Famílias que governo de Minas deixou sem
terra lutam por reparação bilionária
Milton Eustáquio de
Abreu, 79 anos, sofre de problemas pulmonares, o que o obriga a passar quase o
dia inteiro deitado. Ele vive numa pequena casa próxima à movimentada avenida
Amazonas, que liga a Cidade Industrial de Contagem ao centro de Belo Horizonte.
Sua aposentadoria como ajudante de laboratório é a conta para pagar suas
despesas básicas, insuficiente, porém, para custear um tratamento médico
privado ou o acompanhamento de uma cuidadora. A sua realidade, contudo, poderia
ser completamente diferente, pois ele é um dos milhares de pessoas que têm uma
indenização milionária para receber do governo de Minas Gerais.
O processo, no caso, é
uma disputa de mais de 80 anos que envolve aproximadamente 2 mil herdeiros das
famílias desalojadas de suas fazendas pelo estado de Minas Gerais em 1941,
quando o então governador Benedito Valadares determinou o início da construção
da Cidade Industrial de Contagem, que nas décadas seguintes converteu-se num
dos principais polos fabris do Brasil.
Antes, situavam-se ali
as fazendas Ferrugem e Perobas, voltadas à criação de gado e cultivo de café, e
nelas residia o núcleo original dos Abreu e Hilário, cerca de 30 pessoas que
foram obrigadas a deixar suas terras sob a promessa de serem indenizadas pelo
estado. Nos anos seguintes, multinacionais como as siderúrgicas Mannesmann e a
Magnesita se instalaram no local, bem como empresas nacionais como as
alimentícias Vilma e Aymoré, elevando de maneira exponencial o valor dos
terrenos.
“Na família, somos
praticamente todos pobres”, conta Eustáquio, último remanescente de uma casa de
sete filhos, e cujo pai, que trabalhava como ferroviário, morreu quando ele e
os irmãos eram ainda jovens. Criados pela mãe, os Abreu ganharam a vida descarregando
produtos agrícolas no Mercado Central de Belo Horizonte, o que os impediu de
estudar. Desde os tempos de criança, no entanto, seus pais, tios e avós já eram
parte na disputa judicial, transitada em julgado no Supremo Tribunal Federal
(STF) em 1964, e que aguarda apenas a liquidação da sentença.
A indenização a todos
os expulsos de suas terras chegou a ser calculada, por um perito contábil
nomeado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), em R$ 83 bilhões. O
valor é quase dois terços de toda a despesa anual projetada pelo orçamento de
Minas Gerais para o ano de 2024. Segundo a Agência Pública apurou, não é
possível precisar o quanto cada herdeiro tem a receber, o que é motivo de
discussão no TJMG. É certo, porém, que o valor está na casa dos milhões.
<><> Por
que isso importa?
• O processo de indenização das famílias
que viviam nos terrenos desalojados para a construção da Cidade Industrial é um
dos mais antigos do Brasil e envolve cerca de 2 mil pessoas.
• Uma perícia contábil determinada pela
Justiça calculou as indenizações em R$ 83 bilhões. Em comparação, o orçamento
de despesas de um ano de todo o governo de Minas Gerais é de R$ 123 bilhões.
<><>
Expulsos pela polícia, família ficou sem terra
Na quinta-feira, 3 de
outubro, outros 50 integrantes das famílias Abreu e Hilário encontraram-se numa
das salas de reuniões da Ação Social Arquidiocesana, que fica no bairro da
Lagoinha, próximo ao centro de Belo Horizonte. Alguns vinham de regiões periféricas
e de favelas da capital mineira, outros chegavam das zonas rurais que margeiam
a metrópole. Havia, entre eles, faxineiras, agricultores, catadores de
materiais recicláveis, carroceiros, servidores públicos e uma maioria de
aposentados.
“Todos aqui somos
primos, mesmo quem não se conhece”, atalhou a publicitária Maria de Fátima
Pereira, de 71 anos.
