Lúcia Garcia: Terceirização, desesperança e
o crescimento caviar
"Desta forma,
sete anos depois, os perdedores da aplicação do choque liberalizante sobre o
mercado de trabalho nacional são facilmente identificados – a força de trabalho
brasileira ocupada na faixa etária até 60 anos, submetida ao cardápio contratual
saído da legislação moldada pela terceirização generalizada e reforma da CLT;
os trabalhadores conta-própria; e, o pequeno empresariado do país, voltado ao
mercado consumidor interno", escreve Lúcia Garcia, economista e assessora
técnica do Instituto Trabalho e Transformação Social.
<><> Eis o
artigo.
A recuperação
econômica do Brasil e os resultados gerais da ocupação e massa de rendimentos,
sistematicamente positivos, delineiam o abandono dos dias mais tormentosos do
mercado de trabalho nacional, o que, certamente, justificariam o otimismo
popular e a felicidade geral dos trabalhadores. Indo além, em 2024, este seria
um substrato fértil para a retomada da esperança em projetos coletivos e
restabelecimento da confiança na institucionalidade que alicerça nossa
cambaleante democracia.
Porém, é evidente que
este nexo esperado entre geração da riqueza e melhoria de bem-estar dos
contingentes médios da classe trabalhadora, vem sendo corroído. Desta forma,
embora se reconheça os esforços públicos para retomar políticas redistributivas
importantes para os segmentos estruturalmente excluídos e aqueles jogados à
pobreza na última década, a força de trabalho do país ocupa um lugar diferente,
pois, perde direitos, reconhecimento e perspectiva – literalmente interpretando
o crescimento econômico recente como caviar, do qual “só ouve falar”.
Em grande parte, o
encadeamento destas questões é dado pelo conjunto de reformas estruturantes de
2017, que visaram a redução dos custos trabalhistas como requisito para
prosperidade econômica. Uma ideia que, para além da falácia da eficiência,
realmente sustenta o rebaixamento de despesas operacionais de empresas na
vulnerabilidade institucional dos trabalhadores e na utilidade desta lógica
reducionista para um modelo econômico agroexportador e tecnologicamente
subordinado.
Sabe-se, também, que
parcela dos pequenos e médios empresários apoiou as reformas, em busca de
soluções imediatas para seus problemas em uma economia estagnada, e, hoje,
amargam com os desdobramentos do avanço pachorrento da renda média e aumento da
concorrência de capitais internacionais no varejo e nos serviços sobre o
faturamento de seus negócios. Desta forma, sete anos depois, os perdedores da
aplicação do choque liberalizante sobre o mercado de trabalho nacional são
facilmente identificados – a força de trabalho brasileira ocupada na faixa
etária até 60 anos, submetida ao cardápio contratual saído da legislação
moldada pela terceirização generalizada e reforma da CLT; os trabalhadores
conta-própria; e, o pequeno empresariado do país, voltado ao mercado consumidor
interno.
Por outro lado, ainda
figura no plano dos desafios a expectativa de que a recuperação das capacidades
estatais, investimentos públicos, crescimento e novo padrão industrial possam
amenizar os efeitos de fissuras tão profundas na organização socioeconômica. Ao
promover enorme esforço neste sentido, o governo, sem dúvidas, melhora, mas não
transforma a vida da população. Afinal, mesmo que ganhos nominais e absolutos
do crescimento possam ser alcançados, a arquitetura montada pelas reformas
garante que, na distribuição relativa dos resultados econômicos, os
trabalhadores em média estarão no final da fila. Diante de um quadro tão
nítido, em que os especialistas quase perdem sua utilidade, a classe
trabalhadora tem se dividido entre o pragmatismo, a resignação desalentada e o
ressentimento.
Nesta marcha perigosa
para o tecido social, o debate sobre a Reforma Trabalhista se torna uma tarefa
necessária, mas o ponto que requer maior urgência para retomar a centralidade
do trabalho nesta conjuntura é, sem dúvida, a terceirização. Isto se deve a
amplitude e repercussão geradas pela estratégia de reduzir os custos,
transferir a gestão de pessoal e/ou partilhar riscos através da contratação de
trabalho triangulada – que insere um terceiro em relações de emprego. Muito
denunciada pela evidente precarização que produz, esta estratégia empresarial
precisa ser compreendida a partir do papel estratégico que desempenha na
liberalização do mercado de trabalho.
Tomada nesta
perspectiva, entende-se que a usinagem para que a terceirização assumisse os
moldes atuais esteve presente nas três ondas liberalizantes do trabalho no
Brasil – na ditadura militar, através da legislação que veio a normatizar o
trabalho temporário (Lei 6019/74); na introdução da flexibilização originada no
poder executivo de Fernando Henrique Cardoso, quando a terceirização passou a
ser contida pelo Superior tribunal do Trabalho (Súmula 331/93); e, na fase
atual, quando as manobras para aprovação de dois Projetos de Lei semelhantes
resultaram na aprovação da Lei 14.429, em 2017, enquanto se tentava conter a
Reforma da CLT (Lei 14.467) [1] DROPPA, Alisson; BIAVASCHI, Magda Barros;
TEIXEIRA, Marilane Oliveira. A terceirização no contexto da reforma
trabalhista: conceito amplo e possibilidades metodológicas. Caderno CRH, v. 34,
p. e021030, 2021.
