Gestão Nunes empenhou menos de 25% do
previsto para obras em áreas de risco geológico
Enquanto a temporada
de chuvas começa em São Paulo, a maior parte do dinheiro que deveria ser
usado para obras contra deslizamentos de terra está parada no caixa da
prefeitura. Sob a gestão de Ricardo Nunes (MDB), a administração municipal
empenhou, até 17 de outubro, apenas 23% do orçamento anual previsto para obras
e serviços de prevenção em áreas de risco geológico, que inclui deslizamentos
de terra. O recurso é dividido entre obras de prevenção e
emergência. Só 27% do montante destinado para ações preventivas foi
empenhado. Com relação a obras emergenciais, nenhum valor foi empenhado até o
momento, apesar de a cidade ter registrado quase 150 chamados de deslizamentos
entre janeiro e agosto de 2024.
Os dados foram obtidos
na Secretaria da Fazenda e mostram a falta de aplicação de recurso para
enfrentar uma ameaça que atinge mais de 200 mil famílias, conforme
revelou reportagem da Agência Pública.
Em 2024, a prefeitura
orçou R$ 24 milhões para obras e serviços preventivos nas áreas de risco
geológico, que depois foram atualizados para R$ 63,3 milhões. Apenas R$ 17,2
milhões haviam sido empenhados até outubro, no entanto. Já o orçamento para
obras de caráter emergencial foi de R$ 28 milhões, posteriormente atualizado
para R$ 10,4 milhões. Mas nada foi empenhado até o momento. “Esse tipo de obra,
especialmente a de prevenção, é extremamente importante. E considerando que o
período de maior estiagem, de maio a novembro, é o mais propício para a
realização das obras preventivas, o recurso já deveria estar não só empenhado,
como ter sido utilizado”, afirma Henrique Frota, diretor-executivo do Instituto
Pólis. Frota avalia que, independentemente do resultado do segundo turno das
eleições, disputado entre Nunes e Guilherme Boulos (PSOL), o futuro prefeito da
capital paulista estará sujeito a enfrentar problemas no início da
gestão. “A não utilização do recurso público e a não realização das obras
de contenção de encostas e outras soluções de engenharia que possam minimizar
os riscos vai deixar um passivo muito difícil de ser resolvido em janeiro,
quando as chuvas mais fortes já estarão acontecendo.”
Um dos caminhos
possíveis para avançar na realização de obras em área de risco é a execução do
recém-publicado Plano Municipal de Redução de Riscos (PMRR), que Nunes vem
alardeando como um dos feitos de sua gestão. O plano identifica as áreas de
risco na capital e estabelece estratégias para evitar desastres. O que o
prefeito não diz é que a formulação do plano só ocorreu após decisão judicial obrigar a prefeitura a apresentar o documento, em ação movida pelo Ministério
Público de São Paulo (MPSP). A gestão Nunes tentou adiar a formulação do PMRR
alegando problemas de segurança em regiões dominadas pelo crime organizado. A
versão anterior do documento havia sido formulada mais de uma década atrás, em
2010.
O plano formulado pela
gestão Nunes aponta 519 áreas de risco geológico – como deslizamentos de terra
– e 266 de risco hidrológico – como enchentes e alagamentos. Das 785 áreas
mapeadas, porém, somente as 100 de maior risco receberam projetos de intervenção
para mitigação do risco. A Pública questionou a prefeitura sobre
quais ações já foram efetivadas para as áreas em que houve formulação de plano
e qual o planejamento para contemplar as demais, mas não obteve respostas até a
publicação.
A gestão de Nunes
havia previsto também R$ 1 milhão para “ações de monitoramento de mudanças
climáticas”, mas a previsão foi retirada do orçamento atualizado. Essa rubrica
faz parte do programa “gestão dos riscos e promoção da resiliência a desastres
e eventos críticos”, que tem previsão de R$ 3,2 bilhões no orçamento atualizado
e inclui intervenções no sistema de drenagem e operação da Defesa Civil.