Quem se lembra de
detalhes da história é Neuci Maria dos Santos, 81 anos. Sua avó, Maria Catarina
de Abreu, foi uma das expulsas das terras destinadas à edificação da Cidade
Industrial. “Eu era criança, e ela nos contava, chorando, que a polícia tinha
chegado com cachorros e armas, passado o trator em cima da casa dela, em cima
de suas plantas”, conta.
De fazendeiros, os
Abreu foram reduzidos a sem-terra, indo viver em ocupações urbanas às margens
do ribeirão Arrudas. Alguns, diz Maria, foram novamente expulsos de casa
quando, nos anos 1960, parte do ribeirão foi canalizada. Uma das herdeiras mais
idosas, Maria trabalhou por quase 20 anos como vendedora na multinacional
austríaca Magnesita, também instalada nas terras de seus antepassados. “Todo
dia eu lembrava das atrocidades que aconteceram para que as empresas chegassem
até ali”, diz Maria.
Quem morreu sem ver a
cor do dinheiro foi Leontino Luiz Hilário, nascido em 1925 e falecido em 2016.
Em um depoimento gravado em 2013, disponível no YouTube, ele rememorou a
expulsão de sua família da fazenda Peroba. “Era uma família grande, e a gente
levava uma vida tranquila”, contou. Quando Leontino completou 16 anos, a
avenida Amazonas já havia sido asfaltada, e os olhos do governo voltaram-se
para as terras de seu pai. “Começaram a falar em desapropriação, e que o
governo ia nos pagar”, disse.
Bernardo Luiz Hilário,
pai de Leontino, resolveu que só deixaria a fazenda após receber o que tinha
direito. Mais de dez anos depois, em 1953, o que a família recebeu foi um
ultimato: embora a indenização não tivesse sido paga, eles tinham 15 dias para
sair dali. Findo o prazo, a polícia cercou a propriedade. “Entraram como
bandidos, meteram trator nas casas. Foi um terreno tomado na marra.”
Ao fim do depoimento,
Leontino disse que não alimentava esperanças de ver a justiça sendo feita.
“Minha mãe e meu pai morreram, e das 11 pessoas lá de casa agora só tem eu.
Todo mundo esperava o dinheiro, e morreram sem ver um tostão. Os juízes são
comparsas do governo, e, se os governos anteriores não nos pagaram, esse também
não vai pagar”, encerrou.
• “Um dinheiro lascado”
Desde muito jovem,
Cristiane Flausino de Abreu ouvia do pai, José Eleutério de Abreu, a velha
história familiar: eles, seus avós, tios e primos tinham uma herança fabulosa a
receber. A garota ficava empolgada com o caso que o pai, operário na
Mannesmann, contava. O imenso terreno onde fica a empresa alemã era deles,
dizia José, e não tardava o dia em que o governo lhes pagaria a vultuosa soma.
“Achávamos que íamos receber logo, e que nossa vida ia mudar. Passaram-se anos
e anos e nada aconteceu”, conta Cristiane, hoje com 52 anos, e que trabalha
como corretora de imóveis. Seu pai morreu em 2020, vítima de um câncer no
pulmão.
Nascido em 1950,
Danilo José de Abreu foi, ele próprio, expulso da fazenda Ferrugem quando ainda
era bebê. Seu pai e os irmãos mais velhos de Danilo foram os últimos dos Abreu
a deixar as terras, já alguns anos após a desapropriação. Quando os tratores chegaram,
não houve mais jeito, mas seu pai tentou resistir: “Nós não temos lugar pra ir,
pode meter o trator aqui e matar todo mundo”, conta Danilo. Por fim, assim como
a avó de Maria e centenas de mineiros que chegavam em condições precárias à
capital, Danilo e sua família mudaram-se para as margens do Arrudas.
Quando Danilo
completou 15 anos, seu pai e sua mãe já haviam morrido à espera da indenização.
A partir daí, exerceu diferentes profissões: pastoreou vacas, cortou lenha, foi
soldador, chapa de caminhão e faxineiro. Só depois de adulto soube, por
intermédio dos irmãos mais velhos, que a família tinha “um dinheiro lascado
para receber”. Desde os anos 1960 um advogado contratado por seu pai conduzia a
causa de tribunal em tribunal. Também esse advogado faleceu no decorrer do
processo, e nos anos 1980 um outro bacharel, Evandro Brandão, assumiu a causa,
com ela permanecendo até hoje.
