Eleições e direito ao aborto: um debate
indispensável
As eleições retratam
momentos em que candidatos e candidatas defendem seus projetos políticos para
conquistar o público que poderá elegê-los/as. No âmbito municipal, a corrida
eleitoral pelas prefeituras deve tratar de compromissos como: a organização dos
serviços públicos de interesse local; atendimento à comunidade, ouvindo suas
reivindicações e seus anseios; e criação e manutenção da infraestrutura do
município para atender à população, por exemplo. Nesse contexto, a garantia dos
direitos das mulheres é transversal a diferentes compromissos das prefeituras
quanto à saúde, segurança e trabalho, considerando idade, raça, classe, local
de moradia, entre outros marcadores sociais. Apesar de o discurso eleitoral ser
elaborado para conquista de votos, ele reflete como os projetos políticos são
apresentados e dialogados com a sociedade. Implica chances e riscos de voto,
tornando-se um importante conteúdo a ser analisado a partir da perspectiva
feminista e antirracista.
Nos últimos anos, as
políticas públicas para as mulheres têm sofrido grave sucateamento dado o
avanço da extrema direita, que orienta a construção de projetos
antidemocráticos sem diálogo com a sociedade civil, sem base em evidências
científicas, e orientados por modelos neoliberais, fundamentalistas,
conservadores e de forte conotação moralista. Nesse contexto, observa-se que a
agenda de gênero tem sido sistematicamente desfinanciada, terceirizada ou
anulada por conflitos de ordem ideológica. Nestas eleições municipais, as
mulheres representaram apenas 18% das pessoas eleitas no primeiro turno, taxa
2% maior ao resultado de 2020. Delas, a grande maioria (4 entre 5) é de centro
e direita. Vale destacar que nenhuma mulher foi eleita prefeita nas capitais no
primeiro turno, apesar de serem 52% do eleitorado.
Esses dados da corrida
eleitoral também refletem os impactos da violência política de gênero e raça,
principalmente sobre candidaturas e mandatos das mulheres progressistas. A
misoginia, a transfobia e o etarismo foram formas de violência muito presentes
nas redes sociais das candidatas. Além disso, a falta de apoio de seus partidos
também se configura como uma forma de violência política institucional, vide
aprovação da Proposta de Emenda Constitucional número 9 no Congresso Nacional
este ano.
Apesar de a direita e
o centro terem tido destaque nestas eleições, é importante continuarmos
apontando e denunciando as movimentações da extrema direita, representada pelo
Partido Liberal (PL), que teve um resultado melhor do que o Partido dos
Trabalhadores nas prefeituras das capitais, por exemplo. A ascensão da
ideologia política antidemocrática não é um caso exclusivamente brasileiro, mas
está articulada transnacionalmente, ameaçando direitos das minorias
representativas como mulheres, pessoas negras, pessoas com deficiência,
população LGBTQIA+, quilombola e indígena. No Brasil, em especial, temos
observado também o plano da extrema direita em capilarizar-se, levando aos
territórios seus projetos antidireitos que tratam principalmente de restringir
ou difamar o direito ao aborto. Por exemplo: no Congresso Nacional tramitam
hoje três projetos de lei (PLs)1 que tratam da implementação do Dia ou Semana
do Nascituro, o que leva a destinar verba pública a campanhas de desinformação
sobre a interrupção da gestação. Não à toa, existem projetos de lei com essa
mesma proposta em diferentes municípios e estados. No Ceará (Fortaleza e
Sobral), em Minas Gerais, (Belo Horizonte e Uberlândia), no Rio Grande do Sul
(Porto Alegre) e no Rio de Janeiro (Duque de Caxias), propõe-se da criação do
dia ou semana a sessões solenes para tratar do tema. Essas estratégias
demonstram o quanto ele é relevante para compreeender como a agenda de gênero
tem sido apresentada dentro do debate eleitoral.
