Estaria a juventude desencantada com as
esquerdas?
A esquerda enfrenta um
enigma: por que os jovens viram à direita? A questão já ressoava à sombra da
popularidade de figuras como Milei, na Argentina, Bukele, em El Salvador, e em
alguma medida Trump, nos Estados Unidos. Também já havia aparecido com a ascensão
de vultos como o deputado federal Nikolas Ferreira (PL). Mas o terror parece
ter se cristalizado, ou ao menos o problema apareceu com mais clareza, com o
primeiro turno das eleições municipais de São Paulo, em que Pablo Marçal (PRTB)
por pouco não foi para o segundo turno, se consolidando, de qualquer forma,
como concorrente a líder da extrema-direita brasileira – e tudo com um apoio
amplo entre jovens pobres de São Paulo.
De frente pra esfinge,
a esquerda lança suas hipóteses: seriam as redes sociais? O celular? Os efeitos
da pandemia? A supremacia do consumismo globalizado? O que é que explica que a
juventude, outrora símbolo da rebeldia, esteja se voltando à direita? A esfinge
não dá respostas definitivas, nem eu pretendo fazê-lo. Mas convém lembrar de
algo primordial: o tempo passa.
Não repito o axioma
para fixar outro enigma: é que o Brasil tem, de acordo com o último censo do
IBGE, 29,8 milhões de habitantes entre 15 e 24 anos. Tomando o topo da pirâmide
– aqueles que têm 24 anos –, haveremos de considerar que estes, quando puderam
votar pela primeira vez, aos 16, tinham Michel Temer como presidente, e
chegaram à maioridade com a eleição de Bolsonaro. Além destes, há outros 13,6
milhões entre 10 e 14 anos, que em breve passarão a formar suas visões
políticas. Todo esse contingente não experimentou os governos petistas. A cena
política que muitos deles conheceram na adolescência era recheada de militares;
quando começavam a trabalhar ou pensavam em procurar um emprego, batiam-se com
o pico da desregulamentação trabalhista e das políticas antissindicais; e
quanto às políticas sociais, o que encontravam era um teto de gastos, com seus
cortes na saúde, educação, habitação, etc. Em resumo: uma boa parte dos jovens
que hoje viram à direita, ao contrário das gerações anteriores, não experimentaram
sequer as restritas políticas sociais dos governos petistas, ao menos não “por
conta própria”.
Certamente, todas as
hipóteses lançadas à esfinge têm também sua parcela de culpa. Mas cada uma das
hipóteses revela também, por sua parte, ausências: à liberalidade das redes
sociais poderíamos opor a democratização da mídia, se tal coisa houvesse sido feita;
à ampla popularização do celular, uma reforma educacional efetiva, uma política
séria de estímulo à leitura, ou mesmo uma política de desenvolvimento
tecnológico que casasse a inserção digital com a popularização dos computadores
pessoais (cujo uso tem efeitos bastante diversos daqueles do celular, via real
de acesso da maioria da população brasileira à internet); frente os lamentos
quanto aos efeitos da pandemia, poderíamos nos perguntar o que estavam fazendo
nossos partidos de esquerda enquanto Bolsonaro aplicava sua política genocida –
protestavam contra o presidente ou protestavam contra os que protestavam? –;
sobre a profusão do consumismo em escala global, deveríamos questionar o que
nossas organizações e governos ofereceram como alternativa de sociabilidade, se
houve algum tipo de política de nacionalização da produção desses produtos que
tantos desejam, ou mesmo uma política cultural ampla que buscasse disputar tais
desejos. Parece, portanto, que na ânsia de buscar respostas para explicar o comportamento
da juventude, deixamos de lado os pressupostos mais simples: que esta juventude
não viveu o melhor que a centro-esquerda pôde entregar; que o melhor que o
petismo pôde entregar esfarelou-se como de um dia para o outro; e que aqueles
que lideram a esquerda hoje sequer agem no sentido de entregar algo
decisivamente melhor. O mais grave: que mesmo após a eleição de Lula em 2022, o
melhor que se entrega é um melhorismo rebaixado; afinal, se comemora a criação
de empregos de baixíssima qualidade como se estivéssemos testemunhando um
crescimento chinês; o arcabouço fiscal de Haddad só se diferencia
essencialmente do teto de Temer por sua maior aplicabilidade; os militares que
invadiram a cena política em 2016 têm um ministro para chamar de seu dentro do
governo Lula (um ministro que inclusive se orgulha disso); as reformas e as
privatizações que avançaram ferozmente a partir de 2016 não foram desfeitas nem
enfrentadas pelo atual governo. Se é verdade que os governos petistas até 2016,
mesmo com todos seus limites, se diferenciavam das administrações Temer e
Bolsonaro, também é verdade que o atual governo, até o momento, não se
diferencia tanto destas; e tudo o que o jovem conheceu em primeira mão na
política brasileira, mais uma vez, é isso.
