“Estamos em perigo”: diz na ONU neto de Mãe
Bernadete, quilombola assassinada na Bahia
Liderança quilombola
na comunidade de Pitanga dos Palmares, em Simões Filho, na Bahia, Wellington
Santos Pacífico, de 23 anos, discursou, na última terça, 15 de outubro, em
sessão na sede da Organização das Nações Unidas, em Nova York, nos Estados
Unidos. Ele é neto da Mãe Bernadete, como era conhecida Maria Bernadete
Pacífico, liderança local e coordenadora da Coordenação Nacional de Articulação
de Quilombos (Conaq). Ela foi assassinada em sua própria casa em agosto de 2023
por dois homens armados, que dispararam 25 vezes contra a senhora. Na ocasião,
Pacífico e outras duas crianças da família estavam em casa com Bernadete.
Na ONU, Pacífico pediu
ajuda internacional para alcançar justiça para os povos quilombolas. “Pedimos
que acompanhem os casos de crimes contra a vida de nossos líderes e coloquem
pressão internacional sobre o governo brasileiro para garantir que nossos direitos
sejam garantidos e nossos perpetradores sejam punidos com toda a força da lei”,
discursou.
O rapaz foi convidado
pela relatora especial sobre a situação dos defensores dos direitos humanos,
Mary Lawlor – que visitou o quilombo em abril deste ano. Ele disse que a
comunidade e as lideranças se sentem inseguras depois da morte do pai dele,
Flávio Pacífico, o Binho, de 36 anos, em 2017, e da avó, no ano passado.
<><> Por
que isso importa?
• Mãe Bernadete era líder quilombola e
coordenadora da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq).
• O município onde está o quilombo de
Pitanga dos Palmares, Simões Filho, foi o quinto mais violento do país no
Anuário Estatístico de Segurança Pública (2023).
Na sessão na ONU,
Pacífico, que está no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos
(PPDDH), disse que não se sente seguro no Brasil. “Enquanto os chefes de
Estado, um após o outro, se alinharam no mês passado para reafirmar seus
compromissos com os ODS [Objetivos de Desenvolvimento Sustentável], nós que
tentamos garantir que nosso planeta permaneça viável, estamos em sério perigo”,
afirmou em discurso lido em inglês. “Pagamos um preço terrível por isso [a
defesa dos direitos humanos]”.
A dor do rapaz começou
na manhã do dia 19 de setembro de 2017, quando o pai, Flávio Pacífico dos
Santos, o Binho do Quilombo, de 36 anos, foi assassinado perto de casa com 16
tiros. “Quando cheguei lá, vi muitas pessoas na rua e o carro de um dos nossos maiores
líderes estava coberto de lonas […] Um negro e defensor dos direitos humanos
quilombola, que lutava por justiça social e reparações históricas […]. Sua vida
foi tirada por pistoleiros cujos mandantes ainda não conhecemos”, discursou. O
processo corre em segredo de justiça. Em julho, a Polícia Federal divulgou que
havia prendido dois suspeitos do crime.
• “O Estado falhou”
Em entrevista à
Agência Pública, antes da viagem para Nova York, Pacífico disse que a família
não sabe o que está sendo investigado, mas imagina que pode haver diferentes
envolvimentos. “Eu penso que esse assassinato, essa covardia que fizeram com
meu pai, tem tanta gente poderosa envolvida que até esse sigilo é extremamente
respeitado e blindado. Nem a família sabe o que está acontecendo, ninguém tem
acesso às informações”, disse.
No discurso na ONU,
Pacífico recordou que, depois da morte do pai, a avó passou a fazer parte do
PPDDH, desenvolvido pelo governo federal e administrado pela sociedade civil.
“Ela continuou exercendo a liderança sem meu pai. Mas, desta vez, ela estava contando
com essa proteção e se sentiu segura. Infelizmente, esse sentimento foi apenas
um erro”, lamentou, na fala aos estrangeiros.