Com isto, na longa
história de resistências à adaptação do trabalho brasileiro aos interesses
econômicos, a terceirização deixou de ser uma excepcionalidade e vem se
tornando predominante, embora sua visibilidade ainda seja ofuscada pela
multiplicidade de formas assumidas por esta estratégia empresarial.
No momento, o alcance
da terceirização parece estar diretamente associado a capacidade adaptativa ou
plástica adquirida pelas estratégias de arregimentar e intermediar a execução
do trabalho através de empresas terceiras. Esta capacidade, por sua vez, resulta
da combinação de liberações legislativas e potencialidades oferecidas pela
generalização do digitalismo. Desta forma, a variedade dos modos de contratação
e flexibilizações de condições de trabalho, previstas na Reforma da CLT [2]DIEESE, 2017. A Reforma Trabalhista e os
impactos para as relações de trabalho no Brasil. Nota Técnica nº 178. maio.
2017., se combinam com a natureza das atividades exercidas por terceirizados em
relação ao foco principal da produção, advindas da Lei 14.429, e com a vigilância
e relocalização espacial do trabalho, derivados da tecnologia digital.
Ao contrário de
propalada modernização das relações de trabalho, estes fatores tornaram a
terceirização atual mais abrangente e danosa para trabalhadores. Para além das
empresas especializadas na prestação de serviços de apoio, a terceirização
livre passou a incluir trabalhadores temporários alocados via agências e
assalariados recrutados por empreiteiras para o desenvolvimento de atividades
fim. Neste rol também foram incorporados autônomos envolvidos em atividades
essenciais; parcelamentos da produção, posteriormente deslocados para execução
de ex-funcionários/consultores; criação de Organizações Sociais de ocasião e
cooperativas fraudulentas [3]KREIN, José Dari. Tendências recentes nas relações
de emprego no Brasil: 1990-2005. 2007. Tese de Doutorado.
Finalmente, a
contratação atomizada de trabalhadores através de plataformas digitais, para
alguns serviços on demand e de gerenciamento de microtarefas, compõem a
constelação.
Muitos são os desafios
que emergem deste quadro que dista muito da divisão do trabalho nítida do
fordismo. Algumas destas dificuldades, entretanto, tendem a se destacar, como
às associadas ao rastreamento dos novos limites setoriais da produção e, por consequência,
seus encadeamentos; as diretamente ligadas a identidade do trabalhador e sua
organização sindical; e, a disposição para o debate das lacunas, omissões e
incongruências da legislação trabalhista ante a realidade fática trazida pela
terceirização.
No Rio Grande do Sul,
onde processos obscuros de terceirização, recentemente, desaguaram em situações
análogas à escravidão, o debate da terceirização está na ordem do dia, entre
especialistas, assessores e dirigentes do mundo do trabalho.
Atualmente, no âmbito
da Superintendência Regional do Ministério Trabalho e Emprego, vige um Pacto
que reúne entidades sindicais de trabalhadores e patronais visando soluções
para edificar boas práticas no ambiente da terceirização. A articulação vem acompanhada
de frentes parlamentares dedicadas ao assunto no legislativo estadual e do
município de Porto Alegre.
No âmbito dos
sindicatos, recentemente foi realizada uma Roda de Escuta, que procurou
sistematizar percepções de dirigentes de categorias de terceirizados e de
segmentos que vem sendo atingidos pela nova terceirização. Além disto, um
Seminário organizado pelo Instituto Trabalho e Transformação Social (ITTS) e
Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho/4ª Região reuniu, nesta
semana, especialistas e representantes sociais procurando avanços em vários
novos temas trazidos pela realidade de uma economia em que progride a
triangulação do emprego.
Deste movimento,
depreende-se que os segmentos organizados do trabalho estão despertos para o
tema e procuram o alinhamento necessário para elucidar os nexos entre
terceirização e a marcha aviltante empreendida sobre a vida, nos últimos anos.
Certamente, este é um primeiro passo de uma caminhada difícil, que se embrenha
em uma realidade que desvaloriza o papel social do trabalho e na qual
predominam os esforços de ocultação do caráter essencial das disputas
econômicas da atualidade. Além disto, nem todos os representantes e segmentos
envolvidos nestas iniciativas de discussão visualizam o sentido estratégico
desta reorganização do emprego, enquanto outros buscam meras soluções para seus
interesses corporativos.
Entretanto, este é a
função desenvolvida pelo debate de questões concretas, em que boa parte dos
bons resultados se traduz em iluminar caminhos. De tudo, fica a esperança que a
avaliação precisa e realista que a classe trabalhadora já faz, através de suas
representações mais genuínas, possa sensibilizar os agentes públicos mais bem
posicionados na escala de poder.
Embora não seja a
única, elucidar o trabalho terceirizado é tarefa urgente de nosso tempo. Para
interromper um liame potente da degradação do trabalho, mas, sobretudo, para
que os trabalhadores possam desfrutar da mesa do crescimento.
Fonte: IHU
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