As cidades que se inspiram em plantações de
arroz para evitar enchentes
Um dos momentos mais
memoráveis vividos por Kotchakorn Voraakhom quando era criança em Bangkok, na
Tailândia, nos anos 1980, foi o dia em que ela brincou nas águas da enchente em
frente à sua casa, em um pequeno barco construído pelo seu pai.
"Eu fiquei tão
feliz por não precisar ir à escola porque não sabíamos como chegar lá",
relembra a arquiteta paisagista, moradora na capital tailandesa.
Mas, cerca de 30 anos
depois, as cheias deixaram de ser uma alegre recordação da infância e se
tornaram uma experiência devastadora.
Em 2011, Voraakhom e
sua família, entre milhões de outras pessoas em Bangkok, foram desalojados,
quando fortes chuvas inundaram grande parte da Tailândia e as águas chegaram
até a capital.
Foram as maiores
enchentes do país em décadas – um desastre nacional que durou mais de três
meses e matou mais de 800 pessoas. Os cientistas relacionaram o aumento das
chuvas e as enchentes às emissões de gases do efeito estufa, causadas pelas
atividades humanas.
O desastre abalou
Voraakhom profundamente. Ela acreditou que aquela seria a hora de usar seus
conhecimentos para fazer algo pela sua cidade natal.
Ela abriu seu próprio
escritório de arquitetura e paisagismo, chamado Landprocess. E, na última
década, Voraakhom projetou parques, telhados verdes e espaços públicos na baixa
altitude da cidade, para ajudar as pessoas a aumentar sua resistência às enchentes.
Seu projeto mais
curioso até agora talvez seja o enorme teto de uma universidade tomada pela
natureza, inspirado nos terraços de produção de arroz – uma forma de
agricultura tradicional, praticada na Ásia há cerca de 5 mil anos.
A Tailândia, a China e
outros países asiáticos são vulneráveis aos impactos climáticos.
Neste ano, o número de
enchentes significativas na China foi o mais alto desde o início dos registros.
Já os agricultores tailandeses estão expostos ao aumento do calor, das secas e
das cheias, causado pelas mudanças climáticas.
O teto da
universidade, projetado por Voraakhom, faz parte de uma tendência maior. Os
arquitetos asiáticos estão buscando inspiração nos terraços de arroz e em
outras tradições agrícolas da região, para ajudar as comunidades urbanas a
reduzir enchentes e alagamentos.
Os exemplos incluem
parques alagáveis em cidades chinesas até casas no Vietnã com telhados
inspirados em campos de arroz.
Para Voraakhom,
"muitas das respostas para o futuro das mudanças climáticas, na verdade,
estão no passado."
Na Universidade
Thammasat, na zona norte de Bangkok, pequenos campos de arroz em diferentes
níveis caem em cascata do topo do edifício, ao longo do telhado verde projetado
por Voraakhom. A estrutura permite que o campus colete água da chuva e cultive
alimentos.
Existem quatro tanques
em torno do edifício para capturar e reter o fluxo de água. Nos dias secos,
esta água é bombeada de volta para cima, utilizando a energia limpa gerada
pelos painéis solares instalados no teto. A água é então usada para irrigar os
campos de arroz no telhado.
Construído em 2019, o
local formava, na época, a maior fazenda urbana em telhados do continente
asiático. Dos seus 22 mil metros quadrados, 7 mil foram dedicados à agricultura
orgânica.
Em comparação com um
projeto feito de concreto, o telhado verde pode reduzir a velocidade de
escoamento da água da chuva em cerca de 20 vezes, segundo as estimativas de
Voraakhom. O fluxo excessivo de água da chuva para a terra é um dos grandes
problemas de Bangkok.
O telhado verde também
pode reduzir a temperatura dentro do edifico em 2 a 4 °C durante os quentes
verões que marcam a capital tailandesa, segundo a arquiteta.
Os terraços são
formados por campos de arroz em diferentes níveis. Eles são normalmente criados
por pequenos agricultores ao longo das encostas de morros e montanhas, para
maximizar o uso da terra.
Os terraços de arroz
podem ser encontrados em muitos países asiáticos, como a China, Japão,
Tailândia, Vietnã e Filipinas. Sua origem pode ser traçada até a bacia do rio
Yangtze, na China, mais de 5 mil anos atrás.
Embora seus formatos e
tamanhos possam variar, todos os terraços de arroz são construídos acompanhando
as linhas de contorno naturais. Isso significa que cada camada possui a mesma
elevação sobre o nível do mar.
