Véus, cabelos longos e saias: o que a
Bíblia diz sobre a aparência das mulheres
No recém-lançado livro
Igrejas que Calam Mulheres, o pastor batista, teólogo e youtuber Yago Martins
dedica dois capítulos sobre a ideia, defendida por muitas denominações
religiosas cristãs contemporâneas, de que haveria uma espécie de etiqueta de
vestuário bíblico para as mulheres crentes.
Ele mesmo cita que até
hoje muitos pastores proíbem as mulheres de cortarem os cabelos, depilarem
axilas, pernas e partes íntimas, pintarem as unhas e usar maquiagem, brincos e
outros adornos. “Tais grupos estão ligados a um tipo de avivalismo de orações
fervorosas e intensas, mas também a uma cultura excessivamente intrusiva no que
diz respeito a questões de aparência”, critica Martins.
Entretanto, o pastor —
assumidamente conservador — argumenta na obra que ele concorda com os pontos de
que “vivemos em uma cultura guiada por padrões de moda que não são moralmente
neutros”, carregando “uma boa parcela de ódio a Deus” e afastados “de qualquer
sinal de moralidade”.
Além disso, ele pontua
que a Bíblia “não nos deixa alheios a algum padrão sobre como devemos nos
vestir”.
“Há passagens
conhecidas que mostram o impacto que o encontro com Jesus tem sobre o modo como
nos vestimos. Concordamos, no mínimo, que Deus não aprova a exposição pública
da nudez”, ressalta ele, no seu livro.
“A escritura fala de
forma mais geral sobre os perigos da vaidade, sobre uma preocupação exagerada
com a nossa aparência. E vai dar alguns padrões que não são muito específicos
mas são termos gerais também sobre a modéstia, que é a linguagem que a gente usa
para falar sobre como nos vestimos”, diz ele, à BBC News Brasil.
• Beleza e pecado
São muitos os trechos
bíblicos que associam cuidados com embelezamento a práticas consideradas
pecaminosas.
No segundo livro dos
Reis, Jezebel “pintou os olhos, arrumou os cabelos e sentou-se em frente a uma
janela” para seduzir Jeú. Em Provérbios, a mulher adúltera é descrita como a
que usa “roupas provocantes”.
O pastor Martins
lembra que no livro do Gênesis, o primeiro da Bíblia, “descobrimos que a roupa
foi criada por causa do pecado” pois “lemos que Adão e Eva estavam nus, e que a
falta de roupa não representava vergonha alguma”. É quando, conforme o texto bíblico,
o pecado lhes dá consciência da nudez e vergonha, então eles “costuraram folhas
de figueira umas às outras para se cobrirem”.
Na primeira das cartas
que enviou a Timóteo, o apóstolo Paulo manda “que as mulheres tenham discrição
em sua aparência”.
“Que usem roupas
decentes e apropriadas, sem chamar a atenção pela maneira como arrumam o cabelo
ou por usarem ouro, pérolas ou roupas caras. Pois as mulheres que afirmam ser
devotas de Deus devem se embelezar com as boas obras que praticam”, escreveu.
Em sua primeira carta,
Pedro também exortou que as mulheres não se preocupassem “com a beleza exterior
obtida com penteados extravagantes, joias caras e roupas bonitas”.
No livro Igrejas que
Calam as Mulheres, Martins ressalta que “as Escrituras não condenam o cuidado
com o corpo, nem criam padrões absolutos de vestimenta”, embora apontem “alguns
limites claros”.
“Não cabe a mim
determinar o tamanho da sua saia, ou algo desse tipo. Se Pedro e Paulo não
fizeram isso, eu não farei”, salienta o pastor. “De todo modo, as Escrituras
contêm algumas respostas para uma série de polêmicas sobre como nos vestimos”.
O caso das calças
versus saias é trazido por ele ao debate. Ele lembra que em muitos ambientes
conservadores até hoje mulheres são proibidas de usar calças, não apenas em
igrejas pentecostais como em outras protestantes e até mesmo em ambientes
católicos mais tradicionalistas.
“Na Bíblia não diz
qual o tamanho da saia e não fala se calça ou vestido são apropriados, até
porque são textos escritos há 2 mil anos, então não é um modelo que a gente
pode simplesmente trazer para cá”, salienta o teólogo
Em outras palavras, é
preciso cuidado para não cair no anacronismo. Calças eram condenadas quando
eram peças que não faziam parte do vestuário feminino e “o sentido das roupas
muda com o passar das eras”.
“A Bíblia refere-se a
um tempo e a uma cultura ou melhor culturas diferentes. Não se pode tomar isso
como mandato divino. A vestimenta é expressão de tempos e culturas em mutação”,
comenta à BBC News Brasil a filósofa e teóloga feminista Ivone Gebara, freira
agostiniana e autora de, entre outros livros, As Incômodas Filhas de Eva na
Igreja da América Latina.
• Véu para casadas
Véus e cabelos
compridos são outros pontos comumente associados às crentes de denominações
mais tradicionalistas. Não só nas protestantes.
A Igreja Católica
determinava, no Código de Direito Canônico de 1917, que as mulheres deveriam
“cobrir suas cabeças e vestir-se com modéstia, especialmente quando se
aproximam da mesa do Senhor”.
O artigo deixou de
vigorar no código de 1983 — mas a praxe já estava em desuso desde os anos 1960,
com o Concílio Vaticano 2º.