Restando menos de dois
meses e meio para o fim do ano, 22% do valor previsto nesse programa ainda não
foi empenhado, incluindo R$ 1 milhão para “obras de combate a enchentes e
alagamentos”, valor total previsto para essa ação. A Pública questionou
a prefeitura também sobre esses valores, mas não teve retorno.
<><> Por
que isso importa?
- A prefeitura de São Paulo não fez as ações previstas para
reduzir os riscos de deslizamento durante a temporada de chuvas.
- Planos de gestão de risco e de ação climática lançados por
Nunes são considerados pouco efetivos por especialistas.
As chuvas voltaram ao
centro da pauta em São Paulo depois da tempestade com fortes ventos que atingiu
a região metropolitana em 11 de outubro, resultando em mais de 3 milhões de
residências sem luz. Nunes vem sendo alvo de críticas por sua gestão frente a
mais um apagão na cidade de São Paulo, o terceiro em menos de um ano. Segundo
o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira (PSD), mais de 50% das
ocorrências no mais recente apagão tiveram como causa a queda de árvores na
rede elétrica. Desde então, a concessionária Enel e a gestão do atual prefeito
e candidato à reeleição têm atribuído ao outro a responsabilidade pela poda de
árvores que poderia ter evitado a magnitude do incidente. A prefeitura diz que
há 6 mil podas pendentes de responsabilidade da Enel, o que a empresa nega.
Segundo reportagem do UOL, mais de 25% das solicitações de poda feitas à prefeitura no
primeiro semestre de 2024 não foram atendidas, a maior parte delas na
periferia.
<><>
Alardeado por Nunes, PlanClima ainda não traz resultados práticos
Além do PMRR, a gestão
de Ricardo Nunes aponta como um dos destaques da sua gestão na questão
climática a formulação do Plano de Ação Climática (PlanClima) de São Paulo –
que na verdade ocorreu ainda na gestão do prefeito Bruno Covas (PSDB), morto em
maio de 2021, e a quem Nunes sucedeu.
O PlanClima visa
identificar e propor ações para que a cidade atinja a neutralidade de emissões
de carbono até 2050, além de sugerir medidas de adaptação e resiliência. Há
metas de curto, médio e longo prazo, que vão de reduzir a emissão de poluentes
e estimular a economia verde, até minimizar alagamentos e inundações.
Uma das metas
previstas no plano é alcançar 50% da frota de ônibus municipais com emissão
zero até 2028. A despeito de não ter um objetivo intermediário previsto no
PlanClima, o Programa de Metas da prefeitura de 2021 estabeleceu que, até o
final de 2024, 20% da frota de ônibus da cidade seria de veículos elétricos
– cerca de 2.600 ônibus, portanto. A meta foi reafirmada pelo prefeito Ricardo
Nunes em setembro de 2023, quando ele participou da cerimônia de entrega de 50
novos ônibus elétricos. Faltando dois meses e meio para o fim do ano, no
entanto, ela está muito distante de ser cumprida.
Como revelou o Diário
do Transporte, apenas 207 veículos elétricos compunham a frota da
cidade até o mês passado, menos de 10% do prometido, e não há notícia de novas
aquisições. Para cumprir o objetivo, seriam necessários 34 novos ônibus
por dia até 31 de dezembro. A cidade tem ainda 201 trólebus, veículos que
também não emitem gases do efeito estufa, mas que Nunes pretende descontinuar.
A Pública questionou a prefeitura sobre o cumprimento da meta, mas não teve
retorno. Essa não é a única meta prevista no PlanClima que está longe de ser
executada na íntegra. “Eu não vejo ação concreta saindo do plano”, aponta o
professor Afonso Celso Vanoni de Castro, da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo do Mackenzie. “O PlanClima tem um capítulo sobre chuvas,
pontuando que o que provoca uma tragédia é a remoção da vegetação, o aumento da
impermeabilização, a ocupação das áreas de inundação. Tudo isso que a gente
entende como a história, o plano reconhece. Agora, o que o plano propõe em
relação a isso? Ele não propõe, a verdade é essa”, diz.
