão nocivo como o clima de “já ganhou” no início do segundo turno Lula/Bolsonaro em 2022. As pesquisas são um indicador a ser considerado, mas não são o único. O que está em jogo é de máxima gravidade. Algo em torno de uma média de 10% dos eleitores, em algumas capitais um pouco mais, definiu o voto somente nos últimos três dias antes de 6 de outubro. Uma só iniciativa política do governo sinalizando uma inflexão à esquerda que responda às expectativas populares incendiando uma poderosa esperança, e a presença de Lula, podem deslocar muitos milhares de votos. E a subjetividade da militância conta muito. A força moral e confiança política da parcela mais engajada do ativismo decidem uma batalha, quando os outros fatores se equilibram e, portanto, se anulam. Vai ser preciso muita garra. Neste marco só são possíveis algumas hipóteses de interpretação exploratórias.

Três padrões ou regularidades foram revelados pelas urnas: (a) verificou-se uma tendência de aumento na taxa de reeleição dos prefeitos que concorreram ao segundo mandato, potencializada pelas emendas parlamentares; (b) prevaleceu como constante uma polarização entre candidaturas do Centrão, ou seja, de frentes de direita neoliberal contra a extrema-direita, e não entre a esquerda e o bolsonarismo, revelando que o pêndulo deslocou para a direita em comparação com as eleições de 2020 e 2022; (c) confirmou-se o crescimento dinâmico da extrema-direita, utilizando a legenda do PL, mas não só, até com o surgimento de candidaturas rebeldes dentro do movimento bolsonarista, como Pablo Marçal em São Paulo e Cristina Graeml em Curitiba. Em resumo, direita e extrema-direita somaram, grosso modo, 91 milhões de votos, ganharam quase cinco mil prefeituras (4.926), e elegeram 48 mil vereadores. Esquerda (PT, PSOL e PCdoB) e centro-esquerda (PSB, PDT, PV, Rede) somaram 22 milhões de eleitores, ganharam 740 prefeituras, e elegeram 10 mil vereadores. Foi um desastre.

A derrota eleitoral da esquerda foi maior que a derrota política do governo Lula. A derrota de Lula foi mediada por vitórias dos aliados do governo: Paes no Rio de Janeiro, João Campos em Recife, Helder Barbalho em Belém, os Calheiros no interior de Alagoas, entre outros. Mas o PT, principal partido da esquerda e do governo, saiu enfraquecido das eleições. A triste derrota de Edmílson do PSOL na prefeitura de Belém, preservadas todas as proporções do desafio, é um alerta inescapável de que a reeleição de Lula em 2026 está em perigo. Devemos aprender com a história, porque há vários tipos de derrotas. Há derrotas acidentais, táticas, parciais, estratégicas e históricas. Têm gravidade muito diferente, e é necessário calibrar a análise. A passagem de Boulos para o segundo turno atrás de Nunes, em segundo lugar – porque dezenas de milhares de eleitores anularam o voto digitando 13 e não 50 – foi acidental. A derrota de Lula contra Collor em 1989 foi tática porque a esquerda teve uma vitória política. A derrota de Lula nas eleições de 1994 e 1998 foi uma derrota parcial porque não interrompeu o processo de acumulação de forças que vinha da década de oitenta. A derrota do golpe institucional foi estratégica porque inverteu a correlação de forças social e política e nos colocou na defensiva. Já a derrota diante do golpe em 1964, que levou ao poder a ditadura militar, foi histórica. A derrota nas eleições do primeiro turno de 2024 foi uma derrota política dura, mas parcial, não foi nem estratégica, nem histórica. Não selou o destino do governo Lula. Ainda há tempo para reverter os danos, mas somente se houver lucidez de que a situação é de alerta vermelho. O alerta amarelo ficou para trás, é muito sério.

A derrota da esquerda se explica por muitos fatores, mas repousa, essencialmente, em fatores objetivos e subjetivos. Os dois principais fatores objetivos são: (a) que a vida não melhorou depois de um ano e meio de governo Lula, apesar do crescimento, redução do desemprego, aumento do consumo e controle da inflação, porque foram melhorias insuficientes; (b) a maioria dos mais pobres mantém algum grau de lealdade política ao lulismo, mas uma parcela da classe trabalhadora rompeu com a esquerda. Existem hoje 38 milhões de assalariados com carteira assinada e treze milhões de funcionários públicos. Entre estes, grosso modo, cinquenta milhões de trabalhadores, algo em torno de 30 milhões têm uma renda entre três e sete salários mínimos. Há mais dez milhões de assalariados que não têm contratos, portanto, não usufruem dos direitos da CLT. Mas há 25 milhões de pessoas que trabalham por conta própria na informalidade, em sua maioria com pequenas empresas. É entre os remediados que o bolsonarismo criou raízes.

O que nos remete ao principal fator subjetivo. O governo Lula não faz a luta política-ideológica no patamar que a conjuntura exige. A extrema-direita é o movimento mais dinâmico, mais ativista, mais ideológico na sociedade. Sua influência vai além do um terço da população que lhes entrega o voto, porque conquistou hegemonia política. Entre os trabalhadores de renda média e esta pequena burguesia em formação está a audiência da extrema-direita. Têm escolaridade baixa ou, na melhor das hipóteses, média, e são remediados que estão em luta implacável pela ascensão social e respondem à agitação do bolsonarismo pela militarização da política. A maioria está nas redes, onde o governo não é capaz de dar resposta ao que a direita propõe. Além disso, o que está em jogo é que o povo vê mais facilidade de reagir às provocações e disputas quando se sente apoiado pelo governo. Ao contrário, o PT se restringe a contestar o governo e isso limita a possibilidade de os trabalhadores e as massas populares serem mobilizados. A esquerda perdeu, no entanto, as eleições do primeiro turno, mas não é a última que será disputada em um contexto de polarização. A esquerda precisa identificar a construção do seu discurso, ir além das pautas convencionais de direitos sociais e do foco em conquistas. Deve urgentemente atacar a questão da mobilidade social, o que inclui temas como a renda, a taxa de juros, e o preço dos combustíveis, porque todos são temas de vida e morte e que mexem com o cotidiano de quem vive sob a pressão de um orçamento limitado.