A imprensa mineira
procurou Danilo, e ele animou-se com a perspectiva de ganhar a herança. O ano
era 1996. “Achei que eu ia receber o dinheiro no outro dia. Que nada”, diz.
Sem compreender a
terminologia técnica do direito, Danilo desconfia que, “no que depender do meu
advogado e dos juízes”, nunca receberá a indenização. “Tenho esperança de
resolver essa questão, mas isso só vai acontecer com o engajamento dos
familiares”, diz ele, que há mais de 30 anos participa “de qualquer protesto
que aconteça sobre o tema”. Se um dia os milhões caírem em sua conta, pretende
ajudar os quatro filhos e sete netos. “E vou também comprar um cavalo bom pra
andar por aí, e pronto”, projeta.
• A família Abreu e Hilário contra o
estado de Minas Gerais
Foi em 1943 que os
Abreu e Hilário resolveram processar o estado. Vinte e um anos depois, em 1964,
a ação transitou em julgado no STF, que deu razão às famílias. Desde então,
como o governo de Minas já não pode questionar o mérito da contenda – as indenizações
que de fato deve às famílias –, a Advocacia-Geral do Estado (AGE) empenha-se em
discutir elementos técnicos do processo, como o tamanho dos terrenos
desapropriados, o valor do metro quadrado e, à medida que morriam os donos
originais das terras, os documentos que comprovam os vínculos deles com os
herdeiros.
A estratégia surtiu
efeito. Oitenta e três anos depois das desapropriações, período no qual 26
governadores se sucederam na chefia do Executivo, os herdeiros ainda não
receberam as indenizações. A AGE chegou a pedir a prescrição do processo, mas a
movimentação dos familiares, muitos dos quais são netos, bisnetos e até
tataranetos dos desapropriados, manteve a causa viva. Eles realizaram diversos
protestos em frente ao Tribunal de Justiça. Em 2010, a Assembleia Legislativa
de Minas Gerais (ALMG) sediou uma audiência pública para discutir o assunto.
“Não estamos pedindo
favor para ninguém. Cobramos o que nos é de direito”, disse, na reunião do dia
3 de outubro, a auxiliar administrativa Adriana Maria dos Reis, 56 anos. Já
habituada à terminologia jurídica do caso, ela explicou aos seus parentes aquilo
que, segundo os advogados da família, é o que falta para que o estado honre a
dívida: “Queremos a homologação dos cálculos pela Justiça e das áreas
correspondentes a cada herdeiro. Assim saberemos quanto cada um tem a receber”.
Em 2019, essa etapa
parecia próxima. O juiz então responsável pelo caso, Rogério Santos Araújo, da
5a vara de Fazenda de Minas Gerais, proferiu uma sentença que apontava que o
estado, ao protelar o cumprimento de uma “decisão transitada em julgado”, estava
“’rasgando’ a Constituição Federal, que determina o pagamento de indenização
justa em decorrência de desapropriação”. O juiz ressaltou que os valores
deveriam ser acrescidos de “incidência cumulativa de juros compensatórios e
juros moratórios”, e multou o estado por litigância de má-fé. Deu prazo, ainda,
para que os processos de habilitação dos herdeiros fossem concluídos, e
requereu a elaboração de uma perícia contábil que apontasse o valor atualizado
dos terrenos, cuja extensão total é de 597 mil metros quadrados – uma área mais
de três vezes maior que o Parque Municipal de Belo Horizonte, localizado no
centro da capital. Há controvérsias, porém, sobre qual parcela dessa área
sofreu a desapropriação.
Em 2024, a perícia foi
publicada, fixando a indenização em R$ 83 bilhões – o que corresponde a mais da
metade da dívida de R$ 153 bilhões que Minas Gerais tem com a União atualmente.
No decorrer do mesmo ano, o processo saiu das mãos do juiz Rogério Araújo por
ordem do Superior Tribunal de Justiça (STJ), sendo transferido para o Núcleo de
Justiça 4.0, órgão de cooperação jurídica criado pelo TJMG para a “efetivação
dos princípios da eficiência e da celeridade processual”.
