Jovens quilombolas lutam por infraestrutura
básica e direito de ir à escola na Bahia
No percurso de casa
até a escola na comunidade quilombola de Rio dos Macacos, em Simões Filho,
região metropolitana de Salvador, Bahia, as irmãs Adriele, de 17 anos, e
Adriana Santos, de 18, andam por quase uma hora no chão de terra. São vias
estreitas, acidentadas e sem iluminação, ladeadas por um matagal. Não passam
carros ou ônibus no trajeto.
As irmãs Adriana e
Adriele querem chegar ao ensino superior. Elas ainda não escolheram suas
futuras profissões, mas pensam em ajudar a ensinar as letras para os mais
velhos do quilombo. E é por isso que encaram, na volta da aula, a correria
contra a escuridão do início da noite, carregando cadernos, livros e sonhos nas
costas.
A escola mais próxima
do quilombo, a Vale de Sião, da rede municipal, fica a sete quilômetros de
distância. “Nós queríamos ter melhores condições para nossa família, mas os
políticos ignoram a gente”, lamenta Adriana, que votou pela primeira vez este
ano. Mas, ainda que elas tenham aprendido na escola a importância do voto, o
descaso dos políticos com a comunidade desanima. “Sei que é importante votar,
mas a gente se sente abandonada”, diz Adriele.
As 140 famílias,
aproximadamente mil pessoas entre adultos e crianças, que vivem no quilombo
encaram esse mesmo trajeto todos os dias porque ele é a entrada e a saída da
comunidade. Quando chove, a lama faz com que elas precisem se esgueirar por
entre árvores para não cair em buracos, apoiando-se nos galhos e nas pegadas de
quem já passou por ali, como forma de não afundar o pé. Para Rose Meire dos
Santos Silva, 46 anos, coordenadora da Associação de Rio dos Macacos, a
comunidade é esquecida pelos políticos locais. “De vez em quando, candidatos
nos abordam, mas pouco conhecem nossa realidade”, diz.
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Por que isso importa?
- A comunidade quilombola de Rio dos Macacos enfrenta um
cenário de abandono político, falta de infraestrutura básica e barreiras
de acesso a direitos fundamentais, como educação e saúde.
- Jovens enfrentam uma luta diária para ter acesso à escola e
têm o futuro comprometido pela ausência de políticas públicas.
Ela lamenta que as
dificuldades de acesso à escola tenham feito com que “muita gente
desistisse de estudar”. Rose Meire é analfabeta. A maioria das famílias,
geração após geração, teve que priorizar o trabalho na roça e não teve chance
de conhecer o ensino formal e regular.
·
Mães fazem comboio a
pé para levar crianças à escola
A falta de iluminação
na via, em meio ao matagal, deixa as mães do quilombo com medo. Por segurança,
elas decidiram andar juntas, em um “comboio a pé” para levar as crianças à
escola. Simões Filho é uma das cidades mais perigosas do Brasil. Segundo o
último Anuário Estatístico de Segurança Pública (2023), o município é o quinto
mais violento do país, com 75,9 assassinatos a cada 100 mil habitantes.
As mães chegam a andar
28 quilômetros em um dia para levar as crianças para a escola municipal, porque
precisam ir e voltar duas vezes ao dia. “Deixo meu filho, depois eu volto para
casa. Na hora da saída, vou de novo”, diz Luzinede Araújo, de 27 anos. O filho
dela, Joabe, tem apenas nove anos. “Às vezes, ele desiste de ir para a escola.
Ele já chega cansado na aula”, conta a mãe. O menino gosta da aula de português
e de se divertir com os amigos. “Eu fico triste porque alguns dias eu fico com
muito sono”, conta.
No caminho para a
escola, a criança Juliana, de 9 anos, amiga de Joabe, reclama do trajeto. “Eu
fico muito cansada. É até difícil conseguir brincar depois”, diz.
Outro caminho possível
para chegar à área asfaltada que dá acesso ao quilombo é pela Vila Naval da
Barragem, um condomínio criado na década de 1960, onde estão as casas de mais
de 500 militares que servem na Base Naval de Aratu. A estudante Vitória Santos,
de 18 anos, faz esse trajeto, mas diz que é necessário se identificar todos os
dias no portão da guarda. “Os meus ancestrais ocupam esse lugar há mais de dois
séculos”, diz.
O Rio dos Macacos, que
banha a comunidade, também é motivo de embate dos moradores com a Marinha.
Segundo moradores, militares impedem que os quilombolas cheguem perto do Rio. A
Marinha informou que está em “fase avançada” um procedimento na Câmara de Conciliação
e Arbitragem da Administração Federal para uma solução negociada com a
comunidade sobre a utilização do Rio dos Macacos.
“Convém mencionar que
o relacionamento entre a Marinha e os moradores ocorre de forma amistosa e
respeitosa, não havendo registros recentes de problemas envolvendo os moradores
da comunidade e nossos militares”, diz a resposta.
Também “que sempre
permitiu o acesso dos moradores, visitantes e serviços públicos, sem
restrições”. E que repudia “toda e qualquer forma de violência, destacando que
todas as denúncias envolvendo a instituição são apuradas de forma transparente,
respeitando-se os princípios constitucionais”.
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Primeira a entrar na
faculdade
A primeira pessoa do
quilombo Rio dos Macacos a entrar na faculdade foi Franciele Silva, de 24 anos,
estudante da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ela também passou pelas
caminhadas de madrugada indo para a escola. Atualmente, como ela estuda de noite,
pede a companhia do pai para voltar para casa.