Não será possível derrotar o neofascismo prescindindo do mais poderoso instrumento de luta que a esquerda conquistou, que é o governo Lula. Mas ele faz pouco e mal. Por quê? Não é por que os publicitários são ruins de comunicação. O problema é uma estratégia errada. Privilegiou a aliança com setores do centrão para garantir a governabilidade, renunciando a qualquer apelo à mobilização das massas populares. Apostou que o crescimento iria ser suficiente para que uma sensação de bem estar crescente abrisse o caminho para o isolamento da oposição bolsonarista. Este erro de estratégia será fatal. O apelo do lulismo aos milhões que vivem na pobreza, que nos salvou de uma vitória de Bolsonaro em 2022, será insuficiente em 2026.

O denominado Centrão é uma perigosa anomalia brasileira. Trata-se de um campo esdrúxulo e pulverizado de aproximadamente dez partidos de direita, que une PSD, MDB, Republicanos da Igreja Universal, PP (Progressistas) herdeiro direto do que sobrou da Arena, o partido da ditadura, União Brasil (aliança do Democratas - ex-PFL - com PSL que elegeu Bolsonaro), PTB e Patriotas, Podemos, Avante até o Solidariedade e outros menores. O PSDB de FHC, Mário Covas e José Serra que foi, durante quinze anos, a principal referência na representação dos capitalistas no Brasil, hoje é um “cadáver insepulto” arrastado pelo Centrão. São legendas de aluguel. Saíram fortalecidos, particularmente, o PSD e o MDB, os “esquizofrênicos” de dupla personalidade. Mas o papel do centrão nestas eleições foi ser uma “caixa de ressonância” das ideias mais poderosas da extrema-direita.

A maioria destes partidos são aglomerados amorfos sem um mínimo de coesão interna, coerência ideológica, estabilidade política ou direção nacional. Vale notar que o PSD e MDB, os que obtiveram melhores resultados, não são partidos organizados em cima de um programa. Em algumas regiões estão aliados ao bolsonarismo (como nas regiões Sul, Centro-Oeste e no estado de SP) e em outras regiões estão aliados ao governo Lula (como no Pará, no Nordeste, até no RJ e em parte de MG). O destino da maioria do centrão será a divisão. Parece muito difícil a construção de uma candidatura de terceira via, como foi a de Simone Tebet em 2022. O mais provável é que a maioria procure alguma negociação com o bolsonarismo em torno de uma candidatura que seria de extrema-direita, como a de Tarcísio, governador de São Paulo, mas mais dissimulada que alguém da ala fascista.

O maior erro de análise que a esquerda poderia cometer seria, mais uma vez, subestimar a força do bolsonarismo. Muito mais importante que a vitória eleitoral do centrão foi a vitória política da extrema-direita. Ramagem perdeu em primeiro turno no Rio de Janeiro, o que tem um simbolismo, e Marçal não chegou ao segundo turno em São Paulo, mas seria uma imperdoável ilusão de ótica não perceber a expansão nacional do movimento, apesar da derrota eleitoral para Lula em 2022 e da semi-insurreição de janeiro de 2023. Venceu em três capitais (Rio Branco e Maceió) mas, também, Floripa, onde Topázio, filiado ao PSD, é homem de confiança de Jorginho Mello, que é bolsonarista até “embaixo d’água”. Disputa o segundo turno em capitais da importância de Belo Horizonte e Fortaleza, Manaus e Belém na Amazônia, Cuiabá, Palmas e Goiânia no Centro-Oeste, Curitiba e Porto Alegre (através de Melo, filiado ao MDB, mas de extrema-direita) além de João Pessoa e Aracaju no Nordeste. Das 52 cidades que irão voltar às urnas em 23 há um representante do PL. Doze candidatos foram os mais votados no primeiro turno.

O bolsonarismo saiu fortalecido com o aumento da capilaridade do movimento em escala nacional, aumentando sua presença nos interiores. O bolsonarismo usa com habilidade várias legendas, consolidou seu domínio sobre o PL, mas também se dividiu pela primeira vez, é verdade. A luta interna do bolsonarismo assumiu forma explosiva em São Paulo. Mas seria obtuso e fútil diminuir o avassalador impacto de Marçal, que expressa mais a força social da implantação da extrema-direita que as dificuldades políticas de sua condução. As diferenças táticas entre a ala chefiada por Tarcísio de Freitas, que optou por uma aliança com o centrão contra Boulos, e a ala fascista mais radical expressa por Marçal, Nikolas Ferreira, Feliciano, Salles, Zambeli, sinalizam uma turbulência. Bolsonaro hesitou. Mas ainda é cedo para retirar conclusões para 2026. Tudo sugere que duas linhas se esboçam, em função de avaliações distintas sobre a possibilidade ou não de Bolsonaro conseguir reverter a condenação de inelegibilidade.

 

Fonte: Opera Mundi

 

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