Valério Arcary: Eleições municipais - dez
hipóteses exploratórias
Uma avaliação das
eleições municipais não é possível antes da conclusão do segundo turno. A luta
só termina quando acaba. A esquerda está presente em mais de vinte disputas no
segundo turno, entre elas grandes capitais como Fortaleza e Porto Alegre e, sobretudo,
São Paulo, que podem redefinir o signo do balanço nacional. Não é verdade que
será impossível vencer. As condições não são favoráveis, em algumas cidades até
improváveis. Mas o clima de “já perdeu” é tão nocivo como o clima de “já
ganhou” no início do segundo turno Lula/Bolsonaro em 2022. As pesquisas são um
indicador a ser considerado, mas não são o único. O que está em jogo é de
máxima gravidade. Algo em torno de uma média de 10% dos eleitores, em algumas
capitais um pouco mais, definiu o voto somente nos últimos três dias antes de 6
de outubro. Uma só iniciativa política do governo sinalizando uma inflexão à
esquerda que responda às expectativas populares incendiando uma poderosa
esperança, e a presença de Lula, podem deslocar muitos milhares de votos. E a
subjetividade da militância conta muito. A força moral e confiança política da
parcela mais engajada do ativismo decidem uma batalha, quando os outros fatores
se equilibram e, portanto, se anulam. Vai ser preciso muita garra. Neste marco
só são possíveis algumas hipóteses de interpretação exploratórias.
Três padrões ou
regularidades foram revelados pelas urnas: (a) verificou-se uma tendência de
aumento na taxa de reeleição dos prefeitos que concorreram ao segundo mandato,
potencializada pelas emendas parlamentares; (b) prevaleceu como constante uma
polarização entre candidaturas do Centrão, ou seja, de frentes de direita
neoliberal contra a extrema-direita, e não entre a esquerda e o bolsonarismo,
revelando que o pêndulo deslocou para a direita em comparação com as eleições
de 2020 e 2022; (c) confirmou-se o crescimento dinâmico da extrema-direita,
utilizando a legenda do PL, mas não só, até com o surgimento de candidaturas
rebeldes dentro do movimento bolsonarista, como Pablo Marçal em São Paulo e
Cristina Graeml em Curitiba. Em resumo, direita e extrema-direita somaram,
grosso modo, 91 milhões de votos, ganharam quase cinco mil prefeituras (4.926),
e elegeram 48 mil vereadores. Esquerda (PT, PSOL e PCdoB) e centro-esquerda
(PSB, PDT, PV, Rede) somaram 22 milhões de eleitores, ganharam 740 prefeituras,
e elegeram 10 mil vereadores. Foi um desastre.
A derrota eleitoral da
esquerda foi maior que a derrota política do governo Lula. A derrota de Lula
foi mediada por vitórias dos aliados do governo: Paes no Rio de Janeiro, João
Campos em Recife, Helder Barbalho em Belém, os Calheiros no interior de Alagoas,
entre outros. Mas o PT, principal partido da esquerda e do governo, saiu
enfraquecido das eleições. A triste derrota de Edmílson do PSOL na prefeitura
de Belém, preservadas todas as proporções do desafio, é um alerta inescapável
de que a reeleição de Lula em 2026 está em perigo. Devemos aprender com a
história, porque há vários tipos de derrotas. Há derrotas acidentais, táticas,
parciais, estratégicas e históricas. Têm gravidade muito diferente, e é
necessário calibrar a análise. A passagem de Boulos para o segundo turno atrás
de Nunes, em segundo lugar – porque dezenas de milhares de eleitores anularam o
voto digitando 13 e não 50 – foi acidental. A derrota de Lula contra Collor em
1989 foi tática porque a esquerda teve uma vitória política. A derrota de Lula
nas eleições de 1994 e 1998 foi uma derrota parcial porque não interrompeu o
processo de acumulação de forças que vinha da década de oitenta. A derrota do
golpe institucional foi estratégica porque inverteu a correlação de forças
social e política e nos colocou na defensiva. Já a derrota diante do golpe em
1964, que levou ao poder a ditadura militar, foi histórica. A derrota nas
eleições do primeiro turno de 2024 foi uma derrota política dura, mas parcial,
não foi nem estratégica, nem histórica. Não selou o destino do governo Lula.
