Seca severa em Rondônia: quando o rio pede
socorro, é preciso ouvi-lo
Cheguei a Porto Velho,
Rondônia, no mês de julho, numa madrugada de domingo e, ainda no topo da escada
de desembarque do avião, fui inundada pelo perfume quente da maior floresta
tropical do mundo. O meu roteiro de viagem me levou à capital rondoniense para,
em seguida, embarcar em uma jornada de cinco horas em direção à comunidade
ribeirinha de Nazaré, distrito de Porto Velho. Alguns dias depois do
desembarque, estava sentada na poltrona de número dezoito do barco expresso que
navegava por cento e cinquenta quilômetros em direção ao baixo Rio Madeira. A
maneira mais fácil de chegar à comunidade ribeirinha que me acolheu durante
dezessete dias era pelas águas de um dos principais afluentes do Rio Amazonas.
Me lembro bem de suas águas ainda caudalosas.
O expresso navegava
pelo meio do rio, abraçado pelo verde da floresta amazônica, que nos
acompanhava ininterruptamente pelas margens. Outros companheiros de viagem eram
as dragas de garimpo e as balsas que carregam grãos, combustíveis e demais
cargas. Apesar de serem companhias eventuais, eram extremamente desagradáveis.
Essas estruturas metálicas tão avessas à potência vertical da floresta,
denunciavam o perigo à espreita. Tola, não esperava a rapidez com que aquele
território se transformaria. Em algumas semanas, a fumaça tomou conta dos céus
e, cerca de dois meses depois, o trecho do rio pelo qual naveguei atingiu a marca de 42 centímetros.
Não foi por falta de
aviso. Durante as quase três semanas que vivi em Nazaré, comunidade ribeirinha
com cerca de 140 famílias, pude presenciar as aflições desembarcando junto a
cada barco que atracava. “Nunca vi uma seca como essa”, “a tendência é o banco
de areia parar aqui no meio do rio e o igarapé ficar só um filetinho de água”,
“já dá para perceber que o rio tá pedindo socorro”. Essas foram algumas das
preocupações que escutei e anotei em meu fiel e parceiro caderninho. Neste
período, a escadaria que faz caminho do leito do rio até a entrada de Nazaré
estava completamente descoberta. Seus setenta degraus se tornaram uma maneira
visual de medir os níveis do rio ao longo das estações. Moradores me contaram
que só era possível ver todos os degraus descobertos perto de setembro.
Estávamos em julho. A seca estava dois meses adiantada.
Infelizmente, assisti
às previsões feitas em julho pelos moradores se concretizando. No dia 3 de
outubro deste ano, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) precisou
interromper parcialmente suas atividades na usina Santo Antônio, que fica na
capital do estado, em Porto Velho, por conta da escassez de água no Rio
Madeira. Apenas 14% das turbinas estão em funcionamento. O Rio atingiu o seu
nível mais baixo em toda a história da região, com apenas 1,02 metros de nível
de água, o menor desde o início da série histórica, em 1967. Dados do Serviço
Geológico do Brasil (SGB) trazem um cenário futuro ainda mais árido e
preocupante: não há previsão de chuvas para a região tão cedo, e o nível do rio
deve continuar a baixar, o que irá agravar ainda mais crise hídrica no estado.
Essa mudança na
intensidade dos períodos de seca e cheia dos últimos anos obrigou os
ribeirinhos a alterarem os seus modos de vida. Foi o que me contou Erineuzo
Soares, conhecido como Carlão em Nazaré, onde cresceu e vive até hoje. Ele, sua
esposa Janaína Carvalho e outras 400 famílias que vivem no distrito (composto
também por outras sete comunidades: Boa Vitória, Tira-Fogo, Catarina,
Conceição, São José, Bonfim e Pombal), dependem das águas do Rio Madeira para
sobreviver.
Janaína e Carlão vivem
majoritariamente do que pescam e do que plantam em sua propriedade, como
macaxeira, banana, milho e mamão. O casal me contou que antigamente possuíam um
maior controle sobre as épocas de plantio e colheita, que levava em consideração
a quantidade de chuvas, o nível das águas e os locais que seriam alagados.
“Hoje, você não faz mais planejamento (para a plantação) contando que a água
vai chegar, porque às vezes ela pode passar e às vezes ela não vem. (…) Esse
ano não encheu o suficiente, costumava vir aqui em cima, mas ela não chegou nem
na metade e está cada vez mais seco”, explicou Carlão. Em 2024, o milho ficará
de fora da dieta familiar, pois com a mudança no regime de chuvas e secas, o
cereal não vingou na roça do casal.
• Nosso futuro comum e as futuras gerações
Nos dias que estive em
Nazaré, enquanto o cotidiano ainda corria com aparente normalidade, conheci
Enzo, um ribeirinho de seis anos de idade. Como estive na comunidade durante o
período das férias escolares, o encontrava quase todos os dias para cima e para
baixo com alguma turma de amigos. Certa vez, o encontrei no campinho de futebol
e perguntei, despretensiosamente: “Enzo, onde você mora?”. “Eu moro no céu!”,
respondeu o menino. Dei um sorriso e me contentei com a resposta, afinal, Enzo
tinha seis anos e se aquele lugar em meio à floresta amazônica não fosse o céu,
onde mais seria? O verde ofuscante, o céu límpido, os botos tucuxis fazendo
festa na beira do rio… Me lembrei que o menino ainda não tinha sido atravessado
pelas complexidades que também povoam sua
comunidade e todo o território amazônico. Me lembrei que ele estava
ocupado demais brincando de pega-pega para saber que o nível do rio estava mais
baixo do que o normal para o período. Enzo morava mesmo no céu. E nem eu, nem
ele, pudemos prever que, menos de um mês depois dessa nossa conversa, o céu de
Enzo se tornaria quente, seco e sufocante.
Julho foi um mês de
recordes e isso não é motivo para comemorar. Ao mesmo tempo em que Nazaré
assistia suas águas baixarem, Rondônia registrava o maior número de focos de
queimadas em quase duas décadas. Uma combinação perigosa que levou ao cenário
que ainda hoje, em outubro, o país todo continua assistindo. Elias Ribeiro,
coordenador de Defesa Civil Municipal de Porto Velho, conta que estão sendo
tomadas medidas para que as 900 famílias em situação de urgência no município
sejam atendidas. Segundo ele, estão sendo distribuídas água mineral e cestas
básicas, além de hipoclorito para o tratamento de água. Também foram feitas
perfurações de poços em algumas comunidades.
Há algumas semanas,
recebi no WhatsApp um áudio de uma grande amiga que fiz em Nazaré, Zuleide
Cunha, apelidada carinhosamente de Zuzu. Perguntei como estavam as coisas por
lá. “Uma quentura horrível. Uma seca e um fumaceiro que ninguém sabe se é de
dia ou se é de noite”, ela me respondeu. Pensei no céu de Enzo e em como
estaria o meu pequeno grande amigo.
Fonte: Fernanda
Biasoli, no Le Monde
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