O niilismo que afeta o
Brasil, e particularmente sua juventude, deve ser tomado por inteiro: na
ausência de algo que de antemão organize sua perspectiva de futuro, o homem
toma o destino nas mãos, conferindo ele mesmo sentido à própria vida. Os que,
como eu, foram jovens ao longo dos governos petistas, viviam, apesar de todos
os poréns, uma sensação geral de que os governos organizavam um futuro. A
melhoria das condições de vida presentes, somada às políticas de ampliação do
ensino básico e superior, faziam crer que era possível ascender por meios
habituais, como o estudo e o trabalho; e essa ascensão, mesmo que limitada e
desorganizada – abrindo caminho para perspectivas individualistas (a famosa
premissa de que milhões melhoraram de vida “por esforço próprio”) –, estava
intrinsecamente ligada ao Estado.
A dilapidação do
Estado a partir do ajuste fiscal do último governo Dilma e dos governos
subsequentes de Temer e Bolsonaro criou uma geração de jovens que não
experimentou tal clima: jovens que nasceram e cresceram sob a acertada
suposição de que estavam sozinhos, e que seu futuro só poderia ser diferente
por meios excepcionais: por uma jogada de sorte, por uma ideia genial ou um
esforço descomunal no campo do “empreendedorismo”, etc. Não será tão difícil
compreender o porquê este jovem, mesmo que pobre, tão facilmente tenha a
percepção de que o Estado e a política só servem para atrapalhá-lo.
Voltando ao niilismo:
os mais velhos podem buscar algum sentido no passado; e os mais jovens? Num
País em que objetivamente a escassez define as maiorias e a riqueza é o que
confere, mais do que a percepção da vitória, a realização dos direitos, o que
se pode esperar da juventude? Vários jogam nas roletas, outros voltam-se ao
crime, tantos jazem mortos, muitos viram à direita, a maioria sobrevive como
pode em meio às opções anteriores, todos sonhando conquistar os direitos
inscritos na Constituição pelo único meio que objetivamente é possível:
enriquecer. Não há nada de incompreensível nisso tudo: jogam o jogo do mundo
que conheceram e conhecem. Um jogo em que os que têm a coragem de ser bandidos
têm o justo reconhecimento, e em que as mentiras de coachs ou pastores não são
medidas pelo seu valor moral, mas pela sua utilidade prática – embora falsas,
são úteis, ao contrário dos resmungos sobre “o que é possível fazer”; aquelas
mobilizam as vontades, estes paralisam.
Os “heróis” de um
ambiente tão desregulado, sem horizonte de futuro e em que o Estado, em meio às
privatizações, cada vez faz menos, e em meio às reformas e ajustes, cada vez
faz pior (a saúde e a educação são áreas evidentes) serão quais? Seria Marçal e
congêneres tão inexplicáveis assim? Que outro ambiente o governo está
oferecendo para que outros “heróis” possam aparecer? É verdade que essa
dilapidação do Estado avançou por sobre o petismo: mas é hoje enfrentada de
forma decidida por ele?
