A tragédia sem farsa
No dia 5 de outubro,
tomamos um duro golpe contra os valores mais básicos que as tradições
iluminista e socialista nos legaram. Temos enfrentado, sem sucesso, o
crescimento da extrema direita no país e, como resultado, estamos perdendo, a
passos largos, território na disputa hegemônica de nossa sociedade.
De início, é preciso
afirmar a largura e profundidade dessa derrota em toda a sua extensão para que
seja possível elaborar estratégias de enfrentamento que estejam assentadas em
bases sólidas.
Perdemos e perdemos
muito. Não foi a perda da esquerda institucional, foi a perda de toda a
esquerda. Partidos mais radicalizados, como PSTU e o PCB estão cada vez menores
e sem poder de mobilização. O PSol reduziu de tamanho, perdeu todas as
prefeituras e boa parte das cadeiras de vereança, ainda que tenha crescido em
termos de votos absolutos e conquistado novas cadeiras em algumas regiões. O
PT, por outro lado, cresceu timidamente, muito longe do que precisava.
Mesmo com a ida de
Guilherme Boulos ao segundo turno, sentimos essa conquista como uma derrota,
haja vista que ele sequer ficou em primeiro lugar, sendo que o bolsonarismo se
fragmentou em São Paulo em duas candidaturas que quase disputaram sozinhas essa
segunda volta. Além disso, em capitais onde há segundo turno, os candidatos
“progressistas” estão muito mal localizados, em especial, nos estados de Rio
Grande do Sul, Sergipe e Ceará.
É verdade que a
conciliação de classes com a direita tem parte da resposta para essa derrota,
mas o que explica campos mais radicalizados não conseguirem se recompor, sejam
em termos eleitorais ou organizacionais? Seria só a estratégia de direitização
da esquerda em termos discursivos, como aponta Vladimir Safatle, ou de
capitulação política para a estrutura do Estado? À essa altura, defender essa
tese como argumento soa como olhar para o problema somente de um ângulo,
tentando achar um elemento externo para expiar a nossa responsabilidade nessa
derrota.
O fato é que essa
derrota é uma derrota generalizada de nossos modos de organização, de não
entender as novas dinâmicas de classe em jogo e de não conseguir interpretar
bem o novo momento do processo de acumulação de capital que vivemos atualmente:
mais financeirizado, mais informacional, mais entranhado numa lógica neoliberal
que coloca nas costas do indivíduo uma responsabilidade que é do Estado e o
transforma num “gestor” de sua própria vida.
Com isso, gastamos
tempo demais discutindo Jair Bolsonaro e o bolsonarismo e pouco discutindo como
vamos lidar com o fato de que a nossa juventude está cada vez menor e mais
velha, os movimentos sociais estão cada vez mais burocratizados e diminutos e
nossas ferramentas sindicais não são vistas como importantes instrumentos de
luta pela própria classe.
Estamos, enfim, no
meio de um movimento acelerado de entropia que só parece que será interrompido
quando algo novo surgir. E esse novo pode não ser bem algo de esquerda, mas um
“Paes” da vida, que mistura um bolsonarismo sem Jair Bolsonaro e parte da “galera
progressista” sem se comprometer, aliás, com nenhuma pauta de esquerda. Apenas
não é um troll abominável, como é o caso dos candidatos bolsonaristas raiz.
Preocupa, por isso, o
fato de que durante todo esse tempo as eleições municipais foram tratadas como
sendo simplesmente “locais” quando os grandes artífices do caos que a gente
quer tanto combater (a direita como um todo) sempre a trataram como estratégica.
Coligações dos partidos de esquerda com o União Brasil, PSD, Republicanos, PP e
o próprio PL, por exemplo, foram tomadas como contingenciais com o objetivo de
atingir um fim pragmático, qual seja: melhorar a vida das pessoas por meio de
uma eleição.
A tradição socialista
é suficientemente clara sobre o resultado que isso gera. Mesmo que,
superficialmente, sejam, de fato, governos melhores do ponto de vista da
garantia de alguns direitos trabalhistas e sociais. Exemplos fracassados dessa
tática temos aos montes, como é o caso de Marcos Xukuru, uma importante
liderança indígena que se candidatou pelo Republicanos no estado de Pernambuco
e teve a candidatura cassada, inclusive no TSE, por conta de uma acusação falsa
de crime de incêndio. Como se percebe, o resultado desse giro pragmático é a
Justiça afirmando o seu lugar de classe.
Como lidar com isso,
como confrontar a direita, então? Lembrando-se dos pressupostos da luta
socialista: (i) vivemos em uma sociedade de classes; (ii) essa sociedade existe
em virtude de uma desigualdade social e econômica mais profunda; (iii) essa
desigualdade é mantida por uma luta hegemônica; (iv) a luta hegemônica não tem
só um sentido, pois nós também temos agência e podemos disputá-la.
Como vivemos um
momento de rebaixamento da esquerda, dois sintomas disso têm se afirmado por
meio de uma despolitização frequente entre os seus membros e de uma perda de
capacidade de mobilização mais espontânea, que é capturada por mecanismos
institucionais de Estado, como o Fundo Partidário (slogans de campanhas
anteriores como “Tô na rua sem receber um real, tô na rua por um ideal”, por
mais precarizantes que sejam, deixaram de circular).
O correto seria
perguntar: por onde andam os militantes? Essa figura pré-histórica que pegava
tarefas sem cobrar por isso, que acumulava politicamente etc. Talvez estejam em
algum divã para falar sobre o excesso de tarefas e de horas de trabalho gerados
pelo abuso dos pedidos realizados por direções esclarecidas, entre outros. Mas
essa é uma figura que faz falta. Não tanto pelo que foi, mas, sim, pelo
potencial de estruturar e contribuir com a direção dos movimentos sociais.
Em resumo, não temos
mais militantes, perdemos as condições materiais de mobilizar e as substituímos
por um convencimento que se restringe ao plano retórico. Para sair disso, não
basta investir em novas formas de comunicação, sobretudo pelo uso aplicado da
internet; pois, se a hegemonia é ditada hoje pela extrema-direita, significa
que qualquer disputa em torno de “palavras de ordem” e de escolhas linguísticas
são insuficientes, porque há todo um mundo para “além da linguagem” que precisa
ser conquistado. No trato individual, na relação dialógica cultivada
cotidianamente. O que implica o desafio de nos reaproximar das pessoas de
maneira física, presencial, intensa, em atividades de longo prazo. E, para
fazer isso, faltam-nos… militantes.
Como a história sempre
segue seu curso, há algo ainda em disputa. E o que há de mais essencial em
disputa hoje é, justamente, a natureza daquilo que chamamos de esquerda. No fim
dessa contenda, o nosso campo será constituído majoritariamente por uma esquerda
nos termos da tradição latino-americana ou será uma esquerda de base
estadunidense (Partido Democrata)? Ou seja, será uma esquerda socialista ou uma
esquerda liberal?
Discordo dos que veem
essa disputa como algo já acabado, em que o pêndulo encerrou o seu ciclo,
terminando por eleger o último polo como vitorioso. Acredito, como mostram as
vitórias pontuais que setores mais ou menos à esquerda do campo progressista
tiveram, que essa disputa segue ainda em aberto e que a chave que vai definir a
forma que vamos dar à esquerda está na capacidade que teremos de formar novos
militantes.
Fonte: Por Baruc
Carvalho Martins, em A Terra é Redonda
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