Não está sob
competência de prefeitos/as ou vereadores/as legislar sobre a criminalização ou
legalização do aborto – essa é uma discussão restrita ao âmbito federal. De
todo modo, é responsabilidade desses/as agentes políticos/as fiscalizar e
assegurar o acesso ao aborto garantido por lei nos casos de estupro, risco de
vida para a gestante e feto anencéfalo e que devem ser atendidos pelo Sistema
Único de Saúde (SUS) em sua estrutura municipais.
É nos territórios que
as mulheres e meninas buscam a primeira porta de atendimento à saúde
reprodutiva: é essa rede que precisa ser a primeira garantidora do direito.
Esse não é um trabalho fácil e ao mesmo tempo é urgente, já que existe uma
série de desafios e barreiras para acesso a esse direito em todo o território
brasileiro, o que compromete a vida, saúde e a cidadania de mulheres, meninas e
pessoas que podem gestar. Como alguns exemplos, há a oportunidade para que
prefeitos/as e vereadores/as realizem campanhas com informações seguras sobre
esse direito, fiscalizem os serviços de saúde para que se garanta um
atendimento respeitoso e de qualidade, promovam programas de educação sexual e
reprodutiva nas escolas para que se identifique e se previna os abusos contra
crianças e adolescentes, invistam na capacitação com perspectiva de gênero e
antirracista de servidores do âmbito da saúde, assistência social, psicologia e
educação para tratarem do tema em seus ofícios, e também ampliem os serviços
que realizam o procedimento, considerando que sua escassez faz com que o
público que precisa seja obrigado a se deslocar até para outros estados para
acessar seus direitos.
Nestas eleições, o
acesso ao aborto previsto em lei foi um tema tratado de forma tímida nas
oportunidades que os/as candidatas/os tiveram para apresentar suas propostas,
seja nos debates, nas redes sociais ou nos próprios programas de governo. De
todo modo, notamos que a defesa do direito ao aborto legal foi um
posicionamento frequente de candidatos/as quando perguntados/as sobre o tema.
Atribuímos a isso aos avanços obtidos na Campanha Criança Não é Mãe, que
reestabeleu o compromisso institucional em defender o aborto legal como um
direito garantido por lei. Até mesmo Ricardo Nunes (MDB), candidato à reeleição
para prefeitura de São Paulo, afirmou a existência e ter compromisso com o
direito ao aborto legal cidade, apesar de sabermos que na prática, a ação é
outra, uma vez que sua gestão manteve fechado o Hospital Vila Nova
Cachoeirinha, referência em atendimento para o procedimento de aborto acima das
22 semanas. Os/as candidatos/as de esquerda nas capitais com chances de eleição
também seguiram a mesma linha quando interpelados, mas, ao contrário de seu
compromisso político, não quiseram se comprometer com propostas de políticas
que buscassem defender ou fortalecer os serviços em seus territórios. Quem se
comprometeu com a criação e implementação dessas políticas foram os/as
candidatos/as de esquerda sem representatividade nas pesquisas de opinião
pública.
Esse é um dos
resultados preliminares da análise que o CFEMEA realizou por meio do
levantamento dos planos de governo registrados no Tribunal Superior Eleitoral
(TSE) de candidatos e candidatas à prefeitura de cinco capitais brasileiras
cobrindo as cinco regiões brasileiras: Boa Vista (RR), São Paulo (SP), Porto
Alegre (RS), Salvador (BA) e Cuiabá (MT). No total, foram analisados 32 planos
de governo, referentes aos 33 candidatos desses territórios (um deles não
submeteu o conteúdo do plano, apenas a capa e contracapa do documento). De
todos os candidatos/as às prefeituras analisados/as, sete mencionam a questão
do aborto. Apenas um deles é do campo da extrema direita (PL) e apresenta
proposta que ameaça o acesso ao aborto legal e revitimiza mulheres, meninas e
pessoas que podem gestar vítimas de violência sexual. Todos os demais,
fortalecem o acesso ao aborto legal e defendem até mesmo uma legalização mais
ampla. São candidatos/as do campo da esquerda mais radical, de partidos como o
Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado – PSTU (2 candidatos: Fabiana
Sanguiné, de Porto Alegre e Altino Prazeres, de São Paulo), Unidade Popular –
UP (2 candidatos: Luciano do MLB, de Porto Alegre e Ricardo Senese, de São
Paulo), Partido Socialismo e Liberdade – PSOL (1 candidato: Kleber Rosa, em
Salvador) e Partido Comunista Brasileiro – PCB (1 candidato: Giovani Damico, de
Salvador) e que em sua maioria têm seu tempo de televisão prejudicado pela
regra de proporcionalidade no Congresso.
