quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Estaria a juventude desencantada com as esquerdas?

A esquerda enfrenta um enigma: por que os jovens viram à direita? A questão já ressoava à sombra da popularidade de figuras como Milei, na Argentina, Bukele, em El Salvador, e em alguma medida Trump, nos Estados Unidos. Também já havia aparecido com a ascensão de vultos como o deputado federal Nikolas Ferreira (PL). Mas o terror parece ter se cristalizado, ou ao menos o problema apareceu com mais clareza, com o primeiro turno das eleições municipais de São Paulo, em que Pablo Marçal (PRTB) por pouco não foi para o segundo turno, se consolidando, de qualquer forma, como concorrente a líder da extrema-direita brasileira – e tudo com um apoio amplo entre jovens pobres de São Paulo.

De frente pra esfinge, a esquerda lança suas hipóteses: seriam as redes sociais? O celular? Os efeitos da pandemia? A supremacia do consumismo globalizado? O que é que explica que a juventude, outrora símbolo da rebeldia, esteja se voltando à direita? A esfinge não dá respostas definitivas, nem eu pretendo fazê-lo. Mas convém lembrar de algo primordial: o tempo passa.

Não repito o axioma para fixar outro enigma: é que o Brasil tem, de acordo com o último censo do IBGE, 29,8 milhões de habitantes entre 15 e 24 anos. Tomando o topo da pirâmide – aqueles que têm 24 anos –, haveremos de considerar que estes, quando puderam votar pela primeira vez, aos 16, tinham Michel Temer como presidente, e chegaram à maioridade com a eleição de Bolsonaro. Além destes, há outros 13,6 milhões entre 10 e 14 anos, que em breve passarão a formar suas visões políticas. Todo esse contingente não experimentou os governos petistas. A cena política que muitos deles conheceram na adolescência era recheada de militares; quando começavam a trabalhar ou pensavam em procurar um emprego, batiam-se com o pico da desregulamentação trabalhista e das políticas antissindicais; e quanto às políticas sociais, o que encontravam era um teto de gastos, com seus cortes na saúde, educação, habitação, etc. Em resumo: uma boa parte dos jovens que hoje viram à direita, ao contrário das gerações anteriores, não experimentaram sequer as restritas políticas sociais dos governos petistas, ao menos não “por conta própria”.

Certamente, todas as hipóteses lançadas à esfinge têm também sua parcela de culpa. Mas cada uma das hipóteses revela também, por sua parte, ausências: à liberalidade das redes sociais poderíamos opor a democratização da mídia, se tal coisa houvesse sido feita; à ampla popularização do celular, uma reforma educacional efetiva, uma política séria de estímulo à leitura, ou mesmo uma política de desenvolvimento tecnológico que casasse a inserção digital com a popularização dos computadores pessoais (cujo uso tem efeitos bastante diversos daqueles do celular, via real de acesso da maioria da população brasileira à internet); frente os lamentos quanto aos efeitos da pandemia, poderíamos nos perguntar o que estavam fazendo nossos partidos de esquerda enquanto Bolsonaro aplicava sua política genocida – protestavam contra o presidente ou protestavam contra os que protestavam? –; sobre a profusão do consumismo em escala global, deveríamos questionar o que nossas organizações e governos ofereceram como alternativa de sociabilidade, se houve algum tipo de política de nacionalização da produção desses produtos que tantos desejam, ou mesmo uma política cultural ampla que buscasse disputar tais desejos. Parece, portanto, que na ânsia de buscar respostas para explicar o comportamento da juventude, deixamos de lado os pressupostos mais simples: que esta juventude não viveu o melhor que a centro-esquerda pôde entregar; que o melhor que o petismo pôde entregar esfarelou-se como de um dia para o outro; e que aqueles que lideram a esquerda hoje sequer agem no sentido de entregar algo decisivamente melhor. O mais grave: que mesmo após a eleição de Lula em 2022, o melhor que se entrega é um melhorismo rebaixado; afinal, se comemora a criação de empregos de baixíssima qualidade como se estivéssemos testemunhando um crescimento chinês; o arcabouço fiscal de Haddad só se diferencia essencialmente do teto de Temer por sua maior aplicabilidade; os militares que invadiram a cena política em 2016 têm um ministro para chamar de seu dentro do governo Lula (um ministro que inclusive se orgulha disso); as reformas e as privatizações que avançaram ferozmente a partir de 2016 não foram desfeitas nem enfrentadas pelo atual governo. Se é verdade que os governos petistas até 2016, mesmo com todos seus limites, se diferenciavam das administrações Temer e Bolsonaro, também é verdade que o atual governo, até o momento, não se diferencia tanto destas; e tudo o que o jovem conheceu em primeira mão na política brasileira, mais uma vez, é isso.

