A mídia e os escândalos políticos
Em 2002, é traduzido
no Brasil O escândalo político: poder e visibilidade na era da mídia, de John
B. Thompson (Vozes). Não se trata de um ataque gratuito aos que comercializam
os escândalos, mas do estudo sobre um fenômeno influente nas disputas que emergem
no século XXI. A tecnologia comunicacional para informar, desinformar ou omitir
vem de longe. Roberto Marinho elegeu o “Caçador de marajás”, depois o apeou da
Presidência. As redes cibernéticas não inventam a roda.
O professor de
Cambridge foca três escândalos: “abuso de poder” (Richard Nixon/Watergate);
“político-financeiro” (Parlamento Europeu/ Catar); politicossexual (Bill
Clinton/ Mônica Lewinski). No Brasil, apelos aos quartéis ignoram violações dos
direitos humanos jogadas debaixo do tapete (Vladimir Herzog/ Tortura).
Ocorrências sofrem de espancamentos e choques elétricos no pau-de-arara para
proteger as Forças Armadas. Os desaparecidos aguardam ainda agora, pela
justiça.
O ruim fica pior com
as fake news para enxovalhar a imagem dos adversários, o que envolve um conluio
da mídia com o judiciário. A situação evoca o compromisso para, com novos
mecanismos, corrigir os desvios de agentes públicos. A encenação serve de palco
aos palhaços sociopatas sem noção republicana tipo o italiano Silvio
Berlusconi, o brasileiro Jair Bolsonaro e o argentino Javier Milei. O circo é
cosmopolita. A reprodução dos escarcéus sobrevive à demagogia institucional,
que propaga a antipolítica, o livre mercado e criminaliza a esquerda — bode
expiatório do desconforto.
A máquina de triturar
do lawfare aciona episódios fictícios. As denúncias forjadas desmontam as
empresas nacionais de engenharia, a indústria naval, o pré-sal, a Petrobras. A
solapa dos vira-latas obedece a ditames estrangeiros. O livro Lava Jato: O juiz
Sergio Moro e os bastidores da operação que abalou o Brasil, de Vladimir Netto,
elogia o homem sem qualidades ungido herói pela Rede Globo. Difícil saber onde
termina a ausência de reflexão crítica da imprensa corporativa, e onde começa o
cinismo de quem engana sem a discrição dos hipócritas, permitindo que a
impostura seja flagrada pelos observadores. No teatro de falsidades, a verdade
desce o ralo; ratazanas vêm à tona.
• Democracia sob ameaça
A mídia não é a
democracia, senão o espetáculo no ato de produzir sentido. Para tal: (a)
substitui o uso da razão “pela expressão em público de sentimentos”; (b)
substitui o direito de cada um e todos de expressar um parecer pelo “formador
de opinião”. Em Simulacro e poder: uma análise da mídia, Marilena Chaui insere
a pantomima na “destruição da esfera da opinião pública”.
Nas enchentes do Rio
Grande do Sul, os repórteres perguntam aos moradores o que sentem diante das
inundações, ao invés de indagar o que pensam sobre a vergonhosa inoperância da
Prefeitura. O desastre reduz-se a uma fatalidade doméstica, sem encadear as incúrias
governamentais. A manobra blinda o prefeito do “kit-covid” de cloroquina e
ivermectina distribuído durante a pandemia, na triste capital gaúcha.
Escândalos abalam o
poder e, às vezes, geram flagelos pessoais; vide o destino do “pai dos pobres”
Getúlio Vargas e do reitor da UFSC Luiz Carlos Cancellier — um inocente acusado
por “convicções” sem PowerPoint. Não que os erros desconstruam a confiabilidade
sistêmica, em si. O Congresso está repleto de aventureiros que surfam em
campanhas caluniosas e difamatórias. Vale tudo no pé de goiabeira de emendas
parlamentares em causa própria, ilustrativas da grave crise de dedicação à res
publica por amor à filosofia da avareza, que ergue o deus-dinheiro no altar do
hiperindividualismo.
A missão do jornalismo
de fiscalizar os governos, revelar as falhas e erradicar os males — em nome do
interesse público — é subvertida. Há desrespeito ao ethos da profissão
inspirada nos princípios iluministas, com a nobre incumbência de diagnosticar
as enfermidades sociais. No oligopólio das comunicações, a dita independência
dos jornalistas é canibalizada pela alta hierarquia. Mentiras, a soldo, são
ecoadas por paladinos da moral e costumes para esconder a responsabilidade das
“elites”.