Na visão de Vanoni de
Castro, que tem pesquisas na área de mudanças climáticas e
infraestrutura, o PlanClima teve, até agora, um papel mais “cosmético” do
que alguma efetividade em orientar a formulação de políticas públicas do
município. “Essa última revisão do Plano Diretor, por exemplo, foi feita
totalmente a portas fechadas dentro da Câmara Municipal, com vereadores
financiados pelo mercado imobiliário atendendo o mercado imobiliário. E esse
Plano Diretor não contempla isso [os efeitos das mudanças climáticas]”, aponta.
<><> Nunes
teve negacionista na Secretaria de Clima
Ricardo Nunes se
orgulha também de ter criado a Secretaria Executiva de Mudanças Climáticas de
São Paulo (Seclima) – uma das poucas no mundo, segundo ele. O atual titular da
pasta é José Renato Nalini, ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo e
ex-secretário estadual de Educação, na gestão de Geraldo Alckmin (então no
PSDB, hoje no PSB). Até onde se tem notícia, Nalini jamais questionou o papel
humano nas mudanças climáticas. Tampouco o fez seu antecessor, o ex-vereador
Gilberto Natalini (PV). Não se pode dizer o mesmo do primeiro e mais longevo
ocupante do cargo, o advogado ambiental Antonio Fernando Pinheiro Pedro. Em
julho de 2023, veio à tona uma declaração de Pinheiro Pedro, então à frente da
pasta, de que “o planeta se salva sozinho” do aquecimento global. Ele tecia
críticas a estudos científicos. Na época, Pinheiro Pedro se defendeu dizendo que a afirmação foi “tirada de
contexto” e tinha objetivos difamatórios, mas
pediu exoneração, depois de mais de dois anos à frente da pasta.
O advogado, apoiador
de primeira hora da malfadada tentativa do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo
Salles (PL) de se candidatar à prefeitura de São Paulo, foi um dos
articuladores das medidas adotadas pelo então ministro para “passar a
boiada”, como revelou a Folha de S.Paulo. Atualmente, ele mantém um blog em que ataca a imprensa,
a esquerda, o governo Lula, o “globalismo” e defende Israel, com recorrentes
citações ao falecido ideólogo Olavo de Carvalho. A despeito de ter sido
secretário de Ricardo Nunes, ele apoiou o ex-coach Pablo Marçal (PRTB) no
primeiro turno das eleições municipais e criticou a atuação do ex-chefe diante
da chuva que atingiu a região metropolitana de São Paulo em 11 de outubro. O texto
critica o “uso ocasional de jaquetinhas da defesa civil” e aponta “falta de
poda preventiva” por parte da gestão municipal – da qual ele fez parte. Apesar
disso, ele se autoelogia e diz que os problemas começaram depois que ele saiu.
Diz que a prefeitura “reduziu sensivelmente as atribuições da própria
secretaria, diluindo a governança climática por interesses outros”, sem
especificar a que se refere. Pinheiro Pedro não é o único ex-secretário de
Mudanças Climáticas da cidade a criticar ações da gestão Nunes. Gilberto
Natalini, que chefiou a pasta entre julho de 2023 e janeiro de 2024, afirmou
à Pública que “a velocidade da ação [da prefeitura] não é do tamanho
da velocidade dos eventos climáticos extremos”. O ex-vereador também classifica
como “insuficiente” o PMRR.