Parte da juventude
vira à direita não por convicção de que lá se encontra uma alternativa; mas por
não ver alternativa a não ser esta. O discurso individualista, em que as únicas
entidades gregárias viáveis são a família ou a igreja, e no qual é necessário
“vencer por contra própria” se populariza porque, no Brasil pós-2016, ele é
absolutamente verdadeiro.
Caberia a um governo
como o de Lula torná-lo falso. É verdade que em 2023, sob a PEC da Transição,
aumentos nos investimentos em educação e programas como o Pé-de-Meia foram
sinais, ainda que tímidos, neste sentido, mas a tendência de cortes para a
manutenção do “arcabouço fiscal”, já demonstrada neste ano (em abril foram 4 bi
cortados; agora, em outubro, já se discute um novo amplo pacote de cortes),
tende a tornar o terceiro governo Lula uma reprise do que os jovens já viram.
Por que optariam decididamente por ele em 2026?
¨
‘Do PT ao Centrão’ é
uma transformação das bases sociais do Brasil. Por Orlando Calheiros
Sou um homem de meia
idade, nascido, criado e morador do subúrbio carioca. Nasci nos últimos
anos da ditadura. Lembro bem pouco dos tempos do ex-presidente da República
José Sarney, lembro do nome, lembro do anúncio do “congelamento” dos preços;
entendi aquilo de forma bem literal.
Imagine, como alguém
poderia congelar um preço?
Lembro-me mais do
desespero dos meus pais com a inflação, da preocupação com a insegurança
alimentar – uma realidade na minha infância.
Lembro então do
Fernando Collor, de vê-lo na televisão, de uma discussão entre meu pai, que
apoiava Lula, e um tio que havia votado no então presidente. Lembro que pouco
tempo depois “conheci” os evangélicos.
De um ano para o
outro, boa parte dos meus amigos da escola se converteu à religião, por conta
de suas famílias. Lembro melhor da criação do Plano Real e a eleição de
Fernando Henrique Cardoso. Lembro de uma certa sensação coletiva de melhora na
população por conta do consumo de produtos importados. Melhor dizendo,
contrabandeados do Paraguai. Mas quem se importava?
Foi nessa época,
justamente, que perdi os meus primeiros amigos para o tráfico de drogas. Que
buscavam, ali, o acesso aos tais importados do Paraguai. Tênis, roupas,
toca-fitas, que exibiam nos bailes funk dos fins de semana.
<><> A
primeira festa no subúrbio, a vitória de Lula
O tempo passou.
Eu já era um jovem
adulto quando o PT chegou ao poder. Lembro dos gritos do meu pai quando o
resultado foi anunciado, parecia um gol do Fluminense, seu time. Escutava
gritos semelhantes vindo da vizinhança.
O subúrbio estava em
festa!
Enquanto isso, na
televisão, alguns comentaristas políticos justificavam a vitória do petista
dizendo, ainda que sutilmente, que os pobres não sabiam votar.
O subúrbio rapidamente
se transformou. As típicas casas suburbanas, em sua maioria construídas nas
décadas de 70 e 80, foram enfim reformadas, dando lugar a uma outra estética,
muito inspirada pelos condomínios da Barra da Tijuca, que por sua vez se inspirava
na cidade de Miami.
As calçadas, onde
antigamente nos sentávamos à noite para escapar do calor, foram ocupadas por
carros recém populares.
As igrejas se
multiplicaram quase na mesma proporção. Agora havia uma em cada esquina. Para
muitos, as melhoras que viviam não eram resultados de políticas públicas, mas
fruto de providência divina.
O subúrbio da minha
infância não era mais o mesmo, fora substituído por uma simulação de classe média.
E isso é algo que digo
sem saudosismo, mas tampouco comemoro. As coisas são o que são.
Não por coincidência,
foi nessa época que as milícias se espalharam pela região. Distribuíam
ilegalmente internet e TV a cabo, enquanto cobravam dos moradores por proteção.
Dito de outra forma, prometiam entretenimento e segurança.
