terça-feira, 22 de outubro de 2024

Gestão Nunes empenhou menos de 25% do previsto para obras em áreas de risco geológico

Enquanto a temporada de chuvas começa em São Paulo, a maior parte do dinheiro que deveria ser usado para obras contra deslizamentos de terra está parada no caixa da prefeitura. Sob a gestão de Ricardo Nunes (MDB), a administração municipal empenhou, até 17 de outubro, apenas 23% do orçamento anual previsto para obras e serviços de prevenção em áreas de risco geológico, que inclui deslizamentos de terra.  O recurso é dividido entre obras de prevenção e emergência. Só 27% do montante destinado para ações preventivas foi empenhado. Com relação a obras emergenciais, nenhum valor foi empenhado até o momento, apesar de a cidade ter registrado quase 150 chamados de deslizamentos entre janeiro e agosto de 2024.

Os dados foram obtidos na Secretaria da Fazenda e mostram a falta de aplicação de recurso para enfrentar uma ameaça que atinge mais de 200 mil famílias, conforme revelou reportagem da Agência Pública.

Em 2024, a prefeitura orçou R$ 24 milhões para obras e serviços preventivos nas áreas de risco geológico, que depois foram atualizados para R$ 63,3 milhões. Apenas R$ 17,2 milhões haviam sido empenhados até outubro, no entanto. Já o orçamento para obras de caráter emergencial foi de R$ 28 milhões, posteriormente atualizado para R$ 10,4 milhões. Mas nada foi empenhado até o momento. “Esse tipo de obra, especialmente a de prevenção, é extremamente importante. E considerando que o período de maior estiagem, de maio a novembro, é o mais propício para a realização das obras preventivas, o recurso já deveria estar não só empenhado, como ter sido utilizado”, afirma Henrique Frota, diretor-executivo do Instituto Pólis. Frota avalia que, independentemente do resultado do segundo turno das eleições, disputado entre Nunes e Guilherme Boulos (PSOL), o futuro prefeito da capital paulista estará sujeito a enfrentar problemas no início da gestão. “A não utilização do recurso público e a não realização das obras de contenção de encostas e outras soluções de engenharia que possam minimizar os riscos vai deixar um passivo muito difícil de ser resolvido em janeiro, quando as chuvas mais fortes já estarão acontecendo.”

Um dos caminhos possíveis para avançar na realização de obras em área de risco é a execução do recém-publicado Plano Municipal de Redução de Riscos (PMRR), que Nunes vem alardeando como um dos feitos de sua gestão. O plano identifica as áreas de risco na capital e estabelece estratégias para evitar desastres. O que o prefeito não diz é que a formulação do plano só ocorreu após decisão judicial obrigar a prefeitura a apresentar o documento, em ação movida pelo Ministério Público de São Paulo (MPSP). A gestão Nunes tentou adiar a formulação do PMRR alegando problemas de segurança em regiões dominadas pelo crime organizado. A versão anterior do documento havia sido formulada mais de uma década atrás, em 2010.

O plano formulado pela gestão Nunes aponta 519 áreas de risco geológico – como deslizamentos de terra – e 266 de risco hidrológico – como enchentes e alagamentos. Das 785 áreas mapeadas, porém, somente as 100 de maior risco receberam projetos de intervenção para mitigação do risco. A Pública questionou a prefeitura sobre quais ações já foram efetivadas para as áreas em que houve formulação de plano e qual o planejamento para contemplar as demais, mas não obteve respostas até a publicação.

A gestão de Nunes havia previsto também R$ 1 milhão para “ações de monitoramento de mudanças climáticas”, mas a previsão foi retirada do orçamento atualizado. Essa rubrica faz parte do programa “gestão dos riscos e promoção da resiliência a desastres e eventos críticos”, que tem previsão de R$ 3,2 bilhões no orçamento atualizado e inclui intervenções no sistema de drenagem e operação da Defesa Civil. 

Restando menos de dois meses e meio para o fim do ano, 22% do valor previsto nesse programa ainda não foi empenhado, incluindo R$ 1 milhão para “obras de combate a enchentes e alagamentos”, valor total previsto para essa ação. A Pública questionou a prefeitura também sobre esses valores, mas não teve retorno.

<><> Por que isso importa?