O niilismo que afeta o Brasil, e particularmente sua juventude, deve ser tomado por inteiro: na ausência de algo que de antemão organize sua perspectiva de futuro, o homem toma o destino nas mãos, conferindo ele mesmo sentido à própria vida. Os que, como eu, foram jovens ao longo dos governos petistas, viviam, apesar de todos os poréns, uma sensação geral de que os governos organizavam um futuro. A melhoria das condições de vida presentes, somada às políticas de ampliação do ensino básico e superior, faziam crer que era possível ascender por meios habituais, como o estudo e o trabalho; e essa ascensão, mesmo que limitada e desorganizada – abrindo caminho para perspectivas individualistas (a famosa premissa de que milhões melhoraram de vida “por esforço próprio”) –, estava intrinsecamente ligada ao Estado.

A dilapidação do Estado a partir do ajuste fiscal do último governo Dilma e dos governos subsequentes de Temer e Bolsonaro criou uma geração de jovens que não experimentou tal clima: jovens que nasceram e cresceram sob a acertada suposição de que estavam sozinhos, e que seu futuro só poderia ser diferente por meios excepcionais: por uma jogada de sorte, por uma ideia genial ou um esforço descomunal no campo do “empreendedorismo”, etc. Não será tão difícil compreender o porquê este jovem, mesmo que pobre, tão facilmente tenha a percepção de que o Estado e a política só servem para atrapalhá-lo.

Voltando ao niilismo: os mais velhos podem buscar algum sentido no passado; e os mais jovens? Num País em que objetivamente a escassez define as maiorias e a riqueza é o que confere, mais do que a percepção da vitória, a realização dos direitos, o que se pode esperar da juventude? Vários jogam nas roletas, outros voltam-se ao crime, tantos jazem mortos, muitos viram à direita, a maioria sobrevive como pode em meio às opções anteriores, todos sonhando conquistar os direitos inscritos na Constituição pelo único meio que objetivamente é possível: enriquecer. Não há nada de incompreensível nisso tudo: jogam o jogo do mundo que conheceram e conhecem. Um jogo em que os que têm a coragem de ser bandidos têm o justo reconhecimento, e em que as mentiras de coachs ou pastores não são medidas pelo seu valor moral, mas pela sua utilidade prática – embora falsas, são úteis, ao contrário dos resmungos sobre “o que é possível fazer”; aquelas mobilizam as vontades, estes paralisam.

Os “heróis” de um ambiente tão desregulado, sem horizonte de futuro e em que o Estado, em meio às privatizações, cada vez faz menos, e em meio às reformas e ajustes, cada vez faz pior (a saúde e a educação são áreas evidentes) serão quais? Seria Marçal e congêneres tão inexplicáveis assim? Que outro ambiente o governo está oferecendo para que outros “heróis” possam aparecer? É verdade que essa dilapidação do Estado avançou por sobre o petismo: mas é hoje enfrentada de forma decidida por ele?

