Como bolsonarista ameaça interromper 20
anos de prefeituras de centro-esquerda, em Fortaleza
Um candidato
bolsonarista de apenas 26 anos, com forte presença nas redes sociais e jingles
virais, ameaça interromper duas décadas de hegemonia da centro-esquerda em
Fortaleza, capital que nas últimas cinco disputas municipais elegeu prefeitos
de PT, PSB ou PDT.
O deputado federal
André Fernandes (PL), que na Câmara dos Deputados se destaca entre os
principais apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, chegou ao segundo turno
moderando seu discurso e "escondendo" essa aliança na reta final da
campanha, apontam cientistas políticos do Ceará ouvidos pela reportagem.
A estratégia, explicam
os entrevistados, foi necessária para furar a bolha bolsonarista e atrair
outros perfis de eleitor, em uma cidade em que o presidente Luiz Inácio Lula da
Silva derrotou Bolsonaro com certa vantagem na eleição de 2022 (58,18% a 41,82%).
Mas, apesar do
histórico lulista de Fortaleza, Fernandes terminou na frente no primeiro turno,
com 40% dos votos válidos, contra 34% do segundo colocado, o mais experiente
Evandro Leitão (PT), de 57 anos, deputado estadual e presidente da assembleia
legislativa cearense, que se licenciou do cargo para disputar a prefeitura.
Já as pesquisas de
segundo turno têm dado, em sua maioria, empate técnico, com Fernandes
numericamente à frente. O levantamento do Instituto Datafolha divulgado nesta
quinta-feira (17/10), por exemplo, deu o candidato do PL com 45% das intenções
de voto, e o petista com 43% — a margem de erro é de três pontos percentuais.
A campanha petista tem
adotado a estratégia oposta a do bolsonarista, exibindo ao máximo o apoio de
Lula, que já voltou à cidade para ato de campanha no segundo turno.
Outro importante cabo
eleitoral tem sido o ex-governador do Ceará e atual ministro da Educação,
Camilo Santana (PT).
Os analistas
entrevistados, porém, dizem que não está claro se a estratégia de colar em Lula
será capaz de virar o jogo.
Para eles, a liderança
de Fernandes no primeiro turno reflete um desejo de mudança que domina a
eleição em Fortaleza, em contraste com a alta taxa de reeleição registrada no
primeiro turno país afora (81% dos prefeitos que tentam um segundo mandato
foram confirmados no cargo).
Segundo o cientista
político Cleyton Monte, diretor de Extensão e Inovação do Instituto Centro de
Ensino Tecnológico (Centec), há um desgaste natural do campo da centro-esquerda
após anos governando Fortaleza e o Ceará, agravado pela piora da segurança pública
e o mal desempenho do último prefeito, José Sarto (PDT), que não chegou ao
segundo turno — um dos motivos foi a criação de uma impopular taxa do lixo,
para custear a limpeza urbana.
Monte nota que a
direita vem se fortalecendo na capital e na região metropolitana desde o
movimento pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016, processo
que deu espaço para a ascensão de figuras como Capitão Wagner (União Brasil),
que teve votações expressivas nas duas disputas anteriores pela prefeitura, e
André Fernandes.
O candidato do PL
ganhou notoriedade ainda adolescente, com vídeos de humor controverso no
YouTube, pelos quais chegou a se desculpar na campanha deste ano, e estreou na
política como deputado estadual mais votado em 2018. Dois anos depois, chegou à
Camara Federal também como o mais votado do Ceará.
O Estado vinha
dominado, desde 2007, pela aliança entre o PT e os Ferreira Gomes — família dos
ex-governadores e irmãos Ciro Gomes (PDT) e Cid Gomes (PSB), que romperam após
as eleições de 2022, abrindo uma crise no domínio político cearense. Ainda
assim, o Ceará segue sob comando do PT, com Elmano de Freitas.
Já Fortaleza, passou
por dois governos petistas com Luizianne Lins (2005-2013), dois governos de
Roberto Claúdio (2013-2020), que transitou por PSB, PROS e PDT durante sua
gestão, e um mandato de José Sarto (PDT), que fracassou na tentativa de
reeleição.
Numa amostra clara do
racha nesse campo, Roberto Cláudio declarou apoio a Fernandes no segundo turno,
enquanto Sarto ficou neutro.
"O discurso da
violência urbana é muito impactante em Fortaleza, uma cidade atravessada pela
territorialização de facções criminosas. Isso criou um desgaste grande desse
grupo de centro-esquerda que governa o Ceará", analisa Cleyton Monte.
