'Não tem que ter propaganda' de casas de
apostas, diz diretora de saúde mental do governo sobre as 'bets'
Campeonatos de
futebol, vídeos em redes sociais, comerciais no horário nobre.
Na TV, no celular, no
computador ou nos estádios brasileiros, as operadoras de apostas online,
popularmente conhecidas no Brasil como "bets", são quase
onipresentes.
Um levantamento feito
pela consultoria Kantar Ibope e divulgado no início do mês pela revista Meio
& Mensagem, aponta que, apenas em janeiro, as casas de apostas haviam
injetado pelo menos R$ 2,4 bilhões no mercado publicitário do país em 2024.
Mas para a diretora do
Departamento de Saúde Mental do Ministério da Saúde, Sônia Barros, as empresas
que atuam no ramo de apostas online não deveriam poder anunciar os seus
serviços da forma como acontece agora.
"Não tem que ter
propaganda [...] É a ausência de propaganda que faz mais efeito do que as
caixinhas", disse Barros em entrevista à BBC News Brasil na semana
passada.
A lei que regulamentou
o funcionamento das chamadas "bets" no Brasil proíbe a publicidade
desses serviços para crianças, não impõe proibições ou faixas de horário para a
propaganda como ocorre com bebidas e cigarros.
Barros é doutora em
Enfermagem, professora titular aposentada do Departamento de Enfermagem
Materno-Infantil e Psiquiátrica da Escola de Enfermagem da USP e, desde 2023,
comanda a diretoria de Saúde Mental do Ministério da Saúde
Na entrevista, Barros
admite que o Brasil não estava preparado para o aumento na utilização das bets
resultante da liberação em 2018 e da posterior regulamentação do setor feita
durante o primeiro ano do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
"O país como um
todo não está preparado para esse aumento. Vemos, por exemplo, que o Congresso,
que autorizou o jogo há quatro anos, agora está surpreso com a repercussão que
isso tem na vida das pessoas", afirmou.
Ela diz ainda que o
governo ainda não tem um diagnóstico sobre qual o tamanho da crise gerada pelo
uso indiscriminado deste tipo de plataforma, embora dados do próprio ministério
apontem para um aumento no número de atendimentos de pessoas relatando problemas
com a compulsão pelos jogos.
Segundo a pasta, entre
2022 e 2023, houve um aumento de 53% no número de atendimentos relacionados a
transtorno do jogo patológico no Sistema Único de Saúde (SUS).
Foram 1.290
atendimentos naquele ano contra 841 em 2022. Os dados parecem ainda mais
alarmantes quando comparados ao registrado em 2018, ano em que as apostas
online foram liberadas. Naquele ano, houve apenas 108 atendimentos, um número
mais de 10 vezes menor que o registrado no ano passado.
Em meio às críticas
geradas pelos casos de abuso e aumento do endividamento de usuários de apostas
online, Barros admitiu que o governo não tinha um diagnóstico preciso sobre os
impactos sociais e na saúde mental da população durante a regulamentação.
Ela disse, por
exemplo, que o Ministério da Fazenda, que conduziu a regulamentação, não chegou
a pedir um relatório sobre o assunto, mas que o Ministério da Saúde participou
das discussões sobre o tema e conseguiu emplacar mecanismos que, segundo ela,
reduziriam danos aos usuários.
Na entrevista, Barros
também falou sobre as dificuldades para se encontrar soluções para as chamadas
"cracolândias", o aumento no número de casos de "burnout"
no país e os impactos da descriminalização do porte da maconha para uso pessoal.
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Confira os principais trechos da entrevista:
• Qual é o tamanho do problema das bets no
Brasil hoje em relação à saúde mental?
Sônia Barros - Nós não
sabemos por que isso é um fenômeno novo para o Brasil. Os jogos, no Brasil,
existem desde o século passado, mas com a abertura que foi feita em 2018 é que
começamos a identificar o problema.
Temos muitos grupos de
estudos que começaram a se dedicar a esse tema e nós, aqui no Ministério da
Saúde, começamos a tentar identificar também quem é que está atendendo essa
população dentro do SUS.
O que a gente
conseguiu perceber é que houve um aumento no número de atendimentos, mas não
podemos saber se houve aumento no número de pessoas atendidas.
Não podemos dizer que
houve uma causalidade e que houve aumento no número de pessoas que nos
procuraram. A gente supõe que sim, mas também supomos que, hoje, há uma
preocupação maior em se fazer o registro, o diagnóstico, dada a visibilidade
que o tema ganhou.
• O Brasil estava preparado para o avanço
das bets?