¨
Túnel de Nunes vai extinguir comunidade na
Vila Mariana e derrubar quase 200 árvores. Por Isabel Seta, na Pública
“Essa é a casa que eu
construí. Toda minha economia está aqui. Eu vim para cá com 29 anos, hoje estou
com 65. Trabalhava em dois serviços e tudo que eu juntei foi para essa casa”,
diz Laurenilda Maria dos Santos sobre o lar que começou a construir com o marido
há 36 anos e onde vive com a filha e os três netos. Moradora da comunidade
Sousa Ramos, encravada no meio da Vila Mariana, um dos bairros mais nobres de
São Paulo, Laurenilda está apavorada diante da perspectiva de ser obrigada a
deixar sua casa. “A gente não tem para onde ir.” Desde setembro, ela e os
outros cerca de 200 moradores da comunidade foram surpreendidos com a chegada
de caminhões e tratores no lote ao lado – uma área que, na última revisão do
zoneamento da cidade, no início deste ano, foi classificada como “zona especial
de proteção ambiental”.
Em poucos dias, parte
do pequeno córrego que corta a área foi coberto e todas as árvores que tomavam
o morro foram cortadas. “Todo mundo chorava, chorava”, diz Laurenilda. “Eu, que
vivo tirando foto e filmando tudo, fiquei tão consternado que nem consegui
fotografar. Só fiquei parado, com uma sensação de dor”, conta Eduardo Canejo,
morador da comunidade há 16 anos e presidente da associação de moradores. Era o
início, sem aviso prévio, de uma obra da prefeitura para a construção de um
túnel de cerca de 500 metros de extensão com início na rua Sena Madureira,
passando por baixo da avenida Domingos de Morais, até desembocar na rua
Maurício Francisco Klabin, para – em teoria – desafogar o trânsito de carros.
Imaginado pela
primeira vez ainda na década de 1970, quando a Linha 1-Azul do Metrô ainda nem
tinha sido implementada, o projeto foi licitado em 2011. O contrato, no
entanto, foi suspenso em 2013, sob a justificativa de que não haveria recursos
no orçamento para o empreendimento. No pano de fundo, a obra e as empresas
envolvidas – o consórcio Queiroz Galvão e Galvão Engenharia – tinham
entrado nas investigações da Lava Jato.
Até 2019, o contrato
continuou sendo suspenso continuamente. Até que, em 2022, se tornou uma
prioridade para a gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) – que busca a
reeleição –, mas voltou a ser tocado somente neste ano pela mesma Galvão
Engenharia e pela Queiroz Galvão, agora rebatizada Ayla Construtora. A obra
implica a remoção das dezenas de famílias que vivem nas 85 casas da Sousa
Ramos, várias delas com crianças e idosos. Há, ainda, cinco pessoas que fazem
tratamento de câncer nos hospitais da região. Até o momento, os moradores nem
sequer foram contatados oficialmente pela prefeitura. Mas, por documentos
públicos, sabem que o traçado do túnel passará pela comunidade, que fica em
terreno da prefeitura. Os moradores da comunidade vizinha, em uma área em parte
privada e em parte pública, também terão que sair para dar lugar ao canteiro de
obras e ao alargamento de uma via.
<><> Por
que isso importa?
- Empreendimento que vai evitar trânsito em apenas um farol
vai remover mais de 200 pessoas que vivem há décadas na comunidade Sousa
Ramos e, até agora, não foram contatadas pela prefeitura.
- Projeto original era de 2011, da gestão Kassab. A
Controladoria-Geral do Município apontou neste ano indícios de sobrepreço
no contrato original, mas gestão Nunes não fez nova licitação nem novo
estudo de impacto ambiental
“Nossa comunidade tem
mais de 50 anos. É uma vida inteira aqui dentro. Não tem como de uma hora para
outra sermos removidos, como se a gente fosse rato”, diz Anália do Nascimento,
que mora na Sousa Ramos há 28 anos. Sua filha mais velha se formou em direito
em uma faculdade próxima, a mesma em que seu filho mais novo planeja entrar em
breve. Seus netos pequenos, que moram com ela, estudam em escolas do
bairro.“Essa obra se tornou um pesadelo na vida de todas as famílias. Nos
sentimos desrespeitados, negligenciados e abusados”, disse a moradora Magda
Moreira, de 25 anos, em uma reunião realizada na Assembleia Legislativa do
Estado de São Paulo (Alesp) nesta quarta-feira (16). “Do dia para noite havia
tratores, caminhões, equipes de obra [para fazer um] túnel que impacta
negativamente uma comunidade inteira, que sequer foi informada, instruída ou
orientada sobre essa obra.”