Chama a atenção a
proposta do candidato à prefeitura de Cuiabá, Abilio Brunini, pelo PL, que é
deputado federal2, inclusive coautor do PL 1904/24 (PL do Estupro), cuja
intenção consiste em “Incentivar política de doação de bebês em interesse de
aborto”. Essa proposta pode parecer inocente para leitores leigos, ainda mais
por estar dentro da seção de “Crianças, Jovens e Idosos Inclusão, Proteção e
Igualdade”. Entretanto, essa proposta cruel viola direitos e constrange as
mulheres e meninas vítimas de violência sexual a continuarem com a gestação.
É importante destacar
também que essa proposta propaga a naturalização da gestação de meninas no
município. Essa abordagem também tem reflexo no que tem sido proposto na Câmara
dos Deputados. Hoje ao menos três projetos com proposta similar estão em tramitação
na casa. Todos eles preveem um auxílio financeiro para que a pessoa gestante
decida por não interromper a gestação resultante de estupro, além de incentivar
famílias que queiram adotar os bebês. Há dois projetos de lei antigos apensados
ao Estatuto do Nascituro, como o PL 1763/2007 e o PL 3748/2008, e o mais
recente PL 3797/2024, cujo incentivo é chamado de “bolsa vida” dedicado à
“família que adotar uma criança que for doada pela mãe que desejava praticar o
aborto”. Além de prever a garantia de um salário mínimo mensal, propõe o
abatimento de despesas de aluguel e até imposto de renda. Fazer uma mulher
vítima de estupro desistir de interromper uma gestação para a felicidade de uma
outra família está se institucionalizando como propostas de lei, e em projetos
de governo à prefeitura no Brasil. Essas propostas abrem margem para que o
estupro seja considerado forma de geração de renda e benefícios para terceiros.
Nos planos
progressistas de governo para prefeituras que citam o aborto, alguns sinalizam
compromisso e intenção de defender os direitos das mulheres, mas precisam de
ajustes para que se tornem viáveis considerando as atribuições dadas ao poder
executivo municipal. Duas propostas, mais especificamente de Ricardo Senese
(UP/São Paulo) e de Giovani Damico (PCB/Salvador), amparam-se na defesa da
legalização e/ou descriminação do aborto. A sinalização é muito importante – e
espera-se que seja materializada por meio da incidência política junto ao
Congresso Nacional refletindo o compromisso na defesa dos direitos das mulheres
de seus municípios. Outro plano de governo, de candidato Altino Prazeres
(PSTU), de São Paulo, critica a atuação da gestão de Ricardo Nunes, candidato à
reeleição, frente ao fechamento do Hospital Vila Nova Cachoeirinha, pedindo o
reestabelecimento dos serviços de aborto legal. Apenas três planos de governo
apresentaram propostas significativas sobre o tema, de autoria de Fabiana
Sanguiné (PSTU/Porto Alegre), Luciano do MLB (UP/Porto Alegre) e de Kleber Rosa
(PSOL/Salvador).
É possível notar que o
aborto geralmente aparece localizado na seção da “saúde”, ligado à defesa da
educação sexual, de contraceptivos e do aborto legal, planejamento familiar,
serviços de atendimento às vítimas de violência sexual, assim como a prevenção
e combate às ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis). Também foi
identificada a proposta, mais especificamente de Kleber Rosa, de criação de
protocolo municipal de atendimento e acolhimento ao aborto legal, complementar
ao do SUS, com a ampliação de profissionais com atuação específica para
realizar o atendimento. Por fim, também notamos menções significativas ao PL
1904/24, PL do Estupro, que tramita na Câmara em regime de urgência. Os/as
candidatos/as referem-se ao projeto alertando para as ameaças sobre os direitos
reprodutivos de mulheres e meninas, assim como identificando projetos similares
em seus territórios que devem ser combatidos. Esta é uma importante sinalização
que o CFÊMEA detalhará no lançamento completo da análise, demonstrando a dimensão
da abordagem do tema.
