As 3 viajantes esquecidas pela História que
nos abriram as portas para o Egito antigo
Em 1864, a escritora
de viagens inglesa Lucie Duff Gordon (1821-1869) morava em sua casa no topo do
Templo de Luxor, no Egito.
De pé, ela olhava pela
janela para a margem ocidental do rio Nilo, em direção às montanhas da Líbia.
Gordon apreciava o sol atingindo seu rosto, enquanto ouvia a mistura de sons
daquele ambiente – os cães latindo, os burros zurrando e os camelos blaterando.
Ela sentia saudades da
família, que havia deixado em Londres enquanto convalescia no clima quente do
deserto do Egito, para tratar dos sintomas da sua tuberculose.
Gordon morava na
Maison de France (Casa da França, em português), construída pelos militares na
região, perto de 1815. Ela adorava seu "Palácio de Tebas", como ela o
chamava, e escrevia cartas para a família quase todos os dias, na sua varanda.
Suas Cartas do Egito
traziam ricos detalhes da época que ela passou no país e foram publicadas um
ano depois, na forma de livro.
As cartas contêm
expressivos detalhes sobre a política e os costumes religiosos egípcios da
época, além do relacionamento de Duff Gordon com seus vizinhos locais. O livro
se destacou como crônica sociocultural de uma época em que a maioria das
mulheres escrevia apenas ficção.
O exemplo de Duff
Gordon, uma mulher britânica que viajou e morou sozinha no Egito, logo
inspiraria outras mulheres viajantes a repetir sua experiência.
Pouco mais de uma
década depois, a romancista Amelia Edwards (1831-1892), incentivada pelas
experiências de Lucie Duff Gordon, visitou o Egito e publicou um livro de
viagem que se tornaria um best-seller, chamado Mil Milhas Nilo Acima (Ed.
Juruá, 2024).
E a obra de Edwards,
por sua vez, despertou o interesse da rica viajante americana Emma Andrews
(1837-1922), que fez avançar a arqueologia no Egito no início do século 20. Ela
financiou a escavação de dezenas de tumbas e muitas delas são estudadas ativamente
até hoje.
Embora tenham viajado
inicialmente como turistas, as três mulheres influenciaram profundamente a
egiptologia, que é o estudo científico do Egito antigo. Com isso, elas formaram
as bases do nosso conhecimento sobre uma das civilizações mais importantes da
Antiguidade – e também incentivaram o turismo para o Egito na virada do século
20.
• As viagens de Edwards
Entre novembro de 1873
e março de 1874, Amelia Edwards e sua parceira Lucy Renshaw (1833-1919) subiram
o Nilo em uma casa flutuante, o barco Philae.
Elas visitaram todos
os locais recomendados pelo guia de viagem de Murray – as pirâmides de Gizé; as
pirâmides de Saqqara, o cemitério de Beni Hasan; o templo de Dendera; os
templos de Luxor, o Vale dos Reis e outros túmulos em Tebas; e sítios
arqueológicos em Esna, Assuã e Abu Simbel.
Na época, ainda não
existiam trabalhos de preservação daqueles locais. Por isso, os lugares que
elas visitaram, em sua maioria, estavam degradados. Mas Edwards queria mudar
esta situação.
As mulheres passaram
várias semanas em Luxor naquele mês de março. Edwards visitou a antiga casa de
Duff Gordon. Mas, quando viu a pilha de tijolos no topo do templo, ela ficou
abalada com o estado do local.
Depois de enfrentar
dificuldades após vários anos de enchentes do Nilo, o venerado "palácio de
Tebas" de Duff Gordon mal tinha condições de moradia.
Edwards escalou o
interior da casa e foi até a janela, para olhar sobre o rio e para a planície
de Tebas no lado oposto. E, ao observar o que via Duff Gordon, Edwards escreveu
que aquela visão "decorava o quarto e tornava aquela pobreza esplêndida".
