sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Seca severa em Rondônia: quando o rio pede socorro, é preciso ouvi-lo

Cheguei a Porto Velho, Rondônia, no mês de julho, numa madrugada de domingo e, ainda no topo da escada de desembarque do avião, fui inundada pelo perfume quente da maior floresta tropical do mundo. O meu roteiro de viagem me levou à capital rondoniense para, em seguida, embarcar em uma jornada de cinco horas em direção à comunidade ribeirinha de Nazaré, distrito de Porto Velho. Alguns dias depois do desembarque, estava sentada na poltrona de número dezoito do barco expresso que navegava por cento e cinquenta quilômetros em direção ao baixo Rio Madeira. A maneira mais fácil de chegar à comunidade ribeirinha que me acolheu durante dezessete dias era pelas águas de um dos principais afluentes do Rio Amazonas. Me lembro bem de suas águas ainda caudalosas.

O expresso navegava pelo meio do rio, abraçado pelo verde da floresta amazônica, que nos acompanhava ininterruptamente pelas margens. Outros companheiros de viagem eram as dragas de garimpo e as balsas que carregam grãos, combustíveis e demais cargas. Apesar de serem companhias eventuais, eram extremamente desagradáveis. Essas estruturas metálicas tão avessas à potência vertical da floresta, denunciavam o perigo à espreita. Tola, não esperava a rapidez com que aquele território se transformaria. Em algumas semanas, a fumaça tomou conta dos céus e, cerca de dois meses depois, o trecho do rio pelo qual naveguei  atingiu a marca de 42 centímetros.

Não foi por falta de aviso. Durante as quase três semanas que vivi em Nazaré, comunidade ribeirinha com cerca de 140 famílias, pude presenciar as aflições desembarcando junto a cada barco que atracava. “Nunca vi uma seca como essa”, “a tendência é o banco de areia parar aqui no meio do rio e o igarapé ficar só um filetinho de água”, “já dá para perceber que o rio tá pedindo socorro”. Essas foram algumas das preocupações que escutei e anotei em meu fiel e parceiro caderninho. Neste período, a escadaria que faz caminho do leito do rio até a entrada de Nazaré estava completamente descoberta. Seus setenta degraus se tornaram uma maneira visual de medir os níveis do rio ao longo das estações. Moradores me contaram que só era possível ver todos os degraus descobertos perto de setembro. Estávamos em julho. A seca estava dois meses adiantada.

Infelizmente, assisti às previsões feitas em julho pelos moradores se concretizando. No dia 3 de outubro deste ano, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) precisou interromper parcialmente suas atividades na usina Santo Antônio, que fica na capital do estado, em Porto Velho, por conta da escassez de água no Rio Madeira. Apenas 14% das turbinas estão em funcionamento. O Rio atingiu o seu nível mais baixo em toda a história da região, com apenas 1,02 metros de nível de água, o menor desde o início da série histórica, em 1967. Dados do Serviço Geológico do Brasil (SGB) trazem um cenário futuro ainda mais árido e preocupante: não há previsão de chuvas para a região tão cedo, e o nível do rio deve continuar a baixar, o que irá agravar ainda mais crise hídrica no estado.

Essa mudança na intensidade dos períodos de seca e cheia dos últimos anos obrigou os ribeirinhos a alterarem os seus modos de vida. Foi o que me contou Erineuzo Soares, conhecido como Carlão em Nazaré, onde cresceu e vive até hoje. Ele, sua esposa Janaína Carvalho e outras 400 famílias que vivem no distrito (composto também por outras sete comunidades: Boa Vitória, Tira-Fogo, Catarina, Conceição, São José, Bonfim e Pombal), dependem das águas do Rio Madeira para sobreviver.

Janaína e Carlão vivem majoritariamente do que pescam e do que plantam em sua propriedade, como macaxeira, banana, milho e mamão. O casal me contou que antigamente possuíam um maior controle sobre as épocas de plantio e colheita, que levava em consideração a quantidade de chuvas, o nível das águas e os locais que seriam alagados. “Hoje, você não faz mais planejamento (para a plantação) contando que a água vai chegar, porque às vezes ela pode passar e às vezes ela não vem. (…) Esse ano não encheu o suficiente, costumava vir aqui em cima, mas ela não chegou nem na metade e está cada vez mais seco”, explicou Carlão. Em 2024, o milho ficará de fora da dieta familiar, pois com a mudança no regime de chuvas e secas, o cereal não vingou na roça do casal.

•        Nosso futuro comum e as futuras gerações

Nos dias que estive em Nazaré, enquanto o cotidiano ainda corria com aparente normalidade, conheci Enzo, um ribeirinho de seis anos de idade. Como estive na comunidade durante o período das férias escolares, o encontrava quase todos os dias para cima e para baixo com alguma turma de amigos. Certa vez, o encontrei no campinho de futebol e perguntei, despretensiosamente: “Enzo, onde você mora?”. “Eu moro no céu!”, respondeu o menino. Dei um sorriso e me contentei com a resposta, afinal, Enzo tinha seis anos e se aquele lugar em meio à floresta amazônica não fosse o céu, onde mais seria? O verde ofuscante, o céu límpido, os botos tucuxis fazendo festa na beira do rio… Me lembrei que o menino ainda não tinha sido atravessado pelas complexidades que também povoam sua  comunidade e todo o território amazônico. Me lembrei que ele estava ocupado demais brincando de pega-pega para saber que o nível do rio estava mais baixo do que o normal para o período. Enzo morava mesmo no céu. E nem eu, nem ele, pudemos prever que, menos de um mês depois dessa nossa conversa, o céu de Enzo se tornaria quente, seco e sufocante.

Julho foi um mês de recordes e isso não é motivo para comemorar. Ao mesmo tempo em que Nazaré assistia suas águas baixarem, Rondônia registrava o maior número de focos de queimadas em quase duas décadas. Uma combinação perigosa que levou ao cenário que ainda hoje, em outubro, o país todo continua assistindo. Elias Ribeiro, coordenador de Defesa Civil Municipal de Porto Velho, conta que estão sendo tomadas medidas para que as 900 famílias em situação de urgência no município sejam atendidas. Segundo ele, estão sendo distribuídas água mineral e cestas básicas, além de hipoclorito para o tratamento de água. Também foram feitas perfurações de poços em algumas comunidades.

Há algumas semanas, recebi no WhatsApp um áudio de uma grande amiga que fiz em Nazaré, Zuleide Cunha, apelidada carinhosamente de Zuzu. Perguntei como estavam as coisas por lá. “Uma quentura horrível. Uma seca e um fumaceiro que ninguém sabe se é de dia ou se é de noite”, ela me respondeu. Pensei no céu de Enzo e em como estaria o meu pequeno grande amigo.

 

Fonte: Fernanda Biasoli, no Le Monde

 

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