Bernadete foi
assassinada quase seis anos depois, em 17 de agosto de 2023. Pacífico estava
com a avó e com mais duas crianças da família assistindo à TV na sala. Quando
os executores entraram, as três testemunhas foram trancadas nos quartos e os
criminosos ficaram apenas com a idosa. “Eu estava lá. Não havia nada que eu
pudesse fazer além de ouvir os tiros e sentir o cheiro da pólvora queimando no
ar. Os buracos de bala em seu rosto fazem parte de uma imagem que nunca sairá
da minha mente”, recorda o rapaz.
Pacífico afirmou que
as câmeras de segurança instaladas pelo programa de proteção estavam quebradas.
“O Estado falhou novamente e continua falhando sem fornecer reparações
adequadas para nossa família e quilombo. Ainda somos economicamente e
socialmente vulneráveis”, afirmou.
Um exemplo que ele
citou foi a presença da Colônia Penal de Simões Filho nas proximidades do
quilombo. Ele aponta que isso contrasta com a falta de escolas de ensino médio
nas imediações. Para ele, a falta de regularização fundiária está intimamente
relacionada aos crimes contra quilombolas. Ele lembrou que, entre 2018 e 2022,
pelo menos 30 lideranças foram mortas no país.
“Está claro que a
solução para a maioria dos problemas que enfrentamos está na Justiça, em todas
as suas formas. Mas não podemos fazer isso sozinhos. Precisamos de aliados
fortes, e é por isso que contamos com as Nações Unidas”, disse.
Pitanga dos Palmares
tem área urbana e rural na cidade de Simões Filho, na região metropolitana de
Salvador. Lá vivem cerca de 3 mil pessoas.
Além de Wellington
Pacífico, o tio, Jurandir Pacífico, de 44 anos, filho de Bernadete, também está
no programa de proteção do Estado. Jurandir acredita que está sob risco. Para a
comunidade, ele lamenta a falta de iluminação, da escola de ensino médio, do
saneamento básico e do transporte público. “A comunidade de Pitanga dos
Palmares, que será titulada em breve, sofre esses anos todos pela falta de
política pública, principalmente na esfera municipal”, reclama.
O Instituto Nacional
de Colonização e de Reforma Agrária (Incra), em nota à Pública, explicou que o
território já foi reconhecido e, agora, o próximo passo será “a publicação dos
decretos de interesse social, a serem expedidos pela Presidência da República,
dos imóveis rurais particulares inseridos no território”. Para Jurandir, a luta
de Bernadete pela titulação das terras foi o que motivou a morte da liderança
quilombola.
A investigação
policial na Bahia, porém, chegou à conclusão de que os autores do crime eram
ligados ao tráfico de drogas e teria sido motivado pela atuação da idosa em
defesa da comunidade. O inquérito policial indiciou seis pessoas pelo
envolvimento na morte de Bernardete: dois executores, dois mandantes e outros
dois participantes.
Para a Pública, o
Ministério Público da Bahia avaliou que a investigação ocorreu de forma
adequada e, nos autos do processo judicial, todos os documentos apontam para a
culpa de integrantes do tráfico de drogas. A polícia e o Ministério Público da
Bahia afirmam que estão foragidos Marílio dos Santos e Josevan Dionísio. Quatro
homens já foram presos.
Anteriormente, o
advogado David Mendez, que representa a família, havia dito que Bernadete
sofria ameaças de madeireiros, os quais teriam sido denunciados por extração
ilegal de madeira na comunidade.
• Município onde vivia Mãe Bernadete é o
quinto mais violento do Brasil
Para Wellington
Pacífico, o único caminho para que a população se defenda é a educação. “As
gerações mais jovens precisam se proteger das informações falsas que correm nas
redes sociais. É necessário inserir na educação básica os alicerces da educação
política e do letramento racial.”
Ele avalia, por
exemplo, ser necessário que a sociedade que luta por uma escola antirracista
deve exigir que seja cumprida a obrigatoriedade do que foi definido na Lei
10.639, que trata da obrigatoriedade do ensino da história afro-brasileira e
africana nas escolas.