Ela sonhou em poder
viver ali. "Como eu gostaria de ter aquela vista maravilhosa, com sua
infinita beleza de luzes, cores e espaço, sua história e seu mistério, sempre
na minha janela."
Aquela foi a única
viagem de Edwards ao Egito. Mas seu diário de viagem poético atraiu incontáveis
mulheres viajantes ao país. Publicado originalmente em 1877, Mil Milhas Nilo
Acima se tornaria um dos livros de viagem mais vendidos de todos os tempos.
Parte diário de
viagem, parte história bem pesquisada, a narrativa vibrante de Edwards descreve
o cenário ao longo do Nilo. Mas, ao contrário do guia de Murray, Edwards não se
limitou a recomendar que os visitantes parassem para observar os locais e monumentos.
Ela defendeu sua preservação para as gerações futuras.
A popularidade da obra
fez com que as pirâmides de Gizé, o Vale dos Reis e outros túmulos que hoje são
famosos passassem a ser paradas essenciais dos viajantes no Egito, nos 50 anos
seguintes. Mas o mais importante é que ele chegou aos acadêmicos de tal maneira
que acabou por formar as bases dos estudos e da recepção aos turistas naqueles
locais até hoje.
O sucesso do livro de
Edwards a levou a ser uma das criadoras da Sociedade de Exploração do Egito
(EES, na sigla em inglês), em 1882. Inspirada pelos objetivos de Edwards, de
promover a conservação dos monumentos do país, a EES levantou dinheiro para as escavações
oferecendo assinaturas.
Os seus assinantes – a
maioria, britânicos de classe média – recebiam relatórios sobre sítios
arqueológicos e escavações todos os anos. Os relatórios continham mapas,
listas, desenhos e novos estudos acadêmicos. Eles educaram e informaram o
público sobre o Egito antigo por cerca de 150 anos.
• Turismo histórico
Mil Milhas Nilo Acima
também estimulou e se beneficiou, ao mesmo tempo, do desenvolvimento de pacotes
de viagens oferecendo turismo arqueológico.
A partir de 1855, o
empresário inglês Thomas Cook (1808-1892) e a companhia de viagens que levava
seu nome começaram a oferecer pacotes de viagens completos pela Europa.
Populares junto à
classe média alta e entre os aristocratas, esses pacotes incentivavam as
pessoas a viajar para destinos como Atenas, na Grécia, e Roma, na Itália. Os
turistas não só exploravam a cultura contemporânea, mas também visitavam os
monumentos antigos para aprender sobre sua importância histórica.
O argumento era que,
já que você se dispôs a gastar tanto dinheiro em uma viagem, deveria também
aprender com ela e apoiar a economia local.
A empresa de Cook se
expandiu para o Egito em 1869. Com isso, o turismo arqueológico no norte da
África ficou disponível para o grande público – e para as mulheres que
desejassem viajar sozinhas com segurança.
No final dos anos
1880, a empresa de Cook levava mais de 5 mil pessoas para subir o Nilo todos os
anos, seguindo de perto o itinerário de Edwards. E, graças à popularidade dos
seus pacotes, Thomas Cook controlava as viagens de navio pelo Nilo para todos os
visitantes.
Em 1889, 15 anos
depois que Amelia Edwards deixou o Egito, Emma Andrews e seu parceiro, Theodore
Davis (1837-1915) – dois milionários americanos e colecionadores de arqueologia
– chegaram ao país com uma cópia do livro de Edwards e diversos folhetos turísticos
de Cook.
O casal era membro da
filial americana da EES, que havia se expandido para os Estados Unidos poucos
anos depois da fundação. Inspirados pelo livro de viagem de Edwards, eles
rapidamente alugaram e equiparam uma casa flutuante particular para sua
primeira viagem subindo o rio.
O livro Mil Milhas
Nilo Acima e os folhetos de Cook guiaram o casal durante sua viagem de ida e
volta pelo Nilo. Eles pararam em todos os locais sugeridos por Edwards e,
depois, por Cook.