Parte da juventude vira à direita não por convicção de que lá se encontra uma alternativa; mas por não ver alternativa a não ser esta. O discurso individualista, em que as únicas entidades gregárias viáveis são a família ou a igreja, e no qual é necessário “vencer por contra própria” se populariza porque, no Brasil pós-2016, ele é absolutamente verdadeiro.

Caberia a um governo como o de Lula torná-lo falso. É verdade que em 2023, sob a PEC da Transição, aumentos nos investimentos em educação e programas como o Pé-de-Meia foram sinais, ainda que tímidos, neste sentido, mas a tendência de cortes para a manutenção do “arcabouço fiscal”, já demonstrada neste ano (em abril foram 4 bi cortados; agora, em outubro, já se discute um novo amplo pacote de cortes), tende a tornar o terceiro governo Lula uma reprise do que os jovens já viram. Por que optariam decididamente por ele em 2026?

 

¨      ‘Do PT ao Centrão’ é uma transformação das bases sociais do Brasil. Por Orlando Calheiros

Sou um homem de meia idade, nascido, criado e morador do subúrbio carioca. Nasci nos últimos anos da ditadura. Lembro bem pouco dos tempos do ex-presidente da República José Sarney, lembro do nome, lembro do anúncio do “congelamento” dos preços; entendi aquilo de forma bem literal.

Imagine, como alguém poderia congelar um preço?

Lembro-me mais do desespero dos meus pais com a inflação, da preocupação com a insegurança alimentar – uma realidade na minha infância.

Lembro então do Fernando Collor, de vê-lo na televisão, de uma discussão entre meu pai, que apoiava Lula, e um tio que havia votado no então presidente. Lembro que pouco tempo depois “conheci” os evangélicos.

De um ano para o outro, boa parte dos meus amigos da escola se converteu à religião, por conta de suas famílias. Lembro melhor da criação do Plano Real e a eleição de Fernando Henrique Cardoso. Lembro de uma certa sensação coletiva de melhora na população por conta do consumo de produtos importados. Melhor dizendo, contrabandeados do Paraguai. Mas quem se importava?

Foi nessa época, justamente, que perdi os meus primeiros amigos para o tráfico de drogas. Que buscavam, ali, o acesso aos tais importados do Paraguai. Tênis, roupas, toca-fitas, que exibiam nos bailes funk dos fins de semana.

<><> A primeira festa no subúrbio, a vitória de Lula

O tempo passou.

Eu já era um jovem adulto quando o PT chegou ao poder. Lembro dos gritos do meu pai quando o resultado foi anunciado, parecia um gol do Fluminense, seu time. Escutava gritos semelhantes vindo da vizinhança.

O subúrbio estava em festa!

Enquanto isso, na televisão, alguns comentaristas políticos justificavam a vitória do petista dizendo, ainda que sutilmente, que os pobres não sabiam votar.

O subúrbio rapidamente se transformou. As típicas casas suburbanas, em sua maioria construídas nas décadas de 70 e 80, foram enfim reformadas, dando lugar a uma outra estética, muito inspirada pelos condomínios da Barra da Tijuca, que por sua vez se inspirava na cidade de Miami.

As calçadas, onde antigamente nos sentávamos à noite para escapar do calor, foram ocupadas por carros recém populares.

As igrejas se multiplicaram quase na mesma proporção. Agora havia uma em cada esquina. Para muitos, as melhoras que viviam não eram resultados de políticas públicas, mas fruto de providência divina.

O subúrbio da minha infância não era mais o mesmo, fora substituído por uma simulação de classe média.

E isso é algo que digo sem saudosismo, mas tampouco comemoro. As coisas são o que são.

Não por coincidência, foi nessa época que as milícias se espalharam pela região. Distribuíam ilegalmente internet e TV a cabo, enquanto cobravam dos moradores por proteção. Dito de outra forma, prometiam entretenimento e segurança.