Depois de ter assumido
a condução do processo, o Núcleo 4.0 revogou a perícia contábil, por entender
que a delimitação das áreas desapropriadas não estava clara, e determinou a
nomeação de um novo perito; demandou, ainda, novos documentos para a homologação
dos direitos sucessórios dos herdeiros, medida criticada por Guilherme Gobira,
um dos advogados das famílias que desde 2015 atua no caso. “Todos esses
documentos já foram solicitados antes e devidamente apresentados ao Judiciário.
É mais uma decisão absurda”, reclama.
• “Uma das mais graves violações de
direitos humanos da história de Minas”
Em 2019, Victor
Bitencourt, então com 23 anos e recém-formado em direito, foi procurado pela
tecelã Modestina de Souza, 71 anos, herdeira de João Luiz Cirilo, um dos
expropriados das fazendas. A irmã de Modestina havia falecido, e era preciso
inscrever seus filhos na cadeia sucessória dos herdeiros. Quando ela explicou
do que se tratava a contenda, a primeira reação do jovem advogado foi a
incredulidade. “Só quando ela trouxe os documentos, com cada uma das decisões
anexadas, foi que eu me dei conta de que se trata de uma das mais graves
violações de direitos humanos da história de Minas Gerais”, lembra Victor.
Havia outras
complicações: inúmeros supostos herdeiros buscavam inscrever-se como parte nos
processos sem apresentar as devidas provas genealógicas, advogados e contadores
dos quatro cantos do país contatavam insistentemente os descendentes, e
empresas tentavam comprar os direitos das dívidas daqueles já com as certidões
homologadas – visando a sua eventual conversão em precatórios, isto é, papéis
da dívida do estado, que podem ser usados para abater dívidas das próprias
empresas com o governo. Em diferentes decisões da 5a Vara de Fazenda Pública,
que vão de 2009 até 2022, empresas que alegavam possuir direitos das dívidas
foram afastadas do processo por haver falsificado assinaturas em documentos.
Ante tamanha
complexidade, Bitencourt procurou um advogado mais experiente, o dr. Emílcio
Vilaça, que fora seu professor na PUC-Minas. Comovido com a situação
socioeconômica dos herdeiros, “a maioria deles idosos, vivendo à míngua”,
Emílcio aceitou o convite. Os dois reuniram-se com outros advogados que
trabalhavam no processo havia mais tempo, como Guilherme Gobira e Daniel
Santos, formando, assim, uma frente unificada de defesa. O objetivo dessa
frente é delimitar judicialmente as áreas desapropriadas, indicando seus
legítimos herdeiros e o valor que cada um tem a receber, que gira na casa dos
milhões de reais.
“É o que as diferentes
defesas vêm tentando fazer de 1954 pra cá: pleitear a habilitação dos herdeiros
e a liquidação da sentença transitada em julgado”, explica Gobira. Santos, seu
colega, sublinha o constrangimento por ter de explicar aos clientes o porquê de
as indenizações ainda não terem sido pagas. “Não sabemos mais o que dizer. Como
advogado, me sinto com os pés e as mãos amarradas”, diz.
Só depois dessa etapa
a dívida será convertida em precatórios, e os indenizados poderiam negociá-los
com o estado ou com empresas interessadas. O grupo de defensores chegou também
a tentar acordos com a AGE, que no entanto não prosperaram.
“O direito à
indenização é líquido e certo, não há o que se questionar. Mas os procuradores
do estado têm utilizado de todas as artimanhas para postergar o pagamento. Esse
é um caso mais político do que jurídico”, conclui Santos.
Procurado pela
Pública, o Núcleo de Justiça 4.0 afirmou que, “diante da complexidade do
processo, não há como definir um prazo” para a sua conclusão. Já a AGE,
questionada sobre a decisão que lhe imputa litigância de má-fé, informou “que
só irá se manifestar nos autos do processo”.
Fonte: Por Leandro
Aguiar, da Agência Pública
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