Em “cidade do WhatsApp”, app favorece fake
news como único meio de comunicação
Na pequena Trairão
(PA), localizada às margens da BR-163 a cerca de 1,2 mil km da capital, Belém,
não há emissora de rádio e TV nem jornal, site ou blog de notícias. Tudo o que
acontece de “notícia” no município é levado ao conhecimento de seus 15 mil
moradores por meio do WhatsApp. Dezenas de grupos reúnem centenas de moradores
que escrevem ou leem sobre todo tipo de informação relacionada ao município,
dos acidentes de trânsito aos desdobramentos das últimas eleições municipais. O
aplicativo da Meta é onipresente, para o bem e para o mal.
Na tarde de
terça-feira, 8 de outubro de 2024, logo depois do resultado das eleições, o
presidente da Câmara de Vereadores da cidade, Aridelson de Almeida
(Republicanos), procurou seu advogado determinado a tentar localizar o autor de
uma fake news que, segundo ele, comprometeu o resultado da disputa.
Nos dias anteriores ao
pleito, a mentira correu como um rastilho de pólvora nos grupos do WhatsApp de
Trairão: Aridelson teria recebido R$ 200 mil para apoiar o candidato produtor
rural Edgard Jarworski (PSD), principal adversário do candidato e também agropecuarista
Henrique Borges (Avante), que acabou eleito.
Como suposta “prova”,
foi apresentado um comprovante de depósito em uma conta do Banpará. Ocorre que
o falso “depositante” nem sequer tem conta naquele banco, segundo o vereador. E
o nome tinha um erro de digitação. Segundo Aridelson, foi uma montagem tosca à
qual muita gente deu crédito. O vereador correu para desmentir a acusação, mas
parece ter sido insuficiente.
Dias antes, o vereador
havia recebido a equipe da Agência Pública em sua casa em Trairão. Ele falou
sobre a fake news, mas até então estava confiante no desmentido. A partir do
resultado do domingo, contudo, Aridelson chegou a uma amarga conclusão.
“Com certeza afetou
nossa eleição. Não elegemos o prefeito nem o número que esperávamos de
vereadores. Gente que era do nosso próprio grupo na última hora mudou de voto.
Botamos uma nota [desmentindo], mas tem gente que acredita nisso. Pessoas
leigas, que não sabem o que é fake news, acabam acreditando”, disse o vereador.
Aridelson disse ter
procurado a Polícia Civil para fazer um boletim de ocorrência (B.O.), mas foi
informado de que precisa apresentar o nome do suspeito que teria alimentado os
grupos com a falsa notícia. O vereador ainda não sabe quem começou.
“Eu quis abrir um
B.O., o delegado me mandou buscar as provas. Como que eu vou saber quem foi que
fez? Vou ver se o gerente do banco me dá uma declaração. A gente sofre muito
nesse canto de mundo. Falta muita coisa. As pessoas fazem e acontecem e continuam
[soltas] no meio da rua. Essas pessoas não têm muito medo, não. E as outras
veem os outros fazendo e ficam de boa. A gente procura o direito, mas a
penalidade é muito pouca. Mas a gente continua procurando.”
<><> Por
que isso importa?
• A Agência Pública percorreu a BR-163,
entre os estados de Mato Grosso e Pará, e o município de Trairão é um dos
locais dessa rota onde nossa equipe investigou como o tema das mudanças
climáticas e meio ambiente foi discutido nas eleições municipais. A região é
extremamente marcada por fogo, conflitos e desmatamento, com cidades que
registram grande adesão ao bolsonarismo.
Sem meios de
comunicação na cidade, a única referência dos moradores de Trairão para saber
se uma “notícia” é falsa ou verdadeira é o grau de conhecimento que os
moradores têm sobre a pessoa que postou a mensagem. Ocorre que as campanhas
difamatórias são produzidas por anônimos ou com nomes fictícios. Recentemente,
disse o presidente da Câmara de Vereadores, um colega foi acusado nos grupos de
trair sua mulher com outra moradora da cidade. Mas até hoje não se chegou à
autoria da mensagem.
Aridelson participa,
como ele mostrou à Pública, de cerca de 30 grupos de WhatsApp. Alguns tem mais
de 700 participantes. Para uma cidade com 15 mil habitantes, cada grupo é um
universo muito considerável. O candidato mais votado a vereador, por exemplo,
recebeu apenas 438 votos. Um vereador foi eleito com apenas 211 votos.
Assim, os próprios
políticos abrem seus grupos no aplicativo. O presidente da Câmara tem o seu, o
“Informativo Trairense”, com 770 membros, administrado por um assessor do
vereador. Também é uma forma efetiva de levar informação às áreas mais
distantes no município. Trairão tem 123 comunidades rurais, segundo o vereador,
uma delas localizada, por exemplo, a 138 km do traçado da rodovia BR-163, que
corta ao meio o centro urbano.
Trairão, cujo nome
remete ao tamanho das traíras que podiam ser pescadas no rio mais próximo,
cresceu às margens da BR-163, aberta pela ditadura militar nos anos 1970 e
asfaltada, trecho a trecho, ao longo de vários governos. Desde o asfaltamento,
a região vê a ampliação do desmatamento, das queimadas e da monocultura do
agronegócio.
É uma região
extremamente sensível do ponto de vista socioambiental, ainda mais no contexto
da emergência climática mundial. Sobre o território do município incidem quatro
Florestas Nacionais (Trairão, Itaituba I e II e Nacional de Altamira), a área
de preservação do Tapajós, o Parque Nacional do Jamanxim e a Terra Indígena
Sawré Muybu. Juntos, somam 4,6 milhões de hectares. São áreas constantemente
invadidas ou pressionadas. Contudo, inexiste no município qualquer
representação do Ibama, do ICMBio, da Polícia Federal ou do Ministério Público
Federal.
Com tantos desafios e
problemas, Trairão precisaria de pelo menos um meio de comunicação independente
a fim de trazer aos seus moradores a visão crítica sobre o papel, por exemplo,
dos políticos do município no contexto da Amazônia e do Pará. Mas Trairão se
enquadra à perfeição naquilo que os estudiosos chamam de “deserto de notícias”,
ou seja, uma região na qual inexiste pelo menos um veículo de comunicação.
• Em Novo Progresso, um “quase deserto” de
notícias
Segundo o Atlas da
Notícia, em 2023 um total de 2.706 municípios (48,5% de todo o país), nos quais
viviam mais de 26 milhões de pessoas, eram “desertos de notícias”. Outros 1.636
municípios eram “quase desertos”, isto é, tinham apenas um ou dois veículos de
notícia e, por isso, “podem mais facilmente virar desertos”.
O município mais
próximo de Trairão seguindo cerca de 300 km pela BR-163 em direção a Mato
Grosso, é Novo Progresso (PA), fundado em 1991 a partir do desmembramento de
Itaituba (PA). Assim como Trairão, Novo Progresso é alvo de intensa preocupação
dos órgãos de repressão aos crimes ambientais em Brasília. Incidem sobre o
município quatro unidades de conservação, em especial a Floresta Nacional do
Jamanxim, uma das mais destruídas do país.
Novo Progresso, com 33
mil habitantes, é um dos principais municípios do chamado “arco do
desmatamento”, uma região que se estende por mais de 500 mil km² na região
Norte do país. O município bate recordes de queimadas e desmatamento. Em 2019,
ganhou notoriedade pelo “Dia do Fogo”, uma sequência de queimadas que, segundo
a denúncia na época, fora combinada por produtores rurais pelo WhatsApp em
protesto contra as ações de fiscalização ambiental do Ibama e ICMBio.
Apesar de todo o
caldeirão de necessidades e problemas, Novo Progresso é um “quase deserto” de
notícias. Há apenas um meio de comunicação, o jornal digital Folha do
Progresso, hoje com cinco funcionários. Ele é o único veículo num raio de 300
km naquela região do sul do Pará. Foi fundado há cerca de 30 anos por Adécio
Piran quando ainda se usava o mimeógrafo. Depois migrou da forma impressa para
a digital.
Como tantos moradores
de Novo Progresso, a família de Piran veio do Paraná para se estabelecer em
Novo Progresso nos anos 1980. No Paraná, ele disse ter participado do movimento
estudantil a partir dos anos 1970 e, nos anos 1980, também atuou como “agente
do sistema de inteligência do governo do estado do Paraná”. Nessa condição,
agiu como “infiltrado” em congressos do movimento estudantil. Ao mesmo tempo,
militava no MDB, que fazia oposição à Arena dos militares.
Piran disse que sua
missão no movimento estudantil era “ver o que estava acontecendo”. As suas
principais conclusões: “O movimento de esquerda tinha muita infiltração, né?
Mas, na verdade, o estudante daquela época era muito valente. Ele era muito
revolucionário. Ele era corajoso e queria algo melhor [para o país]. E isso
ajudou muito esse país. E hoje você vê que acabou tudo. Eu lembro de uma
situação em São Paulo em que, por causa de 10 centavos, na época em que
aumentaram o transporte, deu uma revolta estudantil lá que quase caiu o
governador”.
Em Novo Progresso,
Piran casou e teve seis filhos. Além de dono do jornal, ele toca um posto de
gasolina e já foi secretário municipal de Meio Ambiente. Já foi vereador e, em
2016, saiu candidato a vereador pelo PDT.
Em 2019, Piran entrou
no olho do furacão após ter publicado um pequeno texto neutro informando, em
primeira mão, sobre o “Dia do Fogo” no município. O texto chamou atenção do
jornalista Fabiano Maisonnave, que trabalhava como correspondente da Folha de S.Paulo
em Manaus (AM) e, a partir daí, ganhou atenção nacional e internacional. O dono
da Folha do Progresso foi alvo de ameaças dentro e fora do WhatsApp e sofreu
retaliações financeiras. Seus “25 anunciantes” pararam de fazer publicações no
veículo. Recebeu apoio de organizações jornalísticas, mas disse que nunca se
recobrou do tombo financeiro.
Segundo Piran, o
veículo não recebe apoio financeiro da prefeitura municipal. Reeleito nas
últimas eleições com forte apoio do agronegócio na região e mais de 80% de
votos válidos, o prefeito Gelson Dill (MDB) não se relaciona com Piran, segundo
o empresário.
Hoje Piran também
utiliza muito o WhatsApp como ferramenta de divulgação do jornal e passou a
produzir uma versão especial diária para ser lida no aplicativo.
“O WhatsApp hoje é uma
força muito grande até pra nós. Nós temos comunidades rurais [distantes da
cidade], comunidades garimpeiras. Há muitos acontecimentos que levam de dois a
três dias pra chegar aqui na rua. Com o WhatsApp isso é imediato. Quando o Ibama
está entrando numa ação fiscalizatória numa estrada vicinal, por exemplo, a
gente já começa a receber de lá as notícias pelo WhatsApp.”
Pelo aplicativo os
moradores se conectam, se informam e também se desinformam. Há alguns meses,
diz Piran, um cidadão postou um vídeo de um acidente de trânsito que na verdade
tratava de outro acidente em outro dia e lugar. Para Piran, contudo, o WhatsApp
também tem sido um meio eficaz para o próprio desmentido.
Para Piran, contudo, o
WhatsApp também tem sido um meio de comunicação eficaz
“Em tempo hábil, a
gente consegue conversar com as comunidades para ver se realmente aconteceu ou
não aconteceu um determinado fato. Daí a gente consegue disseminar a verdade.
Tem muita maldade hoje na rede social. Você sabe que tem.”
É um mundo conectado
totalmente diferente do que a região de Trairão e Novo Progresso era há pouco
menos de 20 anos. Com a BR-163 ainda sem asfaltamento, a região se sentia
isolada do resto do Pará e do mundo.
• Internet só chegou na cidade há cinco
anos, diz um “pioneiro”
Ailton Almeida, pai do
vereador Aridelson, é um dos “pioneiros” – como se diz na região a respeito dos
moradores não indígenas mais antigos – de Trairão, na qual chegou, já adulto,
em 3 de outubro de 1980. Na época trabalhava com um caminhão Chevrolet para o
transporte de tubos de concreto de bueiros usados na urbanização do núcleo
habitacional após a abertura da BR-163. Nunca mais saiu do município.
A partir dos anos
1980, a estrada se deteriorou. Os atoleiros eram, muitas vezes,
intransponíveis, o que agravou o isolamento da cidade. A única estação de rádio
captada na localidade, segundo Ailton, era a Rádio Nacional de Brasília. “Era a
nossa diversão. A gente sintonizava para ouvir uma musiquinha, um comentário. A
notícia do Brasil era A voz do Brasil. Também lembro de um programa, o Acredite
se quiser.” A série radiofônica era baseada em “testemunhos de fatos de difícil
explicação”.
A energia elétrica só
chegou em 1986, mas ainda de forma precária, por meio de um motor de quatro
cilindros movido a óleo diesel. A primeira antena parabólica do município era
comunitária, mas ficava na sede de uma fazenda a uns 4 km do centro da cidade.
Os moradores, segundo Ailton, só foram ter acesso às antenas parabólicas
individuais em 1996. Ainda assim, só era possível adquiri-las por meio de
encomendas em grupos, pois eram caras.
Segundo Ailton, a
telefonia só chegou no município há apenas 25 anos, em 1998. O telefone celular
entrou em operação há apenas 15 anos, em 2009. E a internet, tão somente há
cinco anos. “De lá pra cá, só veio melhorando nossa comunicação. Graças a Deus,
não piorou mais, não.”
Hoje Ailton não
desgruda do seu telefone celular e dos grupos de WhatsApp por onde se informa
sobre tudo no município. “Nossa comunicação hoje, pra gente se comunicar, pra
nós espalharmos uma notícia rápida, é tudo por meio de grupo de WhatsApp. Tem
outro jeito, não. Aí você espalha rápido. Toda a região é intercolada em grupos
de WhatsApp. Esses dias uma menina morreu lá em Uruará, num acidente lá.
Botaram no grupo e no mesmo dia a família entrou em contato e ela já foi
buscada. Rápido, rápido”, disse o seu filho, Aridelson.
Fonte: Por Rubens
Valente, da Agencia Pública
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