<><> A segunda festa no subúrbio, a vitória de Bolsonaro

Jair Bolsonaro, em 2016, acionou uma lógica semelhante durante o lançamento não oficial de sua candidatura para a presidência em um evento no Bangu Atlético Clube, um dos times mais tradicionais do subúrbio carioca.

O “Capitão” dizia ser a última linha de defesa contra o comunismo e tudo aquilo que ele representava. E “tudo aquilo que ele representava” ia muito além da política, incluía o crime organizado, a violência urbana, mas também o “retorno” à pobreza do passado.

Aquilo foi suficiente para que fosse abraçado com força pelo subúrbio carioca, que rapidamente se tornou um dos seus principais redutos no estado do Rio de Janeiro. Talvez no Brasil, afinal, estamos falando de uma região onde vivem, por baixo, cerca de 3 milhões de pessoas, mais do que a diferença de votos que decidiram a eleição de 2022!

Em 2018, Bolsonaro foi eleito. Mais uma vez o subúrbio estava em festa. Comemoravam a vitória do “Capitão”! O mesmo subúrbio que, anos antes, vibrou com a vitória de Lula.

Mais uma vez ouvi que “pobres não sabem votar”. Mas, agora, de pessoas do meu próprio campo.

E talvez seja mais fácil repetir essa repisada hipótese sobre a ignorância do povo do que se perguntar: o que mudou em tão pouco tempo?

Uma pergunta cuja resposta é ao mesmo tempo simples e complexa.

A parte simples é a compreensão de que “tudo mudou”. A parte complexa é o entendimento do que isso significa.

A pobreza de outrora deu passagem a uma simulação de classe média. Isso implica que essa população, agora, deseja efetivamente outras coisas. Se antes, durante a minha infância, por exemplo, a questão era o risco de entrar para o mapa da fome no país, agora a questão passa pela manutenção de um certo poder de consumo.

As pessoas não desejam apenas ter comida, elas querem realmente comer picanha.

Não desaprenderam a votar, apenas votam com esse “novo” desejo em mente.

Um desejo que é corroborado tanto pelas inúmeras igrejas da região, onde ser “próspero” é sinônimo de ser abençoado por cristo, quanto pelos conteúdos que consomem nas redes sociais, que associam à felicidade, à própria ideia, a um determinado estilo de vida alinhado ao consumo.

E essa é uma outra diferença crucial: a forma como essa população se informa e se comunica por meio dos celulares e redes sociais.

E tudo isso é particularmente verdadeiro quando se trata dos mais jovens, aqueles que não viveram o passado da região.

Estou falando do subúrbio carioca, mas poderia estar falando de outras periferias urbanas no país, como mostra a entrevista do jornalista Paulo Motoryn com um ex-militante do PT paulistano, que hoje milita pelo centrão.

A fala do ex-militante de esquerda desvela processos muito semelhantes, mas ocorridos a milhares de quilômetros “daqui”. Ele fala sobre as estratégias de cooptação da direita, é verdade, mas também fala muito dessa transformação do desejo e do imaginário dos mais pobres.

Ele fala dele mesmo, afinal.

E aqui se desenha a polêmica dessa entrevista, pois a sua fala se distancia da imagem do “pobre metafórico” que até hoje alimenta boa parte do imaginário e a agenda política de certas esquerdas. Especialmente destas que perdem cada vez mais espaço nas eleições.

Desta esquerda que insiste na ideia de que (agora) os “pobres não sabem votar”.

Como disse, é mais fácil repetir a mesma ladainha de sempre do que admitir que não são capazes de olhar para essas pessoas, para o seu desejo, para o seu imaginário, de verdadeiramente ouvi-las e lhes oferecer uma resposta.

Uma resposta à esquerda!

Felizmente, essa resposta existe, como a eleição de alguns nomes deixa evidente.

 

Fonte: Por Pedro Marin, na Revista Opera/The Intercept

 

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