  • A prefeitura de São Paulo não fez as ações previstas para reduzir os riscos de deslizamento durante a temporada de chuvas.
  • Planos de gestão de risco e de ação climática lançados por Nunes são considerados pouco efetivos por especialistas.

As chuvas voltaram ao centro da pauta em São Paulo depois da tempestade com fortes ventos que atingiu a região metropolitana em 11 de outubro, resultando em mais de 3 milhões de residências sem luz. Nunes vem sendo alvo de críticas por sua gestão frente a mais um apagão na cidade de São Paulo, o terceiro em menos de um ano.  Segundo o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira (PSD), mais de 50% das ocorrências no mais recente apagão tiveram como causa a queda de árvores na rede elétrica. Desde então, a concessionária Enel e a gestão do atual prefeito e candidato à reeleição têm atribuído ao outro a responsabilidade pela poda de árvores que poderia ter evitado a magnitude do incidente. A prefeitura diz que há 6 mil podas pendentes de responsabilidade da Enel, o que a empresa nega

Segundo reportagem do UOL, mais de 25% das solicitações de poda feitas à prefeitura no primeiro semestre de 2024 não foram atendidas, a maior parte delas na periferia.

<><> Alardeado por Nunes, PlanClima ainda não traz resultados práticos

Além do PMRR, a gestão de Ricardo Nunes aponta como um dos destaques da sua gestão na questão climática a formulação do Plano de Ação Climática (PlanClima) de São Paulo – que na verdade ocorreu ainda na gestão do prefeito Bruno Covas (PSDB), morto em maio de 2021, e a quem Nunes sucedeu.

O PlanClima visa identificar e propor ações para que a cidade atinja a neutralidade de emissões de carbono até 2050, além de sugerir medidas de adaptação e resiliência. Há metas de curto, médio e longo prazo, que vão de reduzir a emissão de poluentes e estimular a economia verde, até minimizar alagamentos e inundações.

Uma das metas previstas no plano é alcançar 50% da frota de ônibus municipais com emissão zero até 2028. A despeito de não ter um objetivo intermediário previsto no PlanClima, o Programa de Metas da prefeitura de 2021 estabeleceu que, até o final de 2024, 20% da frota de ônibus da cidade seria de veículos elétricos – cerca de 2.600 ônibus, portanto.  A meta foi reafirmada pelo prefeito Ricardo Nunes em setembro de 2023, quando ele participou da cerimônia de entrega de 50 novos ônibus elétricos. Faltando dois meses e meio para o fim do ano, no entanto, ela está muito distante de ser cumprida.

Como revelou o Diário do Transporte, apenas 207 veículos elétricos compunham a frota da cidade até o mês passado, menos de 10% do prometido, e não há notícia de novas aquisições. Para cumprir o objetivo, seriam necessários 34 novos ônibus por dia até 31 de dezembro. A cidade tem ainda 201 trólebus, veículos que também não emitem gases do efeito estufa, mas que Nunes pretende descontinuar. A Pública questionou a prefeitura sobre o cumprimento da meta, mas não teve retorno. Essa não é a única meta prevista no PlanClima que está longe de ser executada na íntegra. “Eu não vejo ação concreta saindo do plano”, aponta o professor Afonso Celso Vanoni de Castro, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie.  “O PlanClima tem um capítulo sobre chuvas, pontuando que o que provoca uma tragédia é a remoção da vegetação, o aumento da impermeabilização, a ocupação das áreas de inundação. Tudo isso que a gente entende como a história, o plano reconhece. Agora, o que o plano propõe em relação a isso? Ele não propõe, a verdade é essa”, diz.

Na visão de Vanoni de Castro, que tem pesquisas na área de mudanças climáticas e infraestrutura, o PlanClima teve, até agora, um papel mais “cosmético” do que alguma efetividade em orientar a formulação de políticas públicas do município. “Essa última revisão do Plano Diretor, por exemplo, foi feita totalmente a portas fechadas dentro da Câmara Municipal, com vereadores financiados pelo mercado imobiliário atendendo o mercado imobiliário. E esse Plano Diretor não contempla isso [os efeitos das mudanças climáticas]”, aponta.

