terça-feira, 22 de outubro de 2024

Como fatores de risco favorecem doenças cardiovasculares

Há pouco mais de uma década, os países-membros da Organização das Nações Unidas (ONU) assumiram o ambicioso desafio de reduzir, em 2025, 25% da incidência e da mortalidade precoce — antes dos 70 anos — de quatro doenças crônicas não transmissíveis (DCNT). Quando a meta foi estabelecida, sozinho, o grupo de enfermidades cardiovasculares era responsável por 60% dos óbitos por DCNTs.

Faltando cerca de dois meses para a chegada do ano em que o objetivo deveria ser alcançado, o documento de acompanhamento mais recente da ONU, publicado em 2022, destaca: houve progressos, mas "nenhum país está no caminho" de atingir a meta.

Consideradas uma epidemia, as doenças cardiovasculares (DCVs) são as mais incidentes no mundo e também as que mais matam globalmente. Em 30 anos, houve um aumento de 60% nos óbitos por essas causas, e as projeções para 2050 são alarmantes. De hoje a terça-feira, uma série do Correio mostra os desafios para reduzir a carga global das DCVS, em um momento de fatores de risco emergentes.

•        Prevenção

A boa notícia é que a tendência pode ser freada. Segundo estudos, até 80% dos casos de infarto e acidente vascular cerebral (AVC) — as duas principais causas de morte por DCVs — são evitáveis com mudanças no estilo de vida. "Prevenção é o conceito mais importante. Devemos criar condições para impedir a ocorrência das doenças, e não só as tratar", define o membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC) Protásio Lemos da Luz, cardiologista e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP).

Amanda Gonzales, cardiologista do Hospital Sírio-Libanês, destaca a necessidade de ações públicas urgentes para reduzir as doenças cardiovasculares. "Não sabemos se é possível mudar o cenário global, mas, individualmente, podemos melhorar, e muito, se começarmos agora", diz. Segundo a WHF, entre os principais fatores de risco modificáveis, estão colesterol, alto índice glicêmico, obesidade, tabagismo, sedentarismo e hipertensão.

Não há, porém, receita fácil para reduzir as doenças cardiovasculares. Além do envelhecimento da população e da epidemia de obesidade, novos fatores de risco, como sequelas da covid-19 e efeitos fisiológicos das mudanças climáticas, somam-se aos já conhecidos.

"Entre os jovens, por exemplo, há um novo fator de risco; o consumo excessivo de cafeína, encontrada em bebidas energéticas e suplementos", alerta o cardiologista Murilo Morhy, que foi professor e diretor do Hospital Universitário Bettina Ferro de Souza, da Universidade Federal do Pará. "Esse hábito tem levado a um aumento de arritmias, que podem evoluir para parada cardíaca. Se não lidarmos com o problema de forma preventiva, veremos um aumento na prevalência de doenças cardiovasculares em idades mais jovens", destaca.

•        Conhecimento

Para Renato David, cardiologista do Instituto do Coração de Taguatinga (ICTCor), uma das dificuldades na prevenção é a falta de conhecimento da população sobre os fatores de risco. "A grande maioria dos pacientes hipertensos, diabéticos e com colesterol alterado só vai ter o conhecimento de que são portadores de alguma comorbidade após alguns sintomas ou complicações. Ou seja, quando a situação já é tardia e há prejuízo da qualidade de vida e risco aumentado de morte."

Até mesmo entre universitários da área de saúde, a percepção não é das melhores. Uma pesquisa apresentada no VI Congresso Brasileiro de Educação em Fisioterapia com 320 estudantes da Universidade Federal do Paraná (UFPR) constatou que quase metade não sabia que hipertensão é fator de risco cardiovascular.

Já um estudo publicado nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia com pacientes de hipercolesterolemia grave — condição hereditária na qual o fígado não metaboliza o LDL, ou "colesterol ruim" — mostrou que somente 18% acreditava ter risco alto para doenças cardiovasculares. O neurologista Rodrigo Silveira, do Hospital Icaraí, em Niterói, destaca que há desigualdades no acesso à informação e que, mesmo quando existe o conhecimento, há pessoas que preferem ignorá-lo. "Apesar da conscientização dos maus hábitos, ainda temos uma grande parcela da população consumidora de tabaco, álcool e outras drogas, que também aumentam o risco dessas doenças ocorrerem."

•        Emocional

Além do enfrentamento aos fatores de risco bem estabelecidos, pesquisas mais recentes enfatizam o bem-estar emocional para reduzir a incidência e a mortalidade por doenças cardiovasculares. Práticas como meditação, ioga, caminhada na natureza e até fazer artesanato em grupo têm sido receitadas por médicos, com base em novos conhecimentos científicos.

Um estudo publicado na revista European Heart Journal, por exemplo, descobriu que a solidão pode impactar mais no risco de doenças cardiovasculares em pacientes com diabetes do que dieta ou sedentarismo. A pesquisa incluiu 18.509 adultos de 37 a 73 anos com o distúrbio metabólico, mas sem histórico de DCVs no início. Aqueles que relataram um índice alto de afastamento social tiveram uma chance até 26% de infarto e AVC no período de acompanhamento.

"Cada vez mais as pesquisas mostram o impacto da saúde mental, das nossas relações interpessoais na doença cardiovascular. Isso afeta a saúde de várias formas, como alterações hormonais, inflamação e ativação do sistema adrenérgico (composto por hormônios, neurônios e receptores)", explica a cardiologista Amanda Gonzalez, do Hospital Sírio-Libanês. "Por isso, temos de olhar para todos os pilares quando pensamos em saúde cardiovascular."

<><> Duas perguntas para Protásio Lemos da Luz, pesquisador sênior do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor/USP) e membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC)

•        Por que as doenças cardiovasculares ainda são a principal causa de morte, mesmo se sabendo como evitá-las?

Isso tem muito a ver com o chamado controle de fatores de risco, como hipertensão, diabetes, sedentarismo, dieta…  Acontece que a implementação desses programas é difícil porque implica mudanças de estilo de vida, e não é fácil as pessoas mudarem. A segunda coisa tem a ver com a chamada aderência ao tratamento. Em um ano, o número dos pacientes que seguem a orientação médica é muito pequeno, menos que 30%. Outro fator é que estamos tendo um problema de obesidade e diabetes que começa já na adolescência. Então, todas essas coisas são relacionadas a estilo de vida e, embora a gente tenha avançado muito no conhecimento da fisiopatologia da doença, a implementação daquilo que já foi descoberto tem sido difícil. Por fim, recentemente, com a pandemia, houve um aumento muito grande de alterações emocionais, como depressão e ansiedade. Criou-se um ambiente de preocupação e de incerteza, e isso está incidindo sobre as doenças cardiovasculares.

•        As sociedades médicas estão considerando mais os fatores emocionais como estratégia de proteção?

Sim. Uma das terapêuticas mais utilizadas ultimamente é a terapia cognitivo comportamental (TCC), de duração mais curta, que procura focar determinados problemas atuais da pessoa. Muitas outras abordagens estão sendo implementadas com sucesso, e uma das mais consideradas é a espiritualidade. Essa é uma questão milenar, abordada por Aristóteles e filósofos orientais, mas, hoje, há um foco mais científico, com muitas pesquisas sobre o tema. As sociedades médicas procuram abordar a espiritualidade desde a formação médica, como um elemento importante para melhorar a qualidade de vida.

 

Fonte: Correio Braziliense

 

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