“Eu resolvi fazer o
curso de direito para lutar por minha comunidade. A gente tem esses direitos
negados pelo Estado e violados também. Então, eu acho que entrar na faculdade é
uma ferramenta muito importante, fundamental para a vida da nossa sociedade”,
diz a universitária.
“Minha mãe teve o
direito negado a essa educação, não só ela, os irmãos dela e outras pessoas do
território. Elas são inspirações para mim.” Juntas, mãe e filha entregaram, no
ano passado, uma carta pessoalmente ao presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT) pedindo mais
direitos para a comunidade.
Na escola em que as
crianças estudam, a Vale de Sião, a secretária Adriana Fonseca disse que “a
unidade tem um projeto de busca ativa para resgatar alunos que deixam de
aparecer para estudar”. Ela diz que o que causa a evasão escolar é a
dificuldade de acesso ao quilombo.
“A prefeitura deveria
ajudar a resolver esse problema. O rendimento das nossas crianças não está bom.
Tive que me jogar debaixo do carro de um prefeito, há cinco anos, para pedir
transporte”, afirma Rose Meire, coordenadora da associação do quilombo.
Além das dificuldades
de acesso para crianças e adolescentes, Rose Meire diz que as crianças
quilombolas sofrem violência de outros estudantes. “Quando nossas crianças se
reconhecem como quilombola, sofrem bullying dos outros. É muita violência.” Ela
reclama que temáticas quilombolas também não são trazidas para a sala de aula,
embora a Lei n° 10.639/2003 determine o ensino de história e cultura afro-brasileira e
africana nas escolas brasileiras.
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Luta por direitos
Em Simões Filho, o
prefeito eleito é o atual presidente da Câmara dos Vereadores, Devaldo Soares
de Souza (União Brasil-BA), que é negro. Ele vai substituir Diógenes Tolentino
Oliveira, que faz parte do mesmo grupo político. A gestão atual da prefeitura de
Simões Filho não respondeu aos questionamentos da reportagem sobre serviços
básicos no quilombo. Não tivemos também retorno do prefeito eleito.
No programa de
governo, o futuro prefeito garantiu que vai promover o fortalecimento de
políticas públicas para valorização das comunidades quilombolas, incluindo a
ampliação do programa Saúde Mais Perto de Você para esse público. Ainda no
documento, há menção a uma cidade mais inclusiva para as comunidades
tradicionais.
O estudante Uanderson
Araújo, de 19 anos, diz que durante as eleições os candidatos prometeram via de
acesso, iluminação e água para o quilombo. “Mas isso é sempre a cada quatro
anos”, lamenta. Ele divide seu tempo entre estudar para o vestibular de medicina,
cantar música gospel, trabalhar na roça e organizar rodas de conversas para
falar de questões da comunidade. “Fazemos em todos os espaços que podemos,
falamos sobre nossa realidade”, conta.
O quilombo Rio dos
Macacos teve reconhecimento da Fundação Cultural Palmares em 2011 e título
coletivo da terra expedido em 2019. Segundo informou o Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (Incra), atualmente são realizadas ações para que
as famílias quilombolas sejam contempladas pelas políticas públicas do Programa
Nacional de Reforma Agrária (PNRA), o que inclui reconhecer o território, com
pouco mais 97 hectares de área, com a construção de 135 casas, conforme
publicação do Diário Oficial de dezembro do ano passado. Rose
Meire diz que, por enquanto, 80 casas começaram a ser construídas no lugar.
Enquanto as condições
de acesso à escola não melhoram, professores e estudantes da Escola Bahiana de
Medicina e Saúde Pública, de Salvador, têm assistido a comunidade através de um
projeto de extensão. “Fizemos um levantamento de demandas e foram levantadas,
por exemplo, questões relacionadas a essa dificuldade do acesso aos serviços de
saúde”, apontou o professor Thiago Souza. Ele acrescenta que as pessoas do
quilombo não estavam cadastradas no sistema do SUS. Isso pode significar, por
exemplo, que não havia o acompanhamento de equipes da saúde da família.
“Nós construímos uma
fossa ecológica porque até hoje não tem saneamento nem água encanada.” Além
disso, o grupo de pesquisadores apoia ações emancipadoras organizadas pelos
jovens da comunidade. O grupo de pesquisadores ainda trabalha em prol da
articulação política para a construção da estrada, para geração de renda, e em
prol da saúde mental dos moradores. “Isso por conta das violências e dos
conflitos [por quais passam]. Isso impacta na saúde mental das pessoas”,
considera a professora de saúde coletiva Vanessa Rocha.
Em relação à
influência da vida externa da comunidade, a professora Karine Santana explica
que o grupo extensionista discutiu com os jovens estratégias de como engajar
pessoas em prol da construção da via de acesso. “Eles viram que esse acesso era
um fator principal que dificultava a chegada dessas políticas públicas. É
necessário reconhecer o papel do racismo ambiental [contra a comunidade].” Ela
acrescenta ainda que as mulheres costumam ser pilares dos quilombolas. “Elas
são as guardiãs da cultura e diretamente impactadas com o racismo.”
Sobre as dificuldades
de acesso à comunidade pela área militar, a Marinha informou “que sempre
permitiu o acesso dos moradores, visitantes e serviços públicos, sem
restrições”.
Fonte: Por Luiz
Claudio Ferreira, da Agência Pública
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