<><> Nunes teve negacionista na Secretaria de Clima

Ricardo Nunes se orgulha também de ter criado a Secretaria Executiva de Mudanças Climáticas de São Paulo (Seclima) – uma das poucas no mundo, segundo ele. O atual titular da pasta é José Renato Nalini, ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo e ex-secretário estadual de Educação, na gestão de Geraldo Alckmin (então no PSDB, hoje no PSB). Até onde se tem notícia, Nalini jamais questionou o papel humano nas mudanças climáticas. Tampouco o fez seu antecessor, o ex-vereador Gilberto Natalini (PV). Não se pode dizer o mesmo do primeiro e mais longevo ocupante do cargo, o advogado ambiental Antonio Fernando Pinheiro Pedro. Em julho de 2023, veio à tona uma declaração de Pinheiro Pedro, então à frente da pasta, de que “o planeta se salva sozinho” do aquecimento global. Ele tecia críticas a estudos científicos. Na época, Pinheiro Pedro se defendeu dizendo que a afirmação foi “tirada de contexto” e tinha objetivos difamatórios, mas pediu exoneração, depois de mais de dois anos à frente da pasta.

O advogado, apoiador de primeira hora da malfadada tentativa do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles (PL) de se candidatar à prefeitura de São Paulo, foi um dos articuladores das medidas adotadas pelo então ministro para “passar a boiada”, como revelou a Folha de S.Paulo.  Atualmente, ele mantém um blog em que ataca a imprensa, a esquerda, o governo Lula, o “globalismo” e defende Israel, com recorrentes citações ao falecido ideólogo Olavo de Carvalho.  A despeito de ter sido secretário de Ricardo Nunes, ele apoiou o ex-coach Pablo Marçal (PRTB) no primeiro turno das eleições municipais e criticou a atuação do ex-chefe diante da chuva que atingiu a região metropolitana de São Paulo em 11 de outubro. O texto critica o “uso ocasional de jaquetinhas da defesa civil” e aponta “falta de poda preventiva” por parte da gestão municipal – da qual ele fez parte. Apesar disso, ele se autoelogia e diz que os problemas começaram depois que ele saiu. Diz que a prefeitura “reduziu sensivelmente as atribuições da própria secretaria, diluindo a governança climática por interesses outros”, sem especificar a que se refere. Pinheiro Pedro não é o único ex-secretário de Mudanças Climáticas da cidade a criticar ações da gestão Nunes. Gilberto Natalini, que chefiou a pasta entre julho de 2023 e janeiro de 2024, afirmou à Pública que “a velocidade da ação [da prefeitura] não é do tamanho da velocidade dos eventos climáticos extremos”. O ex-vereador também classifica como “insuficiente” o PMRR.

 

¨      Túnel de Nunes vai extinguir comunidade na Vila Mariana e derrubar quase 200 árvores. Por Isabel Seta, na Pública

“Essa é a casa que eu construí. Toda minha economia está aqui. Eu vim para cá com 29 anos, hoje estou com 65. Trabalhava em dois serviços e tudo que eu juntei foi para essa casa”, diz Laurenilda Maria dos Santos sobre o lar que começou a construir com o marido há 36 anos e onde vive com a filha e os três netos. Moradora da comunidade Sousa Ramos, encravada no meio da Vila Mariana, um dos bairros mais nobres de São Paulo, Laurenilda está apavorada diante da perspectiva de ser obrigada a deixar sua casa. “A gente não tem para onde ir.” Desde setembro, ela e os outros cerca de 200 moradores da comunidade foram surpreendidos com a chegada de caminhões e tratores no lote ao lado – uma área que, na última revisão do zoneamento da cidade, no início deste ano, foi classificada como “zona especial de proteção ambiental”.

Em poucos dias, parte do pequeno córrego que corta a área foi coberto e todas as árvores que tomavam o morro foram cortadas. “Todo mundo chorava, chorava”, diz Laurenilda. “Eu, que vivo tirando foto e filmando tudo, fiquei tão consternado que nem consegui fotografar. Só fiquei parado, com uma sensação de dor”, conta Eduardo Canejo, morador da comunidade há 16 anos e presidente da associação de moradores. Era o início, sem aviso prévio, de uma obra da prefeitura para a construção de um túnel de cerca de 500 metros de extensão com início na rua Sena Madureira, passando por baixo da avenida Domingos de Morais, até desembocar na rua Maurício Francisco Klabin, para – em teoria – desafogar o trânsito de carros.