Ainda há tempo para reverter os danos, mas somente se houver lucidez de que a
situação é de alerta vermelho. O alerta amarelo ficou para trás, é muito sério.
A derrota da esquerda
se explica por muitos fatores, mas repousa, essencialmente, em fatores
objetivos e subjetivos. Os dois principais fatores objetivos são: (a) que a
vida não melhorou depois de um ano e meio de governo Lula, apesar do
crescimento, redução do desemprego, aumento do consumo e controle da inflação,
porque foram melhorias insuficientes; (b) a maioria dos mais pobres mantém
algum grau de lealdade política ao lulismo, mas uma parcela da classe
trabalhadora rompeu com a esquerda. Existem hoje 38 milhões de assalariados com
carteira assinada e treze milhões de funcionários públicos. Entre estes, grosso
modo, cinquenta milhões de trabalhadores, algo em torno de 30 milhões têm uma
renda entre três e sete salários mínimos. Há mais dez milhões de assalariados
que não têm contratos, portanto, não usufruem dos direitos da CLT. Mas há 25
milhões de pessoas que trabalham por conta própria na informalidade, em sua
maioria com pequenas empresas. É entre os remediados que o bolsonarismo criou
raízes.
O que nos remete ao
principal fator subjetivo. O governo Lula não faz a luta política-ideológica no
patamar que a conjuntura exige. A extrema-direita é o movimento mais dinâmico,
mais ativista, mais ideológico na sociedade. Sua influência vai além do um terço
da população que lhes entrega o voto, porque conquistou hegemonia política.
Entre os trabalhadores de renda média e esta pequena burguesia em formação está
a audiência da extrema-direita. Têm escolaridade baixa ou, na melhor das
hipóteses, média, e são remediados que estão em luta implacável pela ascensão
social e respondem à agitação do bolsonarismo pela militarização da política. A
maioria está nas redes, onde o governo não é capaz de dar resposta ao que a
direita propõe. Além disso, o que está em jogo é que o povo vê mais facilidade
de reagir às provocações e disputas quando se sente apoiado pelo governo. Ao
contrário, o PT se restringe a contestar o governo e isso limita a
possibilidade de os trabalhadores e as massas populares serem mobilizados. A esquerda
perdeu, no entanto, as eleições do primeiro turno, mas não é a última que será
disputada em um contexto de polarização. A esquerda precisa identificar a
construção do seu discurso, ir além das pautas convencionais de direitos
sociais e do foco em conquistas. Deve urgentemente atacar a questão da
mobilidade social, o que inclui temas como a renda, a taxa de juros, e o preço
dos combustíveis, porque todos são temas de vida e morte e que mexem com o
cotidiano de quem vive sob a pressão de um orçamento limitado.
Não será possível
derrotar o neofascismo prescindindo do mais poderoso instrumento de luta que a
esquerda conquistou, que é o governo Lula. Mas ele faz pouco e mal. Por quê?
Não é por que os publicitários são ruins de comunicação. O problema é uma
estratégia errada. Privilegiou a aliança com setores do centrão para garantir a
governabilidade, renunciando a qualquer apelo à mobilização das massas
populares. Apostou que o crescimento iria ser suficiente para que uma sensação
de bem estar crescente abrisse o caminho para o isolamento da oposição
bolsonarista. Este erro de estratégia será fatal. O apelo do lulismo aos
milhões que vivem na pobreza, que nos salvou de uma vitória de Bolsonaro em
2022, será insuficiente em 2026.
