Árvores não são vilãs do apagão, é
Prefeitura de São Paulo que faz 'poda mutiladora', diz botânico
Cinco dias depois da
queda inicial de energia que deixou 2,6 milhões de imóveis sem luz na região
metropolitana de São Paulo, cerca de 100 mil imóveis continuavam sem
eletricidade na manhã de quarta (16/10), segundo balanço divulgado pela
concessionária Enel, responsável pela distribuição na região. Às 17h, ainda
faltavam 74 mil imóveis.
O ministro de Minas e
Energia, Alexandre Silveira, afirmou na segunda (14/10), que "50% do
apagão foi causado pela queda de árvores".
A Enel também costuma
culpar as árvores. A empresa já havia sido multada neste ano pela Aneel
(Agência Nacional de Energia Elétrica) em R$ 165,8 milhões em fevereiro de 2024
por causa de outro apagão, em novembro de 2023.
O valor, no entanto,
não foi pago, porque a empresa contesta a multa na Justiça. No processo, a Enel
afirma que não podia prever os danos às redes no início do ano, causados por
"ventos e chuvas muito acima do previsto" que levaram a danos à rede
"especialmente causados pela queda de árvores”.
Dados da Prefeitura de
São Paulo mostram que pedidos de poda ou remoção de árvores foram a 5ª maior
causa de reclamação feita à prefeitura pelo 156 no primeiro semestre de 2024 —
e que essas foram as queixas com um dos menores índices de resolução.
Cerca de 37% das
reclamações sobre árvores do 1º semestre ainda estão marcadas como não
resolvidas no sistema.
A obrigação do manejo
das árvores é da prefeitura, mas a Enel tem a obrigação contratual de fazer a
manutenção das árvores que afetem diretamente o sistema de energia, ou seja,
das árvores estão muito próximas dos fios.
Quando uma árvore cai,
a prefeitura não pode fazer a remoção se a Enel não participar fazendo o
desligamento dos fios no local.
A Prefeitura afirma
que cerca de 6 mil reclamações não puderam ser atendidas porque precisam de
intervenção da Enel e a empresa não fez os atendimentos. A empresa executou
apenas 1% das podas de árvore em contato com a fiação no primeio semestre de
2014.
A Enel não respondeu
aos questionamentos feitos pela BBC News Brasil sobre o assunto.
O tema também virou
central na disputa eleitoral para a Prefeitura da capital paulista.
O atual prefeito e
candidato à reeleição, Ricardo Nunes (MDB), atribuiu à Enel a responsabilidade
pelo apagão.
"São Paulo não
merece que a Enel continue prestando seus serviços aqui", afirmou.
Já o candidato que
enfrentará o prefeito no segundo turno, Guilherme Boulos (PSOL), passou a
dedicar parte de sua propaganda eleitoral a tentar colar em Nunes a imagem de
"incompetência" pela falta de eletricidade.
"Esse apagão tem
doi grandes responsáveis: a Enel, que é uma empresa que presta um serviço
horroroso e que eu, como prefeito de São Paulo, a partir de 1º de janeiro do
ano que vem, vou trabalhar para tirá-la daqui. E o Ricardo Nunes, porque não
fez o básico, o elementar, a lição de casa: poda de árvore na cidade de São
Paulo, manejo arbóreo. E olha que tivemos um apagão há menos de um ano, e nada
foi feito de lá para cá", disse o candidato.
A responsabilização
das árvores por apagões é recorrente.
Em novembro do ano
passado, o governador do Estado, Tarcísio de Freitas, também havia culpado as
árvores pela falta de luz em uma situação parecida. "O grande vilão desse
episódio foi a questão arbórea", disse ele à época.
No entanto, não há uma
correlação entre o número de queda de árvores e a quantidade de pessoas que
ficam sem luz.
Ao todo 386 árvores
caíram na última sexta-feira, quando se iniciou o apagão, segundo a prefeitura.
Em 3 de novembro de 2023, menos imóveis ficaram sem energia (cerca de 2,1
milhões) sendo que o número de queda da árvores foi 4 vezes maior (foram 1,5
mil árvores caídas).
Além disso, no
blecaute de novembro de 2023, a Enel levou 24h para restabelecer a energia de
60% dos imóveis afetados. Já em 2024, a empresa levou quase o dobro, 42h, para
religar a luz de 60% dos clientes, segundo dados da Arsesp (Agência Reguladora
de Serviços Públicos do Estado de São Paulo).
O botânico Ricardo
Cardim afirma que as árvores não são as vilãs da falta de energia e que
diminuir a arborização da cidade pode agravar ainda mais o problema.
Se receberem um mínimo
de cuidado e tiverem a poda feita de maneira adequada, diz ele, as árvores não
terão o risco de cair e afetar o sistema elétrico.