Imaginado pela primeira vez ainda na década de 1970, quando a Linha 1-Azul do Metrô ainda nem tinha sido implementada, o projeto foi licitado em 2011. O contrato, no entanto, foi suspenso em 2013, sob a justificativa de que não haveria recursos no orçamento para o empreendimento. No pano de fundo, a obra e as empresas envolvidas –  o consórcio Queiroz Galvão e Galvão Engenharia – tinham entrado nas investigações da Lava Jato.

Até 2019, o contrato continuou sendo suspenso continuamente. Até que, em 2022, se tornou uma prioridade para a gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) – que busca a reeleição –, mas voltou a ser tocado somente neste ano pela mesma Galvão Engenharia e pela Queiroz Galvão, agora rebatizada Ayla Construtora. A obra implica a remoção das dezenas de famílias que vivem nas 85 casas da Sousa Ramos, várias delas com crianças e idosos. Há, ainda, cinco pessoas que fazem tratamento de câncer nos hospitais da região. Até o momento, os moradores nem sequer foram contatados oficialmente pela prefeitura. Mas, por documentos públicos, sabem que o traçado do túnel passará pela comunidade, que fica em terreno da prefeitura. Os moradores da comunidade vizinha, em uma área em parte privada e em parte pública, também terão que sair para dar lugar ao canteiro de obras e ao alargamento de uma via.

<><> Por que isso importa?

  • Empreendimento que vai evitar trânsito em apenas um farol vai remover mais de 200 pessoas que vivem há décadas na comunidade Sousa Ramos e, até agora, não foram contatadas pela prefeitura.
  • Projeto original era de 2011, da gestão Kassab. A Controladoria-Geral do Município apontou neste ano indícios de sobrepreço no contrato original, mas gestão Nunes não fez nova licitação nem novo estudo de impacto ambiental

“Nossa comunidade tem mais de 50 anos. É uma vida inteira aqui dentro. Não tem como de uma hora para outra sermos removidos, como se a gente fosse rato”, diz Anália do Nascimento, que mora na Sousa Ramos há 28 anos. Sua filha mais velha se formou em direito em uma faculdade próxima, a mesma em que seu filho mais novo planeja entrar em breve. Seus netos pequenos, que moram com ela, estudam em escolas do bairro.“Essa obra se tornou um pesadelo na vida de todas as famílias. Nos sentimos desrespeitados, negligenciados e abusados”, disse a moradora Magda Moreira, de 25 anos, em uma reunião realizada na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) nesta quarta-feira (16). “Do dia para noite havia tratores, caminhões, equipes de obra [para fazer um] túnel que impacta negativamente uma comunidade inteira, que sequer foi informada, instruída ou orientada sobre essa obra.”

A construção afetará também a nascente do córrego Embuaçu, já parcialmente concretado, e a morte de pelo menos 172 árvores – o plano de compensação prevê o plantio de cerca de 260 mudas no perímetro da obra. Muitas das árvores – adultas – já foram arrancadas na área de proteção ambiental vizinha à Sousa Ramos. Outras vão ser derrubadas na rua Sena Madureira, apesar de, pelo menos no papel, elas integrarem um importante corredor verde que liga os parques Ibirapuera e Aclimação, conforme o  Plano Municipal de Áreas Protegidas, Áreas Verdes e Espaços Livres, da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente. Tudo isso por um túnel, orçado em meio bilhão de reais, para aliviar o trânsito de apenas um farol, no cruzamento entre a rua Sena Madureira e a avenida Domingos de Morais. Em nota enviada à reportagem, a prefeitura disse que “a obra do Túnel Sena Madureira respeita todas as exigências relativas a questões ambientais e beneficiará mais de 800 mil pessoas que circulam na região diariamente”.

Como o projeto prevê um túnel para veículos, moradores do bairro questionam o que acontecerá com quem anda de bicicleta pela ciclofaixa da Sena Madureira e com o corredor de ônibus planejado para a mesma rua, conforme o Plano de Mobilidade Urbana de São Paulo, estabelecido em 2015. O plano previa um corredor de 2,2 km de extensão para 2024, mas até o momento ele ainda não se materializou.