Martins lembra,
contudo, que setores conservadores do catolicismo ainda recomendam o véu e a
peça é necessária em encontros de mulheres com o papa.
No segmento
protestante, há diversas denominações que impõem que os cabelos sejam cobertos.
O teólogo cita a Congregação Cristã do Brasil, que se tornou conhecida como
“igreja do véu”. Segundo ele, em livreto oficial da instituição há a
determinação que “sempre que a mulher orar ou profetizar deve estar com a
cabeça coberta”.
Na Bíblia, Paulo diz
na sua primeira carta aos Coríntios que “toda mulher que reza ou profetiza de
cabeça descoberta desonra a sua cabeça” e “se a mulher não usa véu, mande
raspar a cabeça”.
O pastor comenta que
há uma explicação sócio-histórica para isso. Segundo ele, no contexto
grego-romano, as mulheres casadas usavam sobre a cabeça um véu para representar
que tinham marido e não estavam sexualmente disponíveis. E raspar a cabeça era
um tipo de punição — por prostituição ou adultério.
“O véu era um sinal
público de que a mulher era casada. Tinha um significado de fidelidade ao
marido, era um item social daquela cultura como usar uma aliança de casamento
hoje em dia”, compara Martins.
“É necessário entender
o contexto da comunidade de Corinto”, acrescenta à BBC News Brasil a teóloga,
filósofa e biblista Zuleica Aparecida Silvano, freira da Congregação das Filhas
de São Paulo, professora na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e integrante
da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica.
Ela lembra que,
naquele espaço, havia nas casas e nos templos as chamadas “prostituições
sagradas”, que eram “os cultos das deusas de fecundidade e outras práticas”. “E
Paulo não desejava que a comunidade primitiva cristã fosse confundida com esses
cultos”, explica Silvano.
Além disso, a teóloga
ressalta que “Paulo é filho de sua cultura e as mulheres casadas deveriam
cobrir seus cabelos, como um sinal de que eram casadas, quando estavam expostas
ao público”.
Professor na
Universidade Presbiteriana Mackenzie, o historiador e teólogo Gerson Leite de
Moraes também enfatiza a importância da compreensão do contexto da missiva
paulina.
“Corinto [na atual
Grécia], naquela época, era uma cidade portuária com muitas meretrizes. E o véu
era uma maneira de distinguir as mulheres cristãs dessas mulheres”, afirma
Moraes, à BBC News Brasil.
“Ele [Paulo] faz uma
observação sobre o uso do véu, dá a opinião dele, diz que está repassando uma
tradição.”
O professor comenta
que se trata de “uma passagem muito específica dentro de um contexto muito
específico”.
“Nas cartas pastorais,
os autores pedem para as mulheres se vestirem de forma sóbria”, pontua a
biblista.
Sobre o trecho da
carta a Timóteo, por sua vez, Moraes interpreta que a orientação para que as
mulheres não usem adereços ou não se arrumem de modo a chamar a atenção, “pode
ter uma leitura mais sexual”.
“Ele parece dizer que
essas mulheres podem excitar os homens, então seria melhor que não fosse
assim”, analisa.
• Nas igrejas de hoje
A biblista Silvano
defende a liberdade de cada denominação. “Penso que cada religião é livre para
escolher o modo de se vestir dependendo de seus cultos, como os presbíteros na
nossa igreja ou as congregações que escolhem seus hábitos. Isso não é o mais importante,
mas sim a prática da justiça, do respeito, da igualdade, do não clericalismo”,
comenta ela.
Sobre as restrições
impostas às mulheres, Moraes compara as diferentes vertentes do cristianismo.
“Grupos mais consolidados como protestantismo histórico vão lendo essas
passagens mas a força do tempo vai impondo mudanças e eles vão aceitando”,
comenta.
“Os grupos que vêm
depois, mais sectários, geralmente se agarram à letra fria da lei, ao que está
escrito. Aí vários grupos que nasceram do pentecostalismo são apegados a isso,
a esses usos e costumes que eles diziam ser doutrinas.”
Já no
neopentecostalismo, Moraes acredita que essas restrições tendem a cair por
terra. “Vemos mulheres neopentecostais explorando linhas de maquiagem,
vestimentas e cabelos de todo o tipo, sem uma regra específica”, diz ele.
Moraes acredita que
hoje o que prevalece é muito mais um costume específico como caráter
identitário. “Uma forma de distinção: você vê uma mulher com um tipo de cabelo
e automaticamente sabe que ela pertence a determinado segmento religioso”,
afirma ele.
• Elogios aos cuidados
O pastor Martins
também ressalta passagens bíblicas em que rituais de beleza foram enfatizados.
No livro de Ester,
consta que as virgens do rei passavam por um ritual de “doze meses prescritos
de tratamentos de beleza: seis meses com óleo de mirra e seis meses com
perfumes e cosméticos”.
Diversas outras
personagens do Antigo Testamento são descritas por predicados que indicam
beleza e cuidados pessoais, como Sara, Rebeca, Betsabé e Tamar.
O religioso lembra
ainda que no livro do profeta Isaías, quando ele descreve a promessa divina de
punição ao povo pecador, ele usa como imagem uma mulher que é desprovida dos
enfeites — tiaras, perfumes, anéis, vestidos, bolsas, etc. “No texto profético,
perder os adornos é símbolo de maldição e desgraça”, explica Martins.
Fonte: BBC News Brasil
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