"O problema é a
falta de manutenção, de cuidado. As árvores caem de doentes, de sofridas,
independentemente de evento climático", afirma Cardim, que é autor do
livro Remanescentes da Mata Atlântica: As Grandes Árvores da Floresta Original
e Seus Vestígios.
Por outro lado, diz
ele, podá-las sem os cuidados necessários e não fazer a substituição das que
precisam ser removidas por outras árvores pode piorar muito problemas
ambientais como ilhas de calor e tempestadas intensas.
Estudo do pesquisador
Giuliano Locosseli, pós doutor em epidemiologia ambiental, mostra que as
árvores em São Paulo são tão vulneráveis à chuva e ao vento por causa da falta
de cuidados e de sua saúde precária.
A pesquisa mostra que,
embora a queda de árvores seja maior durante a estação chuvosa, também há muita
queda de árvores durante a estação seca por conta a falta de manutenção.
"Árvores mal cuidadas caem nas ruas diariamente sem nenhuma causa climática
aparente", diz o estudo.
Ou seja, o problema
não é causado "eventos climáticos imprevistos", diz Cardim, mas pela
falta de manutenção.
E a queda de árvores é
totalmente evitável, segundo pesquisadores.
Singapura, por
exemplo, tem cerca de 2 milhões de árvores urbanas (3 vezes mais do que São
Paulo) e não tem problemas com a queda. As árvores são substuídas antes de
cair, as mais velhas recebem atenção especial e todas têm sua saúde monitorada
por equipes com ajuda de câmeras e um sistema de IA.
Em São Paulo, no
entanto, não existe o mesmo tipo de monitoramento nem a frequência adequada na
manutenção, afirma Cardim.
Questionada pela BBC
News Brasil, a Prefeitura de São Paulo afirmou que o tempo de espera médio para
atendimento dos pedidos de poda ou remoções de árvores teve uma diminuição de
80% entre 2017 e 2024 e que podou 132 mil árvores até 10 de outubro deste ano.
Já o governo do Estado
não voltou a culpar as árvores neste ano. A administração estadual afirmou que
o governador e os prefeitos de cidades afetadas entregaram nesta terça (15/10)
uma carta ao ministro do TCU (Tribunal de Contas da União), Augusto Nardes,
solicitando que o órgão tome "as medidas cabíveis para que órgãos federais
competentes declarem, com urgência, a intervenção" na Enel ou o
cancelamento do contrato de concessão devido às falhas.
O governo federal,
através de diversas instâncias, prometeu cobrar a Enel e a prefeitura de São
Paulo pelos problemas. Mas o Ministério das Minas e Energia não respondeu ao
pedido de esclarecimento feito pela BBC News Brasil.
A Enel também não
respondeu aos questionamentos feitos pela reportagem.
• Menos árvores, mais problemas
Tratar as árvores como
"vilãs" e simplesmente retirá-las em vez de fazer uma melhor
manutenção pode agravar os problemas enfrentados pela cidade - inclusive a
intensidade das chuvas e temporais, afirma Cardim.
As árvores contribuem
para uma melhora no clima da cidade, explica ele, e com uma série de benefícios
conhecidos há muito tempo pela ciência.
Elas promovem um
aumento da vida útil do asfalto por causa do sombreamento, filtram os poluentes
no ar, absorvem o CO², interceptam a água da chuva e a radiação do sol,
diminuem o risco de enchentes e diminuem as chamadas ilhas de calor.
Ilhas de calor são um
fenômeno que acontece em ambientes muito urbanizados onde a falta de vegetação
e a alta concentração de edifícios e de concreto faz com que certas áreas
fiquem com temperaturas muito mais altas do que a região ao redor.
"Infelizmente,
por falta de educação ambiental, o brasileiro ainda não compreendeu que as
árvores não são apenas algo estético", afirma Cardim. "Elas têm
muitas funções no ambiente urbano."
As ilhas de calor que
aumentam com diminuição da arborização agravam a intensidade de chuvas, ventos
e temporais, afirma Cardim.
"Sem as árvores,
as ilhas de calor potencializam as tempestades drásticas, a água cai toda de
uma vez só", explica o botânico.
Ou seja, com a
diminuição da arborização sem substituição da vegetação, os eventos climáticos
intensos - que têm se tornado mais comuns em geral por causa do aquecimento
global - podem ficar ainda piores, argumenta Cardim.
Hoje, as áreas
urbanizadas do município que mais sofrem com ilhas de calor e outros problemas
gerados pela falta de arborização são as regiões mais pobres da cidade, afirma
o botânico.
Enquanto um bairro
nobre como Alto de Pinheiros tem uma cobertura vegetal de 41%, bairros como
pobres como Arthur Alvim e Brás têm uma cobertura vegetal de 12% e 5%, segundo
dados do Mapa da Desigualdade.