No primeiro debate antes do segundo turno da eleição municipal, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) foi questionado sobre as horas que o paulistano gasta no transporte público e por não ter implementado os 40 km de corredores estipulados para toda a cidade no plano de metas. Na resposta, o prefeito listou alguns corredores supostamente entregues e outras obras tocadas pela gestão, entre elas a “retomada do túnel da Sena Madureira”. Mas não explicou como um projeto voltado para automóveis vai melhorar a vida de quem pega ônibus. Na nota enviada à Agência Pública, a prefeitura disse que o túnel “comporta ônibus e veículos utilitários” e que vai “melhorar a fluidez do trânsito na região”. Com essa promessa, o projeto do túnel conquistou apoio de parte dos moradores da Vila Mariana.

Em uma apresentação sobre a obra, a Secretaria de Mobilidade e Trânsito (SMT) lista como benefícios do túnel, além da eliminação do cruzamento entre a Sena Madureira e a Domingos de Morais, “melhorias na acessibilidade dos bairros do Corredor Sul-Sudeste, desde o Morumbi até Vila Prudente”, “maior fluidez para o tráfego relacionado às intensas atividades empresariais e financeiras da região” e “mais uma rota alternativa de acesso à Rodovia dos Imigrantes”.

<><> “Querem mandar a gente pro fundão”

Os moradores da Sousa Ramos não sabem o que será de seu futuro, já que todos têm a vida organizada em torno dos serviços e oportunidades que a Vila Mariana oferece: três linhas de metrô, fácil acesso a ônibus, hospitais de qualidade, postos de saúde, boas creches e escolas públicas – e particulares, nas quais algumas crianças da comunidade conseguiram bolsa de estudos. Ninguém quer ser obrigado a ir embora. “Formei minha filha aqui. Criei todos os meus filhos. Eu amo muito esse lugar”, diz Ana Maria Barbosa, de 55 anos – 27 deles na comunidade. Seu filho mais novo, Lucas, de 20 anos, está visivelmente angustiado. Ele faz faculdade no Ipiranga e trabalha no Jabaquara, dois bairros vizinhos. “Faço tudo de metrô.”

O gerente de atendimento Fagner Teixeira da Costa não consegue nem imaginar ter de sair da casa que planejou em detalhes, da planta aos móveis – “foi uma conquista”, diz ele, que trabalha no Itaim Bibi. O emprego da esposa também é próximo e o filho deles, de 4 anos, estuda numa creche vizinha.

Ainda sem informações oficiais, os moradores especulam se será oferecido a eles um auxílio temporário de aluguel, de R$ 400, ou uma indenização que, segundo o que ouviram, seria em torno de R$ 30 mil – as casas na comunidade, porém, valem cerca de R$ 150 mil cada uma, dizem. “O que a gente faz com R$ 30 mil? Não compra nem um barraco”, questiona Geralda Alves Monteiro, de 77 anos.

O estudo de impacto ambiental, produzido ainda em 2009 para o licenciamento ambiental do túnel, já reconhecia esse problema: “Há um agravante considerando que a região é de valor imobiliário significativo, não havendo condições prováveis para a manutenção das famílias na mesma região. Do mesmo modo, não há condições de implantação de unidades habitacionais populares nesta região”.

Em documento do final de setembro, a coordenadoria regional da Secretaria Municipal de Habitação (Sehab) sugeriu, para o início de outubro, uma primeira reunião com os moradores sobre o atendimento habitacional definitivo e o início do cadastramento das famílias. Até agora, nada disso aconteceu. A Pública enviou perguntas para várias secretarias envolvidas na obra, incluindo a Sehab. A prefeitura optou por responder com uma única nota, que não respondeu a todos os questionamentos feitos.

Em relação aos moradores, a prefeitura afirmou que “as famílias residentes na área de propriedade da prefeitura e que passarão por intervenção das obras receberão atendimento habitacional e poderão optar entre a indenização de seus imóveis ou a realocação em uma nova unidade habitacional”. “O serviço deles é tirar a gente da sociedade, mandar a gente pro fundão”, afirma João Batista, de 63 anos, que já passou por outras remoções e, em todas elas, foi levado para morar em bairros no extremo leste da cidade.Morador da comunidade vizinha, que também será desapropriada, Batista não gostaria de sair. “Aqui tenho acesso a tudo, estou aposentado, faço tratamento de tudo aqui, do coração, da diabetes”, diz ele, com a pasta de documentos e receitas médicas nas mãos.