Barros - O país como
um todo não está preparado para esse aumento. Vemos, por exemplo, que o
Congresso, que autorizou o jogo há quatro anos, agora está surpreso com a
repercussão que isso tem na vida das pessoas.
Eu digo ‘surpreso’
considerando as declarações que a gente escuta. Esta gestão, logo no primeiro
ano de governo, se preocupou em fazer uma regulamentação [das apostas online]
porque [no passado] haviam sido autorizadas [as apostas online] sem qualquer regulamentação.
Foi o jogo pelo jogo.
O Ministério da Saúde
foi procurado já o ano passado pelo Ministério da Fazenda, que já nos trazia
essa preocupação. Diziam: "Olha, nós vamos regulamentar e estamos
preocupados com a saúde das pessoas".
Então, desde o ano
passado, o Ministério da Fazenda nos convidou e tivemos a preocupação de
contribuir para a regulamentação no sentido da prevenção, da redução de danos e
encaminhamento [de pacientes] para o cuidado.
• Dados apontam que a senhora teria tido
apenas duas reuniões sobre o assunto...
Barros – É um
equívoco. Me reuni sobre o assunto uma vez no ano passado e, neste ano, pelo
menos seis vezes. Houve outras reuniões. Em algumas, eu não estive, mas outros
técnicos foram. Mas o que isso significa?
• O que queremos saber é: o quanto a saúde
mental da população brasileira foi levada em consideração ao longo do processo
de regulamentação?
Barros – Eu posso te
afirmar que, sim. Foi [considerado]. Nós pudemos contribuir no processo de
regulamentação fazendo sugestões, prevendo a possibilidade de redução de danos,
das travas [para vetar apostadores vulneráveis].
• No conjunto de documentos preparatórios
divulgados pelo Ministério da Fazenda via Lei de Acesso a Informação sobre a
medida provisória que regulamentou o funcionamento das bets, não consta nenhum
relatório elaborado pelo Ministério da Saúde nem pela sua diretoria sobre os
potenciais impactos à saúde mental das pessoas por conta das bets. O governo
deveria ter procurado vocês ao longo do processo para tratar deste assunto?
Barros - Mas nós fomos
procurados e nós conversamos bastante com o ministério.
• E vocês elaboraram um parecer ou um
relatório?
Barros - Não. Nós
participávamos da discussão fazendo sugestões que foram perfeitamente acatadas.
• Quais sugestões?
Barros – Fizemos
sugestões para criar mecanismos para ajudar a redução de danos e sobre a
prevenção da patologia [transtorno do jogo patológico]. Eram sugestões sobre
travas para jogadores com problemas e para permitir a autoexclusão de
jogadores.
As sugestões foram
acatadas. Não tem relatório porque não foram pedidos. O que nos interessava era
poder contribuir para que as pessoas tivessem menos danos com a questão do jogo
[...] Já que foi permitido, uma vez que ninguém consultou a população quando
foi autorizado, a ideia é fazer o que for possível para reduzir ao máximo
possível os efeitos negativos disso na vida das pessoas.
• Considerando que o jogo, esse tipo de
jogo estava autorizado desde 2018, ainda que não regulamentado, quão necessário
era ter um diagnóstico sobre o impacto das apostas online antes da
regulamentação?
Barros – Acho que você
deve perguntar ao Ministério da Fazenda, que é o responsável por essa
regulamentação. O que nos cabe é o que estamos fazendo como, por exemplo,
adotar medidas para expandir a rede [de atenção psicossocial] para poder
atender as pessoas que tem um sofrimento mental por causa disso.
É importante lembrar o
seguinte: o jogo causa sofrimento mental? Sim. Mas também precisamos entender
que as pessoas procuram o jogo porque têm sofrimento mental e buscam [no jogo]
algum tipo de alívio. Nós precisamos expandir a rede e estamos com projetos de
capacitação de trabalhadores da rede de saúde mental.
Além disso, estamos
planejando uma ampla campanha de divulgação para a prevenção com avisos em
relação ao risco e aos danos que os jogos podem causar.
• Já há uma data para o início dessa
campanha?
Barros – Ainda não
saberia dizer porque estamos preparando isso de forma muito cuidadosa [...] A
ideia é que ela ajude a prevenir situações, promova a saúde e mostre os riscos.
É claro que, na sequência, vamos ter necessidade de outras capacitações, de outras
campanhas, mas essas são as medidas mais emergenciais.
Estamos, também,
priorizando a habilitação de novos serviços CAPS AD [Centro de Atenção
Psicossocial para Álcool e Drogas], que seriam os mais preparados para lidar
com isso, considerando que o jogo pode ser considerado uma adição [vício].
