O hidrogênio "verde", outra falsa
solução
Inspirados na lenda de
Prometeu, os humanos não param de buscar como controlar o fogo, que foi um
presente dos deuses. Imitando o deus grego, repetidas vezes, os humanos
tentamos entrar na oficina de Hefesto e Atena no Monte Olimpo para roubar o
fogo e controlar a energia, agora com o sonho de torná-la limpa e, até mesmo,
inesgotável.
A mensagem é clara e
atraente. O hidrogênio – o elemento químico mais abundante na natureza – pode
ser usado como combustível. Ele tem várias vantagens em relação aos de origem
fóssil e até mesmo à energia das baterias de lítio: é mais potente; é mais respeitoso
com a natureza do que os combustíveis convencionais – o único resíduo que
produz é vapor de água – e é mais eficaz que a eletricidade – um veículo a
hidrogênio recarrega em cinco minutos –, afirmam os especialistas.
O hidrogênio é obtido
em diferentes processos com impactos distintos, e cada um deles tem uma cor
atribuída. O hidrogênio rosa é produto da energia nuclear. O azul é produto da
industrialização do gás com captura de carbono. E o verde é o resultado da eletrólise:
um processo que separa o hidrogênio da água usando energia elétrica gerada pelo
vento ou pela radiação solar.
O hidrogênio verde,
livre de emissões de gases de efeito estufa (GEE), é, atualmente, a nova
estrela da economia “verde” a nível global. O hidrogênio verde aparece agora,
segundo a propaganda que o promove, como “o combustível do futuro”. Ele vai nos
ajudar a resolver os problemas derivados da carbonização da atmosfera. Nesse
contexto, está sendo feita uma campanha poderosa tanto no Norte quanto no Sul
global para que as sociedades adotem entusiasticamente essa proposta.
Como alerta o Pacto
Ecosocial Intercultural do Sul @PactoSur, composto por um grupo de referências
e organizações ambientais e sociais de toda a América Latina, “o hidrogênio
verde é uma falsa solução”. Tanto é assim que começam a surgir as falhas desta propaganda
promissora. Na Argentina, por exemplo, um projeto de grande envergadura que
seria conduzido pela empresa australiana Fortescue em Río Negro parece ter
caído em desgraça, apesar de o governo provincial ter cedido uma grande área de
terras públicas e adaptado – e muito – a legislação em favor da multinacional e
em detrimento dos direitos das comunidades da província.
Perguntemo-nos por
que, se aparentemente tem tantos benefícios, existem elementos que não se
encaixam no discurso que o promove. Como ponto de partida, reconheçamos que o
hidrogênio verde foi pensado para atender às demandas energéticas de sociedades
que afirmam se afastar da carbonização da atmosfera sem utilizar combustíveis
fósseis, mas que não propõem uma mudança estrutural.
Aqui surge o problema.
Para obter o hidrogênio verde, são necessárias atividades extrativas e
produtivas de grande escala. São várias fases: é preciso dessalinizar a água;
há um processo de eletrólise (que consome energia); é necessário armazenar o
hidrogênio verde e transportá-lo. Isso será feito em regiões do Sul global; na
América Latina, no Chile e na Argentina; na África, na África do Sul e na
Namíbia. Em todos estes locais há projetos gigantescos para atender à demanda
de energia dos países do Norte global, que, ao utilizarem esses recursos
energéticos, sustentarão o bem-estar desses países, sacrificando o de outros,
sejam seres humanos ou a natureza.
Isso gerará problemas
muito sérios em nossas terras. Vai aumentar o estresse ecológico em regiões
historicamente afetadas pelo extrativismo mineral, petrolífero e outros, e
afetará regiões ainda não prejudicadas.
Aparentemente, é
simples a obtenção do hidrogênio porque se utilizaria um recurso abundante,
supostamente interminável, a água. Sobretudo a água do mar, embora também haja
projetos com água doce em regiões afetadas pelo estresse hídrico. A água do mar
precisa ser dessalinizada para remover os sais que afetam a geração do
hidrogênio verde. Em seguida, ocorre o processo de eletrólise da água para
obter o hidrogênio. Isso é feito em grande escala.
Todo esse processo
exige grande quantidade de energia, e o que se pretende utilizar são energias
eólica e solar, que, por sua vez, têm graves impactos ambientais pela demanda
de madeira para as pás dos rotores que utilizam o vento ou pelas vastas extensões
necessárias para instalar os moinhos de vento ou as fazendas de painéis
solares, assim como os minerais empregados em ambos os casos. Em seguida, há um
problema sério: é preciso armazenar esse hidrogênio e transportá-lo. Para isso,
são necessárias infraestruturas gigantes e muito caras; portos para carregar o
hidrogênio, portos para recebê-lo, com enormes custos de transporte, pois
sempre há uma perda significativa de combustível.
Aceitemos: é
indispensável descarbonizar a atmosfera. Mas uma transição para energias limpas
não pode se tornar uma desculpa para continuar reproduzindo as relações de
subordinação de nossos países às economias do Norte global. Com essa transição
energética corporativa, abre-se a porta para uma espécie de colonialismo verde.
Nossos países continuarão sendo territórios de sacrifício, verdadeiros
acampamentos de onde se extraem os recursos para sustentar o bem-estar de uns
poucos grupos da população mundial, principalmente do Norte global. Mas, não
nos esqueçamos que, também, em nossos países, as elites dominantes vivem dentro
do que se conhece como o modo de vida imperial, que é propagado como alcançável
para todos os habitantes: outra falsa promessa da modernidade capitalista.
A transição energética
corporativa pretende substituir os combustíveis fósseis por outras fontes
energéticas sem afetar as estruturas de produção e consumo do capitalismo
global. No final, estamos vendo que essa transição energética corporativa não
está resolvendo nem mesmo o problema de diminuir o consumo de combustíveis
fósseis, que continua a aumentar. A oferta energética também aumenta com outras
fontes de energia para sustentar uma demanda promovida pela acumulação e pela
ganância do capital.
A saída dessa
encruzilhada exige uma estratégia integral – social, econômica, cultural e,
especialmente, política – que incorpore uma transição energética justa e
popular. Precisamos de agendas com medidas de curto, médio e longo prazo. Mas,
acima de tudo, precisamos de um horizonte diferente do atual. Temos que avançar
na perspectiva de um pluriverso, em um mundo e para um mundo onde caibam muitos
mundos, como dizem os zapatistas. Um mundo de vida digna para seres humanos e
seres não humanos.
Este é o ponto de
partida. Como caminhar para isso no âmbito energético? Avançando na revisão dos
padrões de produção e consumo de energia, assim como dos sistemas de
transporte, transmissão e distribuição. É preciso reduzir o consumo de
combustíveis fósseis, deixando enterrados os hidrocarbonetos como petróleo,
carvão e gás que tanto contribuem para o desgaste das condições de vida da
população mundial e aceleram o colapso ecológico.
Precisamos incorporar
outros valores e outras visões. Precisamos de outra economia para outra
civilização; assim, de forma concreta, temos que nos libertar da religião do
crescimento econômico permanente para construir outro tipo de sociedade. Isso
será alcançado com esquemas baseados na justiça social e na justiça ecológica,
sempre radicalizando a democracia. Não se trata apenas de garantir a
intangibilidade da natureza, pois isso seria uma espécie de exercício de
jardinagem. Recuperando relações de harmonia e equilíbrio com a natureza,
simultaneamente temos de construir sociedades justas e livres, que se baseiem
tanto nos Direitos Humanos quanto nos Direitos da Natureza.
Fonte: Por Alberto
Acosta, no Correio da Cidadania
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