A construção afetará
também a nascente do córrego Embuaçu, já parcialmente concretado, e a morte de
pelo menos 172 árvores – o plano de compensação prevê o plantio de cerca de 260
mudas no perímetro da obra. Muitas das árvores – adultas – já foram arrancadas
na área de proteção ambiental vizinha à Sousa Ramos. Outras vão ser derrubadas
na rua Sena Madureira, apesar de, pelo menos no papel, elas integrarem um
importante corredor verde que liga os parques Ibirapuera e Aclimação, conforme
o Plano Municipal de Áreas Protegidas, Áreas Verdes e Espaços Livres, da
Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente. Tudo isso por um túnel,
orçado em meio bilhão de reais, para aliviar o trânsito de apenas um farol, no
cruzamento entre a rua Sena Madureira e a avenida Domingos de Morais. Em nota
enviada à reportagem, a prefeitura disse que “a obra do Túnel Sena Madureira
respeita todas as exigências relativas a questões ambientais e beneficiará mais
de 800 mil pessoas que circulam na região diariamente”.
Como o projeto prevê
um túnel para veículos, moradores do bairro questionam o que acontecerá com
quem anda de bicicleta pela ciclofaixa da Sena Madureira e com o corredor de
ônibus planejado para a mesma rua, conforme o Plano de Mobilidade Urbana de São
Paulo, estabelecido em 2015. O plano previa um corredor de 2,2 km de extensão
para 2024, mas até o momento ele ainda não se materializou.
No primeiro debate
antes do segundo turno da eleição municipal, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) foi
questionado sobre as horas que o paulistano gasta no transporte público e por
não ter implementado os 40 km de corredores estipulados para toda a cidade no
plano de metas. Na resposta, o prefeito listou alguns corredores supostamente
entregues e outras obras tocadas pela gestão, entre elas a “retomada do túnel
da Sena Madureira”. Mas não explicou como um projeto voltado para automóveis
vai melhorar a vida de quem pega ônibus. Na nota enviada à Agência
Pública, a prefeitura disse que o túnel “comporta ônibus e veículos
utilitários” e que vai “melhorar a fluidez do trânsito na região”. Com essa
promessa, o projeto do túnel conquistou apoio de parte dos moradores da Vila Mariana.
Em uma apresentação
sobre a obra, a Secretaria de Mobilidade e Trânsito (SMT) lista como benefícios
do túnel, além da eliminação do cruzamento entre a Sena Madureira e a Domingos
de Morais, “melhorias na acessibilidade dos bairros do Corredor Sul-Sudeste,
desde o Morumbi até Vila Prudente”, “maior fluidez para o tráfego relacionado
às intensas atividades empresariais e financeiras da região” e “mais uma rota
alternativa de acesso à Rodovia dos Imigrantes”.
<><>
“Querem mandar a gente pro fundão”
Os moradores da Sousa
Ramos não sabem o que será de seu futuro, já que todos têm a vida organizada em
torno dos serviços e oportunidades que a Vila Mariana oferece: três linhas de
metrô, fácil acesso a ônibus, hospitais de qualidade, postos de saúde, boas
creches e escolas públicas – e particulares, nas quais algumas crianças da
comunidade conseguiram bolsa de estudos. Ninguém quer ser obrigado a ir embora.