Em 2017, Alto de
Pinheiros tinha 13 mil árvores plantadas nas vias, enquanto São Miguel tinha
cerca de 4 mil, segundo os últimos dados da Secretaria do Meio Ambiente
disponíveis.
• 'Poda mutiladora'
A poda mal feita é um
dos principais fatores que adoecem as árvores em São Paulo, afirma Ricardo
Cardim. Podas drásticas desequilibram a copa da árvore e a deixam vulneráveis a
doenças e insetos predadores.
Cardim explica que a
poda das árvores é muito necessária e precisa ser feita com maior periodicidade
e maior cuidado técnico, da forma e na época correta, respeitando a idade do
galho.
"A prefeitura
poda pouco, com pouca periodicidade, aí tem que podar os galhos já muito
crescidos, grandes", diz Cardim. “Da forma como é feita pela prefeitura, a
poda é mutiladora. Ela deixa feridas que não cicatrizam fácil, abre espaço para
a entrada de cupins e doenças. A árvore adoece e depois de uns anos pode
cair."
A Prefeitura afirma em
seu site que os serviços só são realizados com avaliação técnica prévia.
"Recebida a
solicitação, um engenheiro agrônomo da Subprefeitura vai até o local onde se
encontra a árvore para realizar uma avaliação técnica e a emissão de laudo para
poda ou remoção, dependendo do estado da árvore."
Outro fator é a
pavimentação e compactação do solo ao redor das raízes das árvores, o que afeta
sua capacidade de absorver nutrientes e a estabilidade da planta, porque as
raízes não têm espaço para crescer.
As árvores também
passam sede, porque a absorvição de água acontece através da raiz. Quando o
canteiro é concretado, não há infiltração de água e o solo fica seco mesmo que
haja chuva.
Muitas árvores também
tem suas raízes cortadas e danificadas em obras na calçadas ou crescem tortas
por falta de escoras.
"A criação de
equipes com capacidade técnica para fazer a poda e o manejo correto não é uma
coisa mirabolante", defende Cardim. “É, inclusive, milhares de vezes mais
barato e muito mais plausível do que o enterramento dos fios, que custaria bilhões,
que é inviável.”
• Remoção feita da forma correta
Árvores que já têm
risco de queda, afirma Cardim, precisam sim serem removidas, mas isso também
precisa ser feito com mais cuidado e pensando no futuro.
Segundo ele, a
prefeitura tem feito a substituição das árvores com risco por árvores muito
jovens ou por árvores anãs, que nunca vão crescer até o tamanho das anteriores
e por isso não vão trazer os mesmos benefícios.
“Isso quando não
simplesmente cimentam a terra depois de tirar a árvores, como se nunca tivesse
tido nada ali”, afirma ele.
“A prefeitura de São
Paulo sequer sabe quantas árvores existem na cidade e qual o seu estado de
saúde”, diz.
O último levantamento
feito pela Secretaria do Meio Ambiente sobre árvores é de 2017 e levava em
consideração somente as árvores no sistema viário, ou seja, as árvores próximas
às ruas e avenidas.
Eram 650 mil - não há
informações sobre quantas delas estão doentes, quantas caíram ou foram
substituídas desde então.
Questionada pela BBC
News Brasil, a prefeitura de São Paulo afirmou que “o reforço da Prefeitura de
São Paulo no trabalho de poda de árvore em toda a cidade minimizou os impactos
da tempestade ocorrida na última sexta-feira”.
Segundo a prefeitura,
as ocorrências de queda de árvores na sexta foram 386, em comparação com 1.500
em um episódio em novembro do ano passado, quando as chuvas e o vento foram
menos intensos.
A prefeitura afirmou
que o tempo de espera médio para atendimento dos pedidos de poda ou remoção de
árvores feito por cidadãos caiu de 507 dias em 2017 para 54 em 2024, uma
diminuição de 80%.
A administração
municipal disse ainda que "realizou a poda de 132.809 árvores em toda a
cidade de janeiro a 10 de outubro deste ano, uma média de 465 árvores por
dia".
A Prefeitura, no
entanto, não respondeu sobre o que tem feito para cuidar da saúde das árvores,
sobre a crítica de que podas ruins têm deixado as árvores vulneráveis a fungos
e doenças, sobre a substituição de plantas doentes ou sobre planos para ampliar
a arborização na cidade.
Também não explicou se
faz podas preventivas com base em uma avaliação própria ou se somente faz as
podas atendendo a chamados dos moradores. E não deu uma explicação para o fato
de não haver dados oficiais atualizados em relação à quantidade e saúde das
árvores na cidade.
A Enel não respondeu
aos questionamentos feitos pela BBC News Brasil até a publicação desta
reportagem.
Fonte: BBC News Brasil
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