É importante dizer, no
entanto, que qualquer CAPS do Brasil, tem condições de atender pessoas com
problemas relacionados aos jogos.
• Especialistas com quem conversei me
disseram exatamente o contrário. Eles afirmam que os CAPS não são preparados
para essa nova realidade e que não teriam expertise para tratar do transtorno
do jogo patológico...
Barros - O transtorno
de jogo patológico, como qualquer transtorno da adição, requer as mesmas
medidas. E se alguém te disse diferente, eu desconheço. Você deve estar se
referindo a entrevistas dadas por trabalhadores em saúde mental que disseram
que não estamos preparados [para atender esse público]. Aí, é preciso ponderar.
Estamos saindo de um
período de gestão em que os CAPS foram completamente desmobilizados e
danificados de todas as formas. As pessoas não têm capacitação há muito tempo,
os CAPS não tinham reajuste há muito tempo... saímos de uma situação caótica
[...] Quando o trabalhador diz que não tem capacitação, isto é verdade e por
isso estamos providenciando. O serviço tem limitações? Sim, sem dúvida.
Com relação ao
tratamento [para jogo], nós fizemos uma revisão da literatura internacional
sobre o assunto, que é muito recente, e não há diferença significativa para o
tratamento de outras adições, como álcool e drogas.
É claro que cada
pessoa tem sua singularidade, assim como cada problema de saúde mental tem a
sua, mas não existem grandes diferenças de tratamento para a compulsão pela
droga, álcool ou pelos jogos. São os mesmos tratamentos: psicoterapia e
medicamentos, quando necessário.
• Esses especialistas também dizem que os
governos vêm priorizando o viés de arrecadação em detrimento do impacto que as
bets têm na saúde mental das pessoas. A senhora concorda com essa afirmação?
Barros - Acho que,
mais uma vez, você tem que buscar o governo. Tanto aquele que liberou [gestão
Michel Temer] quanto aquele que está regulamentando.
• Mudando um pouco de assunto, dados
divulgados pelo próprio Ministério da Saúde no primeiro semestre indicavam que
apenas 38% dos municípios brasileiros tinham pelo menos um CAPS, que é uma das
estruturas mais conhecidas do atendimento à saúde mental. O que explica esse
vazio?
Barros - Neste
momento, dos municípios que poderiam ter CAPS, aproximadamente 1.000 não têm. E
não tem por que, muitas vezes, o município não pede ao Ministério da Saúde para
implantar um CAPS. A gente vive pensando em formas de estimular um município a ter
um CAPS.
Algumas vezes, isso
ocorre porque o município já tem uma rede de atenção básica que acaba suprindo
essa demanda de saúde mental. [Esses vazios] não existem porque nós não
estimulamos ou não queiramos que os municípios tenham CAPS, mas somos entes
federados e nós não podemos chegar num município e obrigá-lo a ter um CAPS.
Isso tem que vir da autoridade municipal.
Tem também um outro
fator: nós estávamos há quase 10 anos sem um reajuste nas verbas destinadas
pelo governo federal à manutenção dos CAPS e isso é um desestímulo aos
municípios. No ano passado, a gente fez uma recomposição e neste ano saiu outra
e ainda deve sair mais uma neste ano.
• Neste ano, o tema das chamadas
"cracolândias" ou "cenas de uso de drogas", voltou a pautar
debates nas eleições municipais de São Paulo e de outras cidades. Por que é tão
difícil encontrar uma solução para ele?
Barros - É difícil
porque não está relacionado apenas ao uso da droga. Esse problema está
relacionado a diversos fatores que têm a ver com a vida das pessoas e com a
vida que, por vezes, é escolha dela, mas que também é determinada por outras
circunstâncias. Para ter uma ação nesses grupos e segmentos é preciso ter uma
ação intersetorial fortíssima.
É preciso incluir
soluções de moradia, geração de renda, raça e gênero. Temos determinantes
sociais agindo fortemente e determinando fortemente como essas pessoas vivem.
Não é só por desejo delas. Temos um pensamento, e isso se aplica ao jogo, em
que se pensa que o vício, seja sobre substâncias como drogas ou o jogo, é tido
como um problema de caráter e não como uma doença.
• E qual é a estratégia do governo federal
para esse assunto?
Barros - Nós estamos
trabalhando em conjunto com a Secretara Nacional de Políticas de Drogas
[vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública]. Nós cuidamos da
política de atenção às pessoas [...] nós temos trabalhado com cenários para
pensar em como reduzir ou dar alguma diretriz para essa questão das cenas de
uso.