"Esse desgaste
possibilitou a ascensão de nomes como o André Fernandes, uma figura advinda das
redes sociais, que tem apelo com o eleitor jovem e também uma articulação com
igrejas, vindo de família evangélica", ressalta.
O candidato do PL
supera 6 milhões de seguidores somando Instagram, TikTok, Facebook, Youtube e
Twitter, enquanto o petista tem cerca de 250 mil considerando as mesmas
plataformas.
• Bolsonaro abre campanha e some: 'o
candidato sou eu!'
Enquanto Lula é
frequente na propaganda eleitoral petista e já compareceu a comício de Leitão
no segundo turno, Bolsonaro participou apenas do primeiro ato de campanha de
Fernandes, em agosto, uma motociata pela cidade.
Naquele momento, nota
a cientista política Monalisa Torres, professora da Universidade Estadual do
Ceará (UECE) e pesquisadora do Laboratório de Política, Eleições e Mídia da
Universidade Federal do Ceará (UFC), seu apadrinhamento era importante para o candidato
do PL atrair, por exemplo, eleitores do Capitão Wagner, candidato do União
Brasil que liderou o campo conservador em eleições anteriores e terminou em
quarto lugar neste ano.
Depois, ressalta a
professora, a estratégia foi de "descolamento do Bolsonaro" e foco em
propostas para a cidade.
"Ele tenta evitar
a nacionalização [da eleição local], exatamente o oposto do que a campanha do
Leitão vem fazendo", destaca.
A campanha petista tem
reforçado a pecha de candidato bolsonarista do adversário, lembrando sua
postura contra a vacinação obrigatória na pandemia de covid-19; a defesa da
cloroquina contra a doença, apesar da ciência não apontar sua eficácia; e o
episódio em que ele foi condenado a indenizar a jornalista Patrícia Campos
Mello, do jornal Folha de S.Paulo, após divulgar falsamente que ela teria
oferecido favores sexuais em troca de informações jornalísticas negativas para
o então presidente Bolsonaro.
Fernandes também
chegou a ser investigado, sob suspeita de instigar os atos de 8 de janeiro,
quando bolsonaristas inconformados com a eleição de Lula invadiram as sedes dos
Três Poderes em Brasil, mas a Procuradoria-Geral da República depois se
manifestou pelo arquivamento do caso.
"Eu quero é que o
André Fernandes mostra a cara e mostre o Bolsonaro aqui em Fortaleza",
provocou Camilo Santana, ao lado de Leitão, logo após o resultado do primeiro
turno.
Ao que Fernandes
respondeu em suas redes sociais com um vídeo intitulado: "O candidato sou
eu!".
Na gravação, que
reproduz trecho de uma entrevista sua ao jornal local Jangadeiros, o candidato
do PL desconversa sobre eventual participação de Bolsonaro na reta final de sua
campanha e rebate Santana: "Eu desafio o ministro a deixar o Evandro [Leitão]
fazer a campanha dele sozinho, sem três bengalas [em referência a Lula, Santana
e Elmano de Freitas], para mostrar o André no meio do povo e Evandro no meio do
Povo".
A acusação das
"três bengalas" contra o petista têm sido a resposta padrão do
bolsonarista quando cobrado sobre seu padrinho. Leitão, por sua vez, responde
reforçando suas alianças.
"Muito me orgulha
estar no projeto de Lula, Camilo e Elmano, que são pessoas reconhecidas. Em um
ano e oito meses, o governador Elmano, juntamente com o governo federal, com o
presidente Lula, retirou da linha da extrema pobreza 600 mil cearenses",
disse, no primeiro debate do segundo turno, na TV Bandeirantes.
• Polarização x propostas para a cidade
Para a cientista
política Monalisa Torres, a estratégia de campanha de Leitão de colar seu nome
ao de Lula e de Camilo Santana foi fundamental para alavancá-lo na corrida
eleitoral e colocá-lo no segundo turno.
Ela acredita, no
entanto, que isso pode ser insuficiente para ganhar a disputa.
Na leitura de Torres,
Fernandes foi bem-sucedido no primeiro turno justamente ao evitar a polarização
nacional entre Lula e Bolsonaro e focar sua campanha em propostas com apelo
entre os mais pobres, em áreas como saúde, educação e segurança. Ele foi o mais
votado nas periferias, no primeiro turno.
"Não estou
entrando no mérito das propostas, se realmente são boas soluções para os
problemas da população, mas vejo que, ao focar num tom mais propositivo, a
campanha dele conseguiu furar a bolha bolsonarista", analisa.
"É um nome que
chega com muita força e o PT vai ter dificuldade de virar essa votação
aqui", disse ainda.