<><> A
segunda festa no subúrbio, a vitória de Bolsonaro
Jair Bolsonaro, em
2016, acionou uma lógica semelhante durante o lançamento não oficial de sua
candidatura para a presidência em um evento no Bangu Atlético Clube, um dos
times mais tradicionais do subúrbio carioca.
O “Capitão” dizia ser
a última linha de defesa contra o comunismo e tudo aquilo que ele representava.
E “tudo aquilo que ele representava” ia muito além da política, incluía o crime
organizado, a violência urbana, mas também o “retorno” à pobreza do passado.
Aquilo foi suficiente
para que fosse abraçado com força pelo subúrbio carioca, que rapidamente se
tornou um dos seus principais redutos no estado do Rio de Janeiro. Talvez no
Brasil, afinal, estamos falando de uma região onde vivem, por baixo, cerca de 3
milhões de pessoas, mais do que a diferença de votos que decidiram a eleição de
2022!
Em 2018, Bolsonaro foi
eleito. Mais uma vez o subúrbio estava em festa. Comemoravam a vitória do
“Capitão”! O mesmo subúrbio que, anos antes, vibrou com a vitória de Lula.
Mais uma vez ouvi que
“pobres não sabem votar”. Mas, agora, de pessoas do meu próprio campo.
E talvez seja mais
fácil repetir essa repisada hipótese sobre a ignorância do povo do que se
perguntar: o que mudou em tão pouco tempo?
Uma pergunta cuja
resposta é ao mesmo tempo simples e complexa.
A parte simples é a
compreensão de que “tudo mudou”. A parte complexa é o entendimento do que isso
significa.
A pobreza de outrora
deu passagem a uma simulação de classe média. Isso implica que essa população,
agora, deseja efetivamente outras coisas. Se antes, durante a minha infância,
por exemplo, a questão era o risco de entrar para o mapa da fome no país, agora
a questão passa pela manutenção de um certo poder de consumo.
As pessoas não desejam
apenas ter comida, elas querem realmente comer picanha.
Não desaprenderam a
votar, apenas votam com esse “novo” desejo em mente.
Um desejo que é
corroborado tanto pelas inúmeras igrejas da região, onde ser “próspero” é
sinônimo de ser abençoado por cristo, quanto pelos conteúdos que consomem nas
redes sociais, que associam à felicidade, à própria ideia, a um determinado
estilo de vida alinhado ao consumo.
E essa é uma outra
diferença crucial: a forma como essa população se informa e se comunica por
meio dos celulares e redes sociais.
E tudo isso é
particularmente verdadeiro quando se trata dos mais jovens, aqueles que não
viveram o passado da região.
Estou falando do
subúrbio carioca, mas poderia estar falando de outras periferias urbanas no
país, como mostra a entrevista do jornalista
Paulo Motoryn com um ex-militante do PT paulistano, que hoje milita pelo
centrão.
A fala do ex-militante
de esquerda desvela processos muito semelhantes, mas ocorridos a milhares de
quilômetros “daqui”. Ele fala sobre as estratégias de cooptação da direita, é
verdade, mas também fala muito dessa transformação do desejo e do imaginário
dos mais pobres.
Ele fala dele mesmo,
afinal.
E aqui se desenha a
polêmica dessa entrevista, pois a sua fala se distancia da imagem do “pobre
metafórico” que até hoje alimenta boa parte do imaginário e a agenda política
de certas esquerdas. Especialmente destas que perdem cada vez mais espaço nas
eleições.
Desta esquerda que
insiste na ideia de que (agora) os “pobres não sabem votar”.
Como disse, é mais
fácil repetir a mesma ladainha de sempre do que admitir que não são capazes de
olhar para essas pessoas, para o seu desejo, para o seu imaginário, de
verdadeiramente ouvi-las e lhes oferecer uma resposta.
Uma resposta à
esquerda!
Felizmente, essa
resposta existe, como a eleição de alguns nomes deixa evidente.
Fonte: Por Pedro
Marin, na Revista Opera/The Intercept
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