A saúde reprodutiva é
uma pauta urgente em nível territorial e está ancorada no direito à reprodução,
garantindo a maternidade digna e o bem-estar da prole, como o direito a não
reprodução, conforme a justiça reprodutiva nos orienta. Para isso, precisamos,
por exemplo, da educação de qualidade que incorpore as diferenças, de um
sistema de saúde forte, capilarizado, bem financiado e com uma formação capaz
de garantir às mulheres, meninas e pessoas que gestam informações e cuidados
sobre o que se passa em seus corpos. É um direito que não caminha sozinho: está
ligado à educação, saúde, saneamento básico, segurança, alimentação, ao meio
ambiente e ao orçamento público em todos os níveis, municipal, estadual e
federal. Por isso, para garantir a saúde reprodutiva, o/a candidato/a precisa
olhar o todo, sem estigmas, e considerar os contextos diferenciados em que
vivem as mulheres e seus filhos e filhas. Muitos foram os avanços nesse sentido
e identificamos que é preciso avançar de forma considerável, inclusive em candidaturas
progressistas que têm possibilidade de eleição às prefeituras nas capitais
analisadas.
Apesar do resultados
dos esforços das organizações de mulheres, feministas e de defesa de direito
das crianças e adolescentes em compromisso com o aborto legal na Campanha
Criança Não é Mãe ter enfraquecido o discurso antiaborto da extrema direita, o
compromisso com as propostas de governo sobre o tema tem sido assumido de forma
mais consistente por os/as candidatos/as de pouca expressividade nas pesquisas
eleitorais, o que abre margem à interpretação de que a agenda dos direitos
sexuais e reprodutivos está sendo tratada como um tema que supostamente pudesse
prejudicar a angariação de votos.
Este artigo é uma
abordagem inicial de um estudo em andamento pelo Cfemea para refletir sobre os
discursos eleitorais no 1º turno das eleições municipais e a agenda de gênero
em suas interseccionalidades. Nesta primeira abordagem já é perceptível que o direito
ao aborto, mesmo os três casos previstos na lei atual, teve presença tímida no
1º turno das eleições municipais de 2024 nas cinco capitais brasileiras
analisadas.
É fundamental que as
candidaturas tanto aos poderes legislativos quanto executivos, municipais,
estaduais e federais se comprometam com os direitos das mulheres, meninas e
pessoas que gestam ainda mais quando se trata de mais de metade da população
brasileira. Assumir o compromisso com os direitos sexuais e reprodutivos,
avançando no direito ao aborto legal é uma forma de viabilizar que as eleitoras
possam acessar melhores condições de vida, trabalho, educação, saúde e
efetivamente construirmos uma democracia no Brasil.
1 PL 4281/2023
(Senado) Institui o Dia Nacional do Nascituro, a ser comemorado, anualmente, em
8 de outubro, e a Semana de Defesa e Promoção da Vida, a ser comemorada na
semana que o antecede. Link de acesso:
http://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2392991
PL 2611/2021 (Câmara)
Institui o Dia Nacional do Nascituro e de Conscientização sobre os Riscos do
Aborto, a ser comemorado, anualmente, em 8 de outubro. Link de
acesso:http://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2291805
PL 4149/2019 (Câmara)
Institui a Semana Nacional do Nascituro. Link de acesso:
http://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2212577
2 O deputado e
candidato a prefeito também é autor da PEC 29/2024, que “altera a Constituição
Federal para acrescentar no art. 5º texto sobre o marco temporal de início da
vida humana explicitando de forma inequívoca a inviolabilidade do direito à
vida, desde a sua concepção, bem como cria o inciso LXXX para especificar que a
concepção é a junção do gameta masculino e o feminino, ocorrida durante a
fecundação, em local propício para o desenvolvimento celular”, que visa
criminalizar o aborto integralmente.
Fonte: CFEMEA
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