Entre as propostas de
Fernandes está parcerias com clínicas e creches privadas para ampliar a oferta
de atendimento à população, em vez de ampliar o número de unidades públicas,
como costuma defender a esquerda.
Ele também traz outras
pautas tipicamente bolsonaristas, como intensificar o uso da Guarda Municipal
na segurança pública ou combater uma suposta indústria de multas no trânsito.
Uma das propostas é
acabar com a penalidade para motoqueiros que andam com viseira levantada, sob o
argumento de que Fortaleza é uma cidade quente – embora a infração esteja
prevista no Código Nacional de Trânsito, uma lei federal que só pode ser
alterada pelo Congresso.
A reivindicação vem de
uma categoria de trabalhadores de renda baixa e com forte interlocução com o
campo bolsonarista.
Por outro lado, há
temas em que Fernandes reviu seu posicionamento, se afastando da agenda da
direita mais radical.
Um exemplo foi sua
fala a favor das vacinas no primeiro debate do segundo turno, na TV
Bandeirantes, em contraste com sua tentativa de proibir a vacinação obrigatória
durante a pandemia de covid-19, com um projeto de lei quando era deputado
estadual, época em que chegou a chamar o então governador de São Paulo, João
Dória, de "ditador a serviço da China" por trazer o imunizante
Coronavac ao país.
Ao ser cobrado agora
sobre o tema, respondeu: “Eu me vacinei, e não só me vacinei como você que está
me assistindo sabe que também aos finais de semana, os postos de saúde serão
abertos para fazer uma ampla imunização de acordo com todo o programa do Ministério
de Saúde, vacinando principalmente os grupos de risco, crianças e idosos”,
afirmou.
Outro exemplo foi sua
decisão de apoiar a educação sexual nas escolas, algo que costuma sofrer
oposição do campo conservador. Segundo ele próprio relatou na campanha, antes
via o tema dentro de uma ótica de "ideologização de gênero". Depois,
passou a entender como uma política importante para prevenção de abusos
sexuais.
"Eu não tô
falando aqui sobre chegar para nossas crianças para dizer 'você vai ser isso,
você pode ser aquilo'. O que eu tô dizendo é: 'ei, criança, se você passar isso
aqui, é um abuso, denuncie, fale, encontre os sinais'. Da mesma maneira, os
professores têm que estar atentos para perceber esses sinais, que às vezes é
difícil a criança saber verbalizar", afirmou, em entrevista ao Diário do
Nordeste, ao explicar sua proposta de criar o programa Criança Blindada.
Em entrevista à BBC
News Brasil, o coordenador da campanha petista, o deputado estadual Guilherme
Sampaio (PT), contesta o argumento de que Fernandes seja um candidato mais
propositivo que Leitão.
"Do ponto de
vista propositivo, o André pode ser muito versátil em fazer proposta para
lacrar na rede social, mas, do ponto de vista de conteúdo e capacidade de
tornar políticas públicas benefícios concretos para a população, nada se
compara a capacidade do Evandro", disse, destacando a experiência do
aliado, que foi secretário do Trabalho e Desenvolvimento Social de 2011 a 2013,
no governo Cid Gomes.
Sampaio reconhece que
o primeiro turno deixou claro um desejo de mudança do eleitorado, mas reforça
que Sarto rompeu com o PT em 2022, colocando o Leitão como uma mudança de rumo
em relação à atual gestão.
"O Evandro é a
continuidade do que é bom, essa é a realidade. O Evandro é o Bolsa Família, é o
programa Ceará Sem Fome, que vai ter o Fortaleza Sem Fome [em seu eventual
governo]. O André representaria um retorno do que não presta. O retorno da ameaça
de privatização da educação, da ameaça de desmonte do Sistema Único de Saúde,
da ameaça à cultura, que foi extinta no governo Bolsonaro", disse ainda
Sampaio.
Algumas propostas do
petista, porém, se assemelham com as de Fernandes, como a promessa de ampliar o
uso da Guarda Municipal na segurança pública e a intenção de firmar parcerias
com clínicas de saúde privadas.
As propostas do
petista incluem também a criação do programa Pé-de-Meia municipal, que pagaria
um benefício para alunos do 9º ano concluírem seus estudos, iniciativa similar
à lançada pelo governo Lula neste ano.
Sua campanha promete,
ainda, ampliar o passe livre estudantil para os fins de semana, criar um
aplicativo para marcar consultas e emitir receitas médicas online, zerar filas
nas creches e estabelecer faixas exclusivas para motos.
A BBC News Brasil
também solicitou entrevista à campanha de Fernandes, mas não teve retorno até a
publicação desta reportagem.
Fonte: BBC News Brasil
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