Como Duff Gordon e
Edwards antes deles, o casal se apaixonou imediatamente pelo Egito. Eles
viajariam pelo Nilo todos os anos, nos 25 anos seguintes.
Andrews e Davis eram
turistas arqueológicos por excelência. Membros da classe alta, eles desejavam
passar férias e também aprender sobre os locais antigos que encontravam. Eles
compravam artefatos antigos e reuniram enormes coleções.
Andrews sofreu a
influência das suas próprias viagens e do incentivo de Edwards no seu diário de
viagem: "Estamos sempre aprendendo e sempre há mais para aprender; estamos
sempre buscando e sempre há mais para encontrar."
De 1900 até sua saída
do Egito, em 1914, Andrews e Davis pagaram e escavaram pessoalmente entre 25 e
30 túmulos no Vale dos Reis. Suas pesquisas arqueológicas se encontram entre as
mais importantes do país.
• Os bisavós de Tutancâmon
As leis de escavação
do Egito na época determinavam que a maioria dos artefatos seria depositada no
Museu do Cairo, enquanto os objetos duplicados seriam de propriedade privada do
financiador ou do arqueólogo.
Em 1905, o casal e sua
equipe encontraram a tumba nº 46, de Yuya e Thuya, pais da rainha Tiye (a
principal esposa do faraó Amenófis 3º) e bisavós do faraó Tutancâmon.
Na época, aquela era a
tumba mais preservada já encontrada no Egito, com a maior parte do equipamento
funerário ainda no seu interior. Sua deslumbrante máscara funerária está em
exposição no Cairo até hoje e sua cadeira intacta – apenas a segunda já encontrada
– fica bem ao lado deles.
Os artefatos são
importantes, mas os diários de Andrews são fundamentais para o nosso
conhecimento sobre os sítios arqueológicos. Seus registros fornecem um relato
detalhado das atividades do casal por um quarto de século.
Ela contou
detalhadamente sobre suas escavações, com mapas e relatos diários dos
visitantes e dos artefatos descobertos. Davis incluiu grande parte dos diários
de Andrews nos seus próprios registros publicados, sem oferecer os créditos
devidos.
Andrews incluiu nos
seus relatos as pessoas que haviam sido ignoradas por tantos escritores homens:
trabalhadores egípcios, negociantes de antiguidades, capitães de navios e sua
tripulação. Sua perspectiva foi fundamental para formar as bases do nosso conhecimento
sobre séculos da história do Egito.
O legado de Andrews
também sobrevive no Museu Metropolitano de Arte de Nova York, nos Estados
Unidos. Ela e Davis ofereceram grande parte das suas coleções – mais de 1,6 mil
artefatos egípcios – e de suas fortunas para o museu.
Todos os anos, milhões
de visitantes observam os artefatos, como os vasos canópicos da controversa
tumba KV 55. As más práticas de escavação de Davis fizeram com que, até hoje,
os arqueólogos não consigam saber ao certo de quem eram os restos mumificados
no seu interior.
Existe também uma
garrafa d'água decorada e restaurada da procissão funerária do rei Tutancâmon,
um dos poucos artefatos do faraó atualmente fora do Egito.
O trabalho de Andrews
fez com que estes fragmentos da vida e da morte no Egito antigo ficassem
acessíveis para acadêmicos e estudantes. Eles oferecem ao Ocidente uma rara
visão de como os antigos egípcios homenageavam seus mortos.
Edwards no seu diário
de viagem.
Nossa fascinação e
conhecimento atual sobre o Egito antigo se deve, em grande parte, a este trio
de mulheres esquecidas.
Da mesma forma que
ocorreu com seus colegas homens, o trabalho das três mulheres também enfrentou
controvérsias. Elas eram pessoas relativamente abastadas, que viajaram, moraram
no Egito e se beneficiaram profissionalmente do país, levando artefatos históricos
para o exterior.
Ainda assim, seus
legados frequentemente ignorados criaram as bases da egiptologia moderna,
influenciando todo o nosso conhecimento sobre o mundo antigo.
Fonte: BBC Travel
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