Segundo registros da própria prefeitura, a comunidade Sousa Ramos existe desde 1949 – muito antes do projeto original do túnel. Em 2016, a prefeitura revisou o zoneamento e classificou a área como uma Zona Especial de Interesse Social (Zeis), onde o poder público deve agir para promover a regularização fundiária e urbanística. A regularização fundiária, inclusive, já estava em andamento pela Sehab, mas foi interrompida pela obra. Acontece que quando a obra foi licitada, há 13 anos, o zoneamento era outro. Em teoria, o “direito de protocolo” implica que seja considerado o zoneamento vigente na época da licitação. O Plano Diretor Estratégico de São Paulo, de 2014, porém, estipula que para decisões sobre uso e ocupação do solo, “as disposições relativas às Zeis prevalecem sobre aquelas referentes a qualquer outra zona de uso incidente sobre o lote”.

<><> Fraude em licitações e suspeitas

As secretarias responsáveis pela obra buscaram formas de retomá-la sem ter que fazer uma nova licitação, sob o argumento de que seria uma perda de tempo e de dinheiro – mesmo diante de todas as mudanças na cidade ao longo de mais de uma década e, ainda, das acusações envolvendo o empreendimento e as empreiteiras responsáveis.Em 2018, em delação premiada, o executivo Dario de Queiroz Galvão Filho disse que o então prefeito Gilberto Kassab (então no DEM, hoje no PSD) direcionou a licitação do túnel, em 2011, para que a Galvão Engenharia vencesse. Em contrapartida, a empreiteira teria doado R$ 1 milhão para o diretório nacional do DEM. À época, a assessoria de Kassab disse que a licitação “ocorreu de forma lícita e transparente” e negou irregularidades. “Essa é uma obra prioritária para o prefeito [Ricardo Nunes]. Ele me ligou e falou: ‘Marcos, vamos retomar o túnel Sena Madureira, é um compromisso meu ter essa obra até o final da gestão’. Por isso que a gente pegou e colocou todos os esforços para conseguir retomar esse contrato”, disse o secretário de Infraestrutura e Obras, Marcos Monteiro, em agosto de 2022, em uma audiência pública para discutir o túnel.

Na ocasião, Monteiro explicou que, como a suspensão do contrato foi prorrogada apenas até 2019, foi necessário verificar a “questão legal”. “A gente fez consultas à Procuradoria da prefeitura, à Controladoria, para nos certificar de que nós não teríamos problemas na prorrogação do contrato. A Procuradoria nos deu um parecer de que não haveria óbice em dar continuidade a esse contrato, desde que se comprovasse a viabilidade financeira”, disse. A viabilidade financeira foi demonstrada, segundo o secretário, com a atualização dos valores previstos pelo contrato em 2010, que eram de R$ 223 milhões, para valores de 2020, de R$ 366 milhões – mantido o mesmo “desconto” dado anteriormente pelas empresas vencedoras. A estimativa de uma nova licitação apontou para um custo de R$ 369 milhões. “A gente entende que essa pequena diferença justifica a gente seguir com esse mesmo projeto”, disse o secretário.

Pareceres da Controladoria-Geral do Município (CGM), no entanto, colocam em dúvida se de fato houve desconto à época da licitação. Uma sindicância do órgão investigou licitações promovidas pela prefeitura e vencidas pela Galvão Engenharia e pela Queiroz Galvão (rebatizada como Ayla Construtora) e apontou “indícios de sobrepreço” nos pagamentos feitos às empresas durante a execução inicial do contrato do túnel da Sena Madureira, em 2011. Em agosto, o controlador-geral do município condenou a Ayla a pagar uma multa administrativa de R$ 5,57 milhões por fraude na licitação de outra obra, mas alterou para advertência uma penalidade que impediria a empresa de fazer negócios com a administração pública por seis meses.

“A aplicação de penalidade que impeça a interessada de relacionar-se com o Poder Público é deveras gravosa considerando o ambiente de consensualidade no qual foi realizado o acordo. Ademais, há que se considerar o princípio da preservação da empresa em razão de sua função social como fonte geradora de serviços, empregos e renda”, escreveu o controlador.