“A comunidade, logo
após a inauguração desse presídio, passou por transformações e deixou de
observar aquele lugar tranquilo e pacato”, afirma Pacífico.
A instalação da
Colônia Penal de Simões Filho, em 2007, pode ter provocado uma situação
semelhante ao que ocorreu em Jequié, também na Bahia, que viu surgirem grupos
do crime organizado e tráfico de drogas, tornando a cidade uma das mais
violentas do Brasil.
Simões Filho não é
diferente. Segundo o último Anuário Estatístico de Segurança Pública (2023), o
município é o quinto mais violento do Brasil, com 75,9 assassinatos a cada 100
mil habitantes.
“Após um ano que minha
avó foi assassinada, eu gostaria de ter visto mudanças positivas para honrar a
memória e a luta que ela teve e medidas mais urgentes em relação à segurança
pública”, diz Pacífico.
Quando o rapaz tinha
18 anos, conseguiu passar no vestibular da Universidade Federal da Bahia
(UFBA), no curso de ciências sociais. Só que optou por trabalhar, já que tinha
perdido o pai em 2017. “Eu entendi o meu papel de filho mais velho naquele
momento. Os anos se passaram e eu continuei acompanhando minha avó.” Depois do
assassinato de Bernadete, Pacífico resolveu honrar o legado da família para
trabalhar pela associação dos moradores.
• Comunidade se queixa de falta de
políticas públicas
O trabalho da família
Pacífico é, dentro do possível, lutar a cada dia por conquistas que impactam a
comunidade. O tio, Jurandir, reclama que a iluminação pública ainda não é o
suficiente. “A cada 30 metros era para ter um poste iluminado. Durante a eleição
agora, colocaram uns braços de luz em algum lugar, mas mesmo assim está
escuro”, diz.
A reportagem da
Pública esteve na comunidade e ouviu os moradores, que ainda estão assustados
com a violência e concordam que a iluminação não é o suficiente. A família do
pedreiro José Ricardo Souza, de 42 anos, e da esposa, Carolina Moura, de 29,
“acostumou-se” com a escuridão e com a falta de transporte, que passa somente
duas vezes ao dia para levar e trazer as crianças da escola.
“Os candidatos
aparecem nessa época, mas sabemos que não estão interessados em nos ajudar.
Nossa vida é muito caseira. Não tem como ir longe daqui”, diz Souza. A esposa
sente falta da companhia de Bernadete. “Ela queria ajudar todo mundo. Não havia
tempo ruim para ela”, relembra.
• Outro lado
Questionada, a
prefeitura de Simões Filho não respondeu sobre as queixas a respeito da
prestação de serviços.
A Secretaria de
Igualdade Racial da Bahia garante que as comunidades quilombolas “sempre
tiveram centralidade na agenda da política de promoção da igualdade racial”.
O órgão acrescentou
que o governo da Bahia trabalha de forma transversal para garantir os direitos
territoriais e o acesso a serviços básicos, como educação, saúde, cultura,
saneamento básico, segurança pública e assistência social para as comunidades
quilombolas, “considerando o passivo acumulado nestes 136 anos após a abolição
formal da escravidão”. Veja a resposta completa aqui.
Já o secretário
nacional de Políticas para Quilombolas, Ronaldo dos Santos, respondeu que o
Brasil tem um histórico de violência no campo que não está sempre nos
noticiários. “A disputa agrária no Brasil já fez muitas vítimas, e as vítimas
são sempre os chamados grupos minoritários”, aponta.
Ele considera que o
governo federal passado, de Jair Bolsonaro (PL), foi marcado ainda por uma
incitação à violência no campo, com um discurso da necessidade de autodefesa e
de mais armamentos. Ele defendeu a necessidade de intensificar os programas de
segurança porque essas lideranças ficam muito expostas e vulneráveis a essa
“mentalidade”. “Também [é preciso] intensificar a política de regularização
fundiária porque a gente sabe que a regularização protege muito as comunidades
dessas ações violentas no campo.”
Fonte: Por Luiz
Claudio Ferreira, da Agência Pública
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