Este feito permite a
coleta e retenção da água da chuva, que é utilizada para irrigar o solo e os
campos agrícolas.
Alguns terraços de
arroz, como os da etnia Han, no sul da China, ficam nas margens dos rios. Isso
permite que o solo escalonado reduza, desacelere e purifique o excesso de água
da chuva que corre do topo da montanha em direção ao vale.
Toda esta tecnologia
nativa foi transmitida ao longo de gerações de pequenos agricultores. Agora,
ela pode trazer imensos benefícios para as cidades asiáticas que lutam para
enfrentar as tempestades, segundo o professor de arquitetura e paisagismo Yu
Kongjian, da Universidade de Pequim, na China. Ele é o responsável pelo
conceito chinês de "cidades-esponja".
Como ocorre em muitas
outras partes da Ásia, o clima das cidades chinesas é de monções, caracterizado
por verões chuvosos e invernos mais secos. Elas podem receber até um terço das
suas chuvas anuais (300-500 mm) em um único dia, segundo Yu.
O professor defende
que, devido a estas fortes precipitações, as medidas de controle de enchentes
precisam fazer uso dos modos locais de adaptação às cheias, que foram testados
e comprovados por milhares de anos.
Os terraços de arroz
são um dos pilares da teoria das cidades-esponja, desenvolvida por Yu. O
arquiteto aconselha as cidades a recorrer ao solo e às áreas verdes – sem aço,
nem cimento – para solucionar os problemas de excesso de chuvas e enchentes.
Yu destaca que a água
da chuva precisa ser absorvida e retida na fonte. Seu fluxo deve ser
desacelerado e dirigido até o seu destino. E os terraços de arroz tratam de
reduzir os fluxos de água na fonte.
Desde 1997, Yu já
desenvolveu projetos para mais de 500 "cidades-esponja" em toda a
China, usando a formação de terraços. E os estudos demonstraram que alguns
deles estão trazendo resultados impressionantes.
Um exemplo é o parque
Yanweizhou, em Jinhua, no leste da China – a cidade natal de Yu. Inaugurado em
2014, o parque inclui um banco em forma de terraço de arroz, plantado com
gramíneas que podem se adaptar ao ambiente subaquático.
Esta função de
"esponja" consegue reduzir o nível máximo de cheia anual do parque em
até 63% em comparação com um parque de concreto, segundo um estudo realizado em
2019.
Estes projetos também
podem filtrar a água das enchentes, que é frequentemente contaminada por
esgotos, produtos químicos e outros poluentes.
Outro projeto de Yu –
o parque Houtan de Xangai, no leste da China – fica situado em um terreno que,
antes, era altamente poluído, por ter sido usado como aterro de resíduos
industriais. O parque também utiliza o conceito de formação de terraços de Yu.
Desde sua inauguração,
em 2009, o parque é capaz de purificar 800 toneladas de água altamente poluída
por hectare, todos os dias, segundo relatou Yu em um estudo de 2019, depois de
diversos testes realizados no local.
Agora, segundo o
estudo, a água do parque atende ao padrão chinês de terceira categoria – água
suficientemente limpa para os peixes.
• Outros países
A tendência de
formação de terraços já se espalhou para o Vietnã.
Doan Thanh Ha é o
fundador e principal arquiteto do escritório H&P Architects, com sede em
Hanói. Ele combina a sabedoria da agricultura tradicional com seus projetos de
construção ecológica desde 2009.
Seus trabalhos incluem
uma casa de três pavimentos com teto inspirado em terraços de arroz, onde seu
morador pode cultivar produtos agrícolas.
Ele também criou uma
casa flutuante de baixo custo, feita de bambu, que pode ser adaptada para
enfrentar enchentes e o aumento do nível do mar em residências mais pobres. Nas
Filipinas, as casas de bambu flutuantes já estão ajudando os moradores locais a
enfrentar enchentes, furacões e o aumento do nível das águas.
Para Ha, os campos de
arroz em terraços do Vietnã são um exemplo de conhecimento local que transmite
profunda compreensão das leis naturais, particularmente da água.
Segundo ele, este tipo
de conhecimento local também pode desempenhar "papel significativo"
para ajudar as comunidades modernas a preservar a biodiversidade e os
ecossistemas, enfrentando as mudanças climáticas.
Yu é da mesma opinião.
Com o aquecimento global trazendo chuvas mais fortes para o continente europeu,
por exemplo, o uso dos terraços de arroz poderia ser levado até para cidades
como Londres, segundo ele.