“Formei minha filha aqui. Criei todos os meus filhos. Eu amo muito esse lugar”,
diz Ana Maria Barbosa, de 55 anos – 27 deles na comunidade. Seu filho mais
novo, Lucas, de 20 anos, está visivelmente angustiado. Ele faz faculdade no
Ipiranga e trabalha no Jabaquara, dois bairros vizinhos. “Faço tudo de metrô.”
O gerente de
atendimento Fagner Teixeira da Costa não consegue nem imaginar ter de sair da
casa que planejou em detalhes, da planta aos móveis – “foi uma conquista”, diz
ele, que trabalha no Itaim Bibi. O emprego da esposa também é próximo e o filho
deles, de 4 anos, estuda numa creche vizinha.
Ainda sem informações
oficiais, os moradores especulam se será oferecido a eles um auxílio temporário
de aluguel, de R$ 400, ou uma indenização que, segundo o que ouviram, seria em
torno de R$ 30 mil – as casas na comunidade, porém, valem cerca de R$ 150 mil
cada uma, dizem. “O que a gente faz com R$ 30 mil? Não compra nem um barraco”,
questiona Geralda Alves Monteiro, de 77 anos.
O estudo de impacto
ambiental, produzido ainda em 2009 para o licenciamento ambiental do túnel, já
reconhecia esse problema: “Há um agravante considerando que a região é de valor
imobiliário significativo, não havendo condições prováveis para a manutenção
das famílias na mesma região. Do mesmo modo, não há condições de implantação de
unidades habitacionais populares nesta região”.
Em documento do final
de setembro, a coordenadoria regional da Secretaria Municipal de Habitação
(Sehab) sugeriu, para o início de outubro, uma primeira reunião com os
moradores sobre o atendimento habitacional definitivo e o início do
cadastramento das famílias. Até agora, nada disso aconteceu. A Pública enviou
perguntas para várias secretarias envolvidas na obra, incluindo a Sehab. A
prefeitura optou por responder com uma única nota, que não respondeu a todos os
questionamentos feitos.
Em relação aos
moradores, a prefeitura afirmou que “as famílias residentes na área de
propriedade da prefeitura e que passarão por intervenção das obras receberão
atendimento habitacional e poderão optar entre a indenização de seus imóveis ou
a realocação em uma nova unidade habitacional”. “O serviço deles é tirar a
gente da sociedade, mandar a gente pro fundão”, afirma João Batista, de 63
anos, que já passou por outras remoções e, em todas elas, foi levado para morar
em bairros no extremo leste da cidade.Morador da comunidade vizinha, que também
será desapropriada, Batista não gostaria de sair. “Aqui tenho acesso a tudo,
estou aposentado, faço tratamento de tudo aqui, do coração, da diabetes”, diz
ele, com a pasta de documentos e receitas médicas nas mãos.
Segundo registros da
própria prefeitura, a comunidade Sousa Ramos existe desde 1949 – muito antes do
projeto original do túnel. Em 2016, a prefeitura revisou o zoneamento e
classificou a área como uma Zona Especial de Interesse Social (Zeis), onde o
poder público deve agir para promover a regularização fundiária e urbanística.
A regularização fundiária, inclusive, já estava em andamento pela Sehab, mas
foi interrompida pela obra. Acontece que quando a obra foi licitada, há 13
anos, o zoneamento era outro. Em teoria, o “direito de protocolo” implica que
seja considerado o zoneamento vigente na época da licitação. O Plano Diretor
Estratégico de São Paulo, de 2014, porém, estipula que para decisões sobre uso
e ocupação do solo, “as disposições relativas às Zeis prevalecem sobre aquelas
referentes a qualquer outra zona de uso incidente sobre o lote”.