Já as mudanças nas
relações trabalhistas levam à busca por sustentação nas urnas, além das antigas
classes sociais. Com divisões ideológicas atenuadas, progressistas compõem com
outros segmentos para vencer as eleições, e potencializam as manchetes negativas
fruto de alianças não programáticas com parcerias dúbias. Haja equilíbrio na
balança das práticas, desejos, expectativas e resultados.
• A tríade dos escândalos
John B. Thompson
aborda eventos do hemisfério Norte, ao esmiuçar a tríade dos escândalos. Entre
nós, o desafio está em desbravar acontecimentos acobertados pelo silêncio da
mídia. Seguem cases que travam “lutas pelo poder simbólico, em que a reputação
e a confiança estão em jogo”, na dura realidade. São metáforas de reatualização
da dialética colonialista para a dominação/subordinação.
(i) Escândalo
politicossexual (e racista). O Projeto de Lei (PL 1.904/2024) proíbe o aborto
após a 22ª. semana, inclusive por estupro, e estipula às transgressoras uma
pena de homicídio superior ao previsto na legislação para estupradores. A
mobilização de diversos grupos feministas nas principais metrópoles impede a
tramitação na Câmara Federal. A mídia enfatiza o nonsense da penalidade e
confina o assunto à dosimetria. Não investiga os partidos e os políticos com
mandato que cometem a violência sexista (e racialista). A lei atinge as meninas
pretas e pobres de 8 a 12 anos, as grandes vítimas nas estatísticas ao longo do
tempo. A bandeira do direito natural da mulher ao corpo não é hasteada. E o
medievalismo bolsonarista sai incólume do golpe contra os valores da
modernidade.
(ii) Escândalo
político-financeiro. O crime de lesa-pátria da Taxa Selic do Banco Central
retira do Erário R$ 816,2 bilhões, em 2023. Para comparar, o orçamento do
Ministério da Saúde é R$ 231 bilhões; da Educação, R$ 180 bilhões. Alvo de
acusações por investimentos em offshores em conflito com a função, o presidente
do Bacen obtém dividendos pessoais com os juros elevados. Estes incentivam a
desindustrialização e o modelo neocolonial-exportador, que incendeia biomas e
florestas. A política monetária em curso inibe o crescimento da nação com
geração de empregos e distribuição de renda. Os rentistas e os extrativistas
agradecem a gentileza, com os bolsos cheios. E o neoliberalismo bolsonarista
sai imune do golpe contra os valores do Estado de bem-estar social.
(iii) Escândalo de
abuso de poder. No desgoverno, a criação na Associação Brasileira de
Inteligência de uma “ABIN paralela” visa um órgão de vigilância típico dos
regimes de exceção. À revelia do processo legal, a invasão de privacidade
alcança trinta mil cidadãos; sequer são poupados os amigos da famiglia
miliciana. Ao contrário do famoso triplex que não era do Lula, a conspiração
direitista não recebe atenção no noticiário. Ninguém é preso. Passa-se pano na
articulação terrorista entre o fascismo sociopolítico, o laissez-faire
econômico e o conservadorismo cultural. E o totalitarismo bolsonarista sai
ileso do golpe contra os valores civilizatórios do Estado de direito
democrático.
• Não esquecer as flores
“O mistério das
coisas, onde está ele?/ Onde está ele que não aparece/ Pelo menos para mostrar
que é mistério?”, lê-se no poema de um heterônimo de Fernando Pessoa. Os
escândalos proibidos movem o moinho do populismo extremista, na exata medida em
que a ideologia empreendedorista individual apaga a dimensão do público, no
imaginário social. A utopia pode e deve ser antecipada com a desconstituição
das ilusões atomizadas em templos neopentecostais ou apostas digitais em BETs.
Só a participação e a cooperação formam os sujeitos transformadores da ordem
estabelecida.
Norberto Bobbio,
autoproclamado “liberal-socialista”, considera a mídia uma ameaça à democracia
por pasteurizar as consciências e manietar o juízo autônomo dos indivíduos. A
circunstância possui um agravante no abandono de áreas essenciais: água, luz,
saneamento, transporte. A privatização converte direitos em mercadorias
acessíveis apenas para quem paga. Sebastião Melo (MDB-RS) e Ricardo Nunes
(MDB-SP) sequestram os equipamentos públicos para prestação de serviços; nem
parques escapam da fúria privatista. Terceirizam as obrigações funcionais e
também o que não lhes pertence, como fazem os gestores sem competência para
administrar. Melhor devolvê-los aos seus donos, trocá-los pelo Orçamento
Participativo (OP). Sem medo de ser feliz. Com gana de vencer.
Fonte: Por Luiz
Marques em A Terra é Redonda
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