"Qualquer encosta
ou superfície inclinada pode ser transformada em terraços ocupados pela
natureza, para absorver a água da chuva", destaca ele.
• Toques de despertar
Muitas das cidades
asiáticas são vastas e densamente povoadas. A dupla ameaça causada pelas
mudanças climáticas e por décadas de urbanização desenfreada fez com que elas
começassem a repensar suas estratégias de gestão da água da chuva nos últimos
anos.
Em muitos lugares, as
chuvas das monções estão ficando mais intensas, os furacões estão ficando mais
destrutivos e o nível do mar está subindo. Algumas cidades estão afundando
rapidamente, devido à perda do lençol freático e ao peso das construções, como
Jacarta, na Indonésia, e Ho Chi Minh, no Vietnã.
Em muitas destas
cidades, a água da chuva não consegue penetrar nas superfícies pavimentadas.
Por isso, o solo não tem a chance de absorver e armazenar a água da chuva para
colaborar com o sistema natural do ciclo da água, explica a professora de
design e planejamento urbano Lei Yanhui, da Universidade Xi'an
Jiaotong-Liverpool em Suzhou, na China.
Além disso, os
sistemas de drenagem de algumas cidades não separam a água da chuva do esgoto,
ficando sujeitos a sobrecargas e transbordamentos durante as tempestades,
segundo Lei. A contaminação da água pelo esgoto é um problema que também ocorre
no Reino Unido e no Brasil.
No verão de 2012, um
ano depois das fortes cheias que atingiram a Tailândia, imensos volumes de
chuva atingiram Pequim, resultando em um recorde de 460 mm de chuva em apenas
18 horas. O evento causou 79 mortes e prejuízos de cerca de US$ 1,6 bilhão
(cerca de R$ 9 bilhões).
Mas a enchente de 2012
em Pequim trouxe transformações.
"Depois do
evento, a China começou a dedicar mais atenção à drenagem da água da chuva [em
áreas urbanas] e à prevenção de enchentes", afirma a professora de
controle das cheias urbanas Shao Zhiyu, da Universidade de Chongqing, na China.
Em 2014, a China
adotou oficialmente o conceito de "cidades-esponja" como programa
nacional. No ano seguinte, 16 cidades foram escolhidas para servir de
"pilotos" de teste do modelo.
Chongqing foi uma
delas – uma megacidade montanhosa no centro da China, com 32 milhões de
habitantes.
"Costumávamos
pensar que deveríamos controlar as enchentes", explica Shao. "Agora,
percebemos que as enchentes não podem ser controladas e [precisamos] nos
adaptar a elas, pois o poder da natureza é grande demais."
Shao tem formação em
engenharia. Ela participou de uma equipe que recebeu a tarefa de projetar uma
nova área "esponjosa" nas margens do rio em Chongqing. A área inclui
terraços repletos de plantas nas encostas.
"O projeto
pretendia inicialmente purificar a água da chuva antes que ela fluísse para o
rio", ela conta, "mas ele também consegue reduzir o nível de pico das
enchentes, exceto em chuvas excepcionais."
Para Voraakhom, em
Bangkok, os terraços de arroz são uma lembrança do estilo de vida dos seus
ancestrais – simples, mas adaptável. Afinal, eles viveram em harmonia com a
água e as mudanças sazonais por milênios.
A chuva costumava ser
bem recebida pelos tailandeses. Ela alimenta a terra e permite o cultivo do
arroz.
"Mas estamos
transformando a melhor região agrícola do mundo na pior cidade que você pode
imaginar, que é Bangkok", segundo a arquiteta.
Com 11 milhões de
habitantes e situada a 1,5 metro acima do nível do mar, a capital tailandesa
tem apenas sete metros quadrados de áreas verdes públicas por habitante, um dos
níveis mais baixos da Ásia.
Bangkok passou 30 anos
sem construir um único parque público. Apenas em 2017, foi inaugurado o Parque
Centenário Chulalongkorn, com 4,5 hectares – outro projeto de Voraakhom, criado
para reter as enchentes.
O parque foi
construído em um ângulo de três graus, que permite canalizar a água das
tempestades do seu ponto mais alto até um tanque de retenção. Ao todo, ele é
capaz de reter 4,5 milhões de litros de água – o equivalente a cerca de uma vez
e meia a capacidade de uma piscina olímpica.
Para Voraakhom,
"aumentar a resiliência urbana é [nossa] única forma de sobreviver".
• Plantas vs. canos
As soluções baseadas
na natureza – na forma de infraestrutura "verde", como margens de
rios inspiradas em terraços de arroz, parques urbanos arborizados ou telhados
verdes – vêm chamando cada vez mais a atenção.