O denominado Centrão é
uma perigosa anomalia brasileira. Trata-se de um campo esdrúxulo e pulverizado
de aproximadamente dez partidos de direita, que une PSD, MDB, Republicanos da
Igreja Universal, PP (Progressistas) herdeiro direto do que sobrou da Arena, o
partido da ditadura, União Brasil (aliança do Democratas - ex-PFL - com PSL que
elegeu Bolsonaro), PTB e Patriotas, Podemos, Avante até o Solidariedade e
outros menores. O PSDB de FHC, Mário Covas e José Serra que foi, durante quinze
anos, a principal referência na representação dos capitalistas no Brasil, hoje
é um “cadáver insepulto” arrastado pelo Centrão. São legendas de aluguel.
Saíram fortalecidos, particularmente, o PSD e o MDB, os “esquizofrênicos” de
dupla personalidade. Mas o papel do centrão nestas eleições foi ser uma “caixa
de ressonância” das ideias mais poderosas da extrema-direita.
A maioria destes
partidos são aglomerados amorfos sem um mínimo de coesão interna, coerência
ideológica, estabilidade política ou direção nacional. Vale notar que o PSD e
MDB, os que obtiveram melhores resultados, não são partidos organizados em cima
de um programa. Em algumas regiões estão aliados ao bolsonarismo (como nas
regiões Sul, Centro-Oeste e no estado de SP) e em outras regiões estão aliados
ao governo Lula (como no Pará, no Nordeste, até no RJ e em parte de MG). O
destino da maioria do centrão será a divisão. Parece muito difícil a construção
de uma candidatura de terceira via, como foi a de Simone Tebet em 2022. O mais
provável é que a maioria procure alguma negociação com o bolsonarismo em torno
de uma candidatura que seria de extrema-direita, como a de Tarcísio, governador
de São Paulo, mas mais dissimulada que alguém da ala fascista.
O maior erro de
análise que a esquerda poderia cometer seria, mais uma vez, subestimar a força
do bolsonarismo. Muito mais importante que a vitória eleitoral do centrão foi a
vitória política da extrema-direita. Ramagem perdeu em primeiro turno no Rio de
Janeiro, o que tem um simbolismo, e Marçal não chegou ao segundo turno em São
Paulo, mas seria uma imperdoável ilusão de ótica não perceber a expansão
nacional do movimento, apesar da derrota eleitoral para Lula em 2022 e da
semi-insurreição de janeiro de 2023. Venceu em três capitais (Rio Branco e
Maceió) mas, também, Floripa, onde Topázio, filiado ao PSD, é homem de
confiança de Jorginho Mello, que é bolsonarista até “embaixo d’água”. Disputa o
segundo turno em capitais da importância de Belo Horizonte e Fortaleza, Manaus
e Belém na Amazônia, Cuiabá, Palmas e Goiânia no Centro-Oeste, Curitiba e Porto
Alegre (através de Melo, filiado ao MDB, mas de extrema-direita) além de João
Pessoa e Aracaju no Nordeste. Das 52 cidades que irão voltar às urnas em 23 há
um representante do PL. Doze candidatos foram os mais votados no primeiro
turno.
O bolsonarismo saiu
fortalecido com o aumento da capilaridade do movimento em escala nacional,
aumentando sua presença nos interiores. O bolsonarismo usa com habilidade
várias legendas, consolidou seu domínio sobre o PL, mas também se dividiu pela
primeira vez, é verdade. A luta interna do bolsonarismo assumiu forma explosiva
em São Paulo. Mas seria obtuso e fútil diminuir o avassalador impacto de
Marçal, que expressa mais a força social da implantação da extrema-direita que
as dificuldades políticas de sua condução. As diferenças táticas entre a ala
chefiada por Tarcísio de Freitas, que optou por uma aliança com o centrão
contra Boulos, e a ala fascista mais radical expressa por Marçal, Nikolas
Ferreira, Feliciano, Salles, Zambeli, sinalizam uma turbulência. Bolsonaro
hesitou. Mas ainda é cedo para retirar conclusões para 2026. Tudo sugere que
duas linhas se esboçam, em função de avaliações distintas sobre a possibilidade
ou não de Bolsonaro conseguir reverter a condenação de inelegibilidade.
Fonte: Opera Mundi
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