<><>
Fraude em licitações e suspeitas
As secretarias
responsáveis pela obra buscaram formas de retomá-la sem ter que fazer uma nova
licitação, sob o argumento de que seria uma perda de tempo e de dinheiro –
mesmo diante de todas as mudanças na cidade ao longo de mais de uma década e,
ainda, das acusações envolvendo o empreendimento e as empreiteiras
responsáveis.Em 2018, em delação premiada, o executivo Dario de Queiroz Galvão Filho disse que o então
prefeito Gilberto Kassab (então no DEM, hoje no PSD) direcionou a licitação do
túnel, em 2011, para que a Galvão Engenharia vencesse. Em contrapartida, a
empreiteira teria doado R$ 1 milhão para o diretório nacional do DEM. À época,
a assessoria de Kassab disse que a licitação “ocorreu de forma lícita e
transparente” e negou irregularidades. “Essa é uma obra prioritária para o
prefeito [Ricardo Nunes]. Ele me ligou e falou: ‘Marcos, vamos retomar o túnel
Sena Madureira, é um compromisso meu ter essa obra até o final da gestão’. Por
isso que a gente pegou e colocou todos os esforços para conseguir retomar esse
contrato”, disse o secretário de Infraestrutura e Obras, Marcos Monteiro, em
agosto de 2022, em uma audiência pública para discutir o túnel.
Na ocasião, Monteiro
explicou que, como a suspensão do contrato foi prorrogada apenas até 2019, foi
necessário verificar a “questão legal”. “A gente fez consultas à Procuradoria
da prefeitura, à Controladoria, para nos certificar de que nós não teríamos
problemas na prorrogação do contrato. A Procuradoria nos deu um parecer de que
não haveria óbice em dar continuidade a esse contrato, desde que se comprovasse
a viabilidade financeira”, disse. A viabilidade financeira foi demonstrada,
segundo o secretário, com a atualização dos valores previstos pelo contrato em
2010, que eram de R$ 223 milhões, para valores de 2020, de R$ 366 milhões –
mantido o mesmo “desconto” dado anteriormente pelas empresas vencedoras. A
estimativa de uma nova licitação apontou para um custo de R$ 369 milhões. “A
gente entende que essa pequena diferença justifica a gente seguir com esse
mesmo projeto”, disse o secretário.
Pareceres da
Controladoria-Geral do Município (CGM), no entanto, colocam em dúvida se de
fato houve desconto à época da licitação. Uma sindicância do órgão investigou
licitações promovidas pela prefeitura e vencidas pela Galvão Engenharia e pela
Queiroz Galvão (rebatizada como Ayla Construtora) e apontou “indícios de
sobrepreço” nos pagamentos feitos às empresas durante a execução inicial do
contrato do túnel da Sena Madureira, em 2011. Em agosto, o controlador-geral do
município condenou a Ayla a pagar uma multa administrativa de R$ 5,57 milhões
por fraude na licitação de outra obra, mas alterou para advertência uma
penalidade que impediria a empresa de fazer negócios com a administração
pública por seis meses.
“A aplicação de
penalidade que impeça a interessada de relacionar-se com o Poder Público é
deveras gravosa considerando o ambiente de consensualidade no qual foi
realizado o acordo. Ademais, há que se considerar o princípio da preservação da
empresa em razão de sua função social como fonte geradora de serviços, empregos
e renda”, escreveu o controlador.
Já a Galvão Engenharia
também foi punida por condutas “anticompetitivas” e fraude em licitações da
prefeitura com uma multa de R$ 3,58 milhões. No último dia 14 de outubro, o
controlador-geral determinou que a Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbanas
e Obras (Siurb) tomasse as providências para a responsabilização da empresa,
“com vistas à declaração de sua inidoneidade”. Empresas declaradas inidôneas
não podem fazer contratos ou licitações com a administração pública.