Já a Galvão Engenharia também foi punida por condutas “anticompetitivas” e fraude em licitações da prefeitura com uma multa de R$ 3,58 milhões. No último dia 14 de outubro, o controlador-geral determinou que a Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbanas e Obras (Siurb) tomasse as providências para a responsabilização da empresa, “com vistas à declaração de sua inidoneidade”. Empresas declaradas inidôneas não podem fazer contratos ou licitações com a administração pública.

Em maio deste ano, as empresas tentaram mudar a composição do consórcio, mantendo a Ayla, mas substituindo a Galvão Engenharia pela Engibras Engenharia. O pedido foi negado pela SMT, atual responsável pela obra. A reportagem enviou questionamento ao prefeito sobre a denúncia de propina e sobre as decisões da CGM. Na nota, a prefeitura afirmou somente que “a intervenção foi retomada neste mês após consulta técnica ao Tribunal de Contas do Município (TCM) e possui Projeto de Compensação Ambiental (PCA) e nova avaliação de impacto à vizinhança, entre outras autorizações e licenças”.

<><> Falta de transparência

Curiosamente, as placas públicas sobre a obra trazem o nome “Consórcio Sena Madureira” como empresa responsável – e não Consórcio Galvão Engenharia e Ayla Construtora, como informado, inclusive, em outras comunicações públicas da administração municipal. Já o valor do empreendimento anotado nas placas é o de R$ 218,9 milhões – cifra de 2011. O valor atualizado da obra é de R$ 531 milhões.

<><> “Parem a obra”

O impacto ambiental e social da obra uniu diferentes grupos contra a construção do túnel, como ciclistas, pessoas que vivem nos prédios do entorno, além dos moradores da Sousa Ramos. “Estamos batalhando para que a obra pare, volte um passo atrás e seja discutida com a população”, diz Eliana Barcelos, presidente da Associação de Moradores da Vila Mariana. O abaixo-assinado promovido pela associação já tem mais de 9 mil assinaturas. “Não é só uma obra rodoviarista datada”, diz Lucian de Paula, arquiteto e urbanista que integra o Coletivo Metropolitano de Mobilidade Urbana e fazia parte do conselho participativo da Vila Mariana.

“É uma desculpa para expulsar uma das poucas comunidades que tem na Vila Mariana. Quando eu era conselheiro, eu perguntei à subprefeitura quais eram os planos de moradia para o bairro. Me responderam que, como tinha muito pouca pobreza, não precisava de plano de habitação. [Como se quisessem dizer que] O bairro é bom, mas certas pessoas não são boas o suficiente para morar nele.”

No último domingo (13), moradores da região realizaram o terceiro ato contra a obra desde o início de outubro. Munidos de faixas contra os cortes de árvores, os manifestantes caminharam pela ciclofaixa e colaram cartazes nos postes da região – no dia seguinte, os postes apareceram pintados de branco.

Deputados estaduais e vereadores em exercício e recém-eleitos também questionam a obra – alguns deles já acionaram o Ministério Público de São Paulo (MPSP), que, até o momento, pediu esclarecimentos à prefeitura, mas não a interrupção do empreendimento. Pelo menos três procedimentos no MPSP visam apurar eventuais irregularidades. Há ainda um inquérito civil em trâmite na 6ª Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo desde 2022.

Apesar da retomada da obra 15 anos depois da realização do estudo de impacto ambiental, a Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente determinou que fosse feito apenas o “estudo de viabilidade ambiental”, um documento menos trabalhoso, para atualizar o licenciamento ambiental. O documento reconhece a existência de uma nascente na área do empreendimento, o que tornaria o local uma Área de Preservação Permanente (APP) pelo Código Florestal. A nota da prefeitura não respondeu à pergunta sobre essa contradição.

Ao longo dos anos, os moradores asfaltaram a rua do lote da comunidade e plantaram mais árvores na área de proteção ambiental que hoje se tornou um canteiro de obras. Uma enorme caçamba guarda os restos mortais das árvores abatidas. Boa parte do córrego já começou a ser fechada. Nos últimos dias, sem explicações da administração, o barulho cessou, menos funcionários passaram a circular, as máquinas foram desligadas. Mas o estrago na área verde já foi feito. Resta saber o que acontecerá com a Sousa Ramos.

 

Fonte: Por Rafael Oliveira e Gabriel Gama, na Agencia Pública

 

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