Com isso, os
especialistas começaram a discutir se elas realmente poderiam enfrentar
tempestades cada vez mais implacáveis, em comparação com a infraestrutura
"cinza" convencional, como represas e canos.
O professor de
engenharia Wang Yuhong, da Universidade Politécnica de Hong Kong, na China,
acredita que a infraestrutura verde pode ser "um suplemento
significativo" para a infraestrutura cinza, se for aplicada em condições
geográficas adequadas.
Para ele, os projetos
baseados em terraços de arroz poderão beneficiar cidades montanhosas, como Hong
Kong, onde a água da chuva pode descer com rapidez pelas suas encostas
inclinadas.
Famosa pela selva
urbana vista do topo do pico Victoria, Hong Kong construiu um enorme túnel de
concreto para interceptar a água da chuva em altitudes intermediárias da ilha e
levá-la para o mar, evitando inundações no centro da cidade.
"Mas este método
de coleta de água da chuva é caro", explica Wang. O projeto foi inaugurado
em 2012 e custou cerca de 3,9 bilhões de dólares de Hong Kong (cerca de US$ 504
milhões ou R$ 2,8 bilhões).
"Se copiarmos o
princípio do terraço de arroz, podemos reter a água da chuva em altitude
intermediária de formas diferentes – construindo jardins de chuva, por exemplo.
Para muitas cidades, este seria um método mais econômico."
O professor destaca
que, em algumas cidades, esta ideia ainda pode ser muito cara, de difícil
implementação técnica e causar altos níveis de emissões de carbono. É o caso de
locais que exigem a construção de estruturas de concreto a partir do solo, para
imitar as encostas.
A verdade é que não
será fácil oferecer qualquer tipo de infraestrutura verde às cidades mais
densamente povoadas do mundo. As cidades asiáticas são compactas e, "por
isso, é muito difícil encontrar espaços com tamanho suficiente para agirem como
'esponjas' que absorvam a água das enchentes", explica Wang.
Uma forma mais eficaz,
segundo ele, é construir enormes reservatórios subterrâneos para armazenar a
água das tempestades, como fizeram Hong Kong e Tóquio, no Japão.
Wang e sua equipe
estão trabalhando em uma solução para permitir que as cidades armazenem água da
chuva sob as ruas, utilizando pedras de pavimentação "porosas". Mas
as "instalações artificiais", como reservatórios subterrâneos, trazem
desvantagens.
"Eles são
isolados e não conseguem ajudar muito a formar um sistema de reciclagem natural
da água da chuva, como [os baseados em] terraços de arroz", destaca Lei
Yanhui.
Shao Zhiyu afirma que
a infraestrutura verde pode trazer efeitos óbvios, como reduzir os níveis de
pico das cheias, no caso das fortes chuvas normalmente observadas uma vez a
cada três a cinco anos.
"Mas, para
[tempestades] mais severas, como as que ocorrem uma vez a cada 10 anos ou mais,
ainda precisamos depender da infraestrutura cinza, como a drenagem urbana,
estações de bombeamento e comportas contra enchentes", explica ela.
A infraestrutura das
cidades-esponja também pode ser combinada com outros mecanismos para reduzir as
enchentes, segundo Shao.
Ela destaca que o
planejamento urbano sistemático pode, por exemplo, desviar as águas das cheias
de algumas ruas principais para ruas menos importantes. Com isso, a cidade
ainda pode manter suas funções básicas, principalmente tarefas de resgate,
durante as enchentes.
Já para Yu Kongjian, o
conceito de cidades-esponja não é uma rejeição completa da infraestrutura
cinza. Ele afirma que as cidades deveriam priorizar o uso de infraestrutura
verde, "mas, se for realmente impossível, podemos usar canos".
Deixando de lado as
discussões sobre o uso de infraestrutura verde ou cinza, muitos concordam que
as cidades precisam aproveitar a experiência dos seus ancestrais para poderem
se adaptar ao mundo natural e às suas mudanças.
Em vez de temer e
bloquear as enchentes, as pessoas deveriam "ser amigas da água" para
sobreviver em um clima menos previsível, segundo Yu. Ou seja, as cidades
deveriam reprojetar suas áreas mais baixas e transformá-las em terraços úmidos,
por exemplo. Isso permitirá que essas áreas sejam inundadas com segurança, em
épocas de fortes chuvas.
Para Yu, estas medidas
poderão manter em segurança as principais funções das cidades durante os