Em maio deste ano, as
empresas tentaram mudar a composição do consórcio, mantendo a Ayla, mas
substituindo a Galvão Engenharia pela Engibras Engenharia. O pedido foi negado
pela SMT, atual responsável pela obra. A reportagem enviou questionamento ao
prefeito sobre a denúncia de propina e sobre as decisões da CGM. Na nota, a
prefeitura afirmou somente que “a intervenção foi retomada neste mês após
consulta técnica ao Tribunal de Contas do Município (TCM) e possui Projeto de
Compensação Ambiental (PCA) e nova avaliação de impacto à vizinhança, entre
outras autorizações e licenças”.
<><> Falta
de transparência
Curiosamente, as
placas públicas sobre a obra trazem o nome “Consórcio Sena Madureira” como
empresa responsável – e não Consórcio Galvão Engenharia e Ayla Construtora,
como informado, inclusive, em outras comunicações públicas da administração
municipal. Já o valor do empreendimento anotado nas placas é o de R$ 218,9
milhões – cifra de 2011. O valor atualizado da obra é de R$ 531 milhões.
<><>
“Parem a obra”
O impacto ambiental e
social da obra uniu diferentes grupos contra a construção do túnel, como
ciclistas, pessoas que vivem nos prédios do entorno, além dos moradores da
Sousa Ramos. “Estamos batalhando para que a obra pare, volte um passo atrás e
seja discutida com a população”, diz Eliana Barcelos, presidente da Associação
de Moradores da Vila Mariana. O abaixo-assinado promovido pela associação já
tem mais de 9 mil assinaturas. “Não é só uma obra rodoviarista datada”, diz
Lucian de Paula, arquiteto e urbanista que integra o Coletivo Metropolitano de
Mobilidade Urbana e fazia parte do conselho participativo da Vila Mariana.
“É uma desculpa para
expulsar uma das poucas comunidades que tem na Vila Mariana. Quando eu era
conselheiro, eu perguntei à subprefeitura quais eram os planos de moradia para
o bairro. Me responderam que, como tinha muito pouca pobreza, não precisava de plano
de habitação. [Como se quisessem dizer que] O bairro é bom, mas certas pessoas
não são boas o suficiente para morar nele.”
No último domingo
(13), moradores da região realizaram o terceiro ato contra a obra desde o
início de outubro. Munidos de faixas contra os cortes de árvores, os
manifestantes caminharam pela ciclofaixa e colaram cartazes nos postes da
região – no dia seguinte, os postes apareceram pintados de branco.
Deputados estaduais e
vereadores em exercício e recém-eleitos também questionam a obra – alguns deles
já acionaram o Ministério Público de São Paulo (MPSP), que, até o momento,
pediu esclarecimentos à prefeitura, mas não a interrupção do empreendimento. Pelo
menos três procedimentos no MPSP visam apurar eventuais irregularidades. Há
ainda um inquérito civil em trâmite na 6ª Promotoria de Justiça de Habitação e
Urbanismo desde 2022.
Apesar da retomada da
obra 15 anos depois da realização do estudo de impacto ambiental, a Secretaria
Municipal do Verde e do Meio Ambiente determinou que fosse feito apenas o
“estudo de viabilidade ambiental”, um documento menos trabalhoso, para atualizar
o licenciamento ambiental. O documento reconhece a existência de uma nascente
na área do empreendimento, o que tornaria o local uma Área de Preservação
Permanente (APP) pelo Código Florestal. A nota da prefeitura não respondeu à
pergunta sobre essa contradição.
Ao longo dos anos, os
moradores asfaltaram a rua do lote da comunidade e plantaram mais árvores na
área de proteção ambiental que hoje se tornou um canteiro de obras. Uma enorme
caçamba guarda os restos mortais das árvores abatidas. Boa parte do córrego já
começou a ser fechada. Nos últimos dias, sem explicações da administração, o
barulho cessou, menos funcionários passaram a circular, as máquinas foram
desligadas. Mas o estrago na área verde já foi feito. Resta saber o que
acontecerá com a Sousa Ramos.
Fonte: Por Rafael
Oliveira e Gabriel Gama, na Agencia Pública
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