• Tem algum prazo para que essa estratégia
seja lançada?
Barros - Não tem prazo
porque pensar um projeto desse tipo implica encaminhamentos diferentes, como,
por exemplo, para a questão da moradia. E isso o Ministério da Saúde não tem
como resolver sozinho.
Estamos buscando essas
parcerias [...] Enquanto isso, o que temos são os grupos que têm trabalhado com
a população de rua, na redução de danos e tentando buscar residências para essa
população. Sabemos que isso é uma medida ainda pequena e que precisa ser
ampliada e que precisa ser vista como uma política maior.
• Nesse ano, o STF descriminalizou o porte
de maconha para uso pessoal. Quais os impactos já sentidos na rede de saúde
pública em decorrência dessa decisão?
Barros – Não
detectamos nada, por enquanto. Na semana passada, tive uma reunião com os
coordenadores estaduais de saúde mental e com os que atuam nas capitais e não
houve nenhum relato sobre isso.
Também não houve
nenhum aumento na busca por atendimento. No entanto, como existe essa
expectativa, o Ministério da Saúde e a Senad estão trabalhando conjuntamente
para pensar em como vamos lidar com essa decisão [...] O que precisamos é
pensar como será feito o encaminhamento do usuário.
O fato de que não
haverá uma punição criminal não significa, necessariamente, que todo usuário
pego com maconha será um problema de saúde.
• Qual sua avaliação sobre essa decisão do
ponto de vista da saúde mental? A decisão foi satisfatória?
Barros - Acho que é
uma situação que não tem bom nem mau, né? O que nós entendemos é que fazer o
uso dessa quantidade de maconha, isto porque não estamos falando de todas as
drogas, aparentemente não é prejudicial.
Lembrando sempre que a
questão do uso de drogas ou do jogo envolve outras questões de sofrimento
mental. Isso tem a ver com o que antecede esse uso. O que leva as pessoas a
esse uso.
• Dados apontam que houve um aumento no
número de casos da síndrome de burnout no Brasil. O Brasil saiu de 178
afastamentos laborais por burnout em 2019 para 421 em 2023. O Brasil vive uma
epidemia de burnout?
Barros - Eu não creio
que o Brasil viva uma epidemia de burnout. Temos que ver que muitas coisas
aconteceram neste período. Desde um governo que, no meu ponto de vista,
exaltava a violência e a tensão entre as pessoas, passando por uma epidemia
[Covid-19] que matou muita gente [...] Foi um momento bastante crítico para se
analisar. Há também o fato de que, agora, há mais gente estudando o tema e isso
dá uma dimensão maior do problema. Mas não estou dizendo que o problema não
existe. Estou apenas dizendo que ele começa a ter uma maior divulgação
• Gostaria de encerrar entrevista com mais
uma pergunta sobre as bets. A senhora comparou o tratamento ao jogo compulsivo
ao dado à dependência de drogas e álcool. Hoje, no Brasil, há regras rígidas
sobre a publicidade para bebidas alcóolicas e cigarros. Qual deveria ser o
limite para a publicidade das bets?
Barros - Do meu ponto
de vista, deveria ser igual ao cigarro. Começou tirando as grandes figuras, as
grandes imagens e depois proibiu.
• Na sua opinião, as bets deveriam ser
proibidas de anunciar?
Barros - Deveria. A
propaganda faz o que é papel dela que é seduzir e convencer o outro de que
aquilo é um sinal de bem-estar, de estar bem na vida. Tudo o que ela produz é
no sentido de criar uma imagem de que aquilo é só benefício. Veja as figuras
que eles trazem [para fazer propaganda]. São todos bem-sucedidos. Não tem
ninguém ruim de vida. É isso o que a propaganda traz.
Então, não tem que ter
propaganda. É como no cigarro. Há um estudo que diz que o que faz efeito [sobre
as pessoas] não é exatamente as imagens que estão nas caixinhas [de cigarro].
Aquilo, parece, não tem efeito sobre as pessoas. É a ausência de propaganda que
faz mais efeito do que as caixinhas.
• E a senhora acha que há um ambiente para
que isso de fato ocorra no Brasil?
Barros - Não sei
dizer. Eu creio que haverá uma forte tendência a colocar limites e limites
sobre quem faz [a publicidade] e como faz. Mas garantir se será banido, eu não
sei dizer. Apesar do interesse do grande capital porque o comércio e os bancos
estão dizendo que o dinheiro está "fugindo". É preciso saber quem vai
ganhar essa queda de braço entre o capital internacional e as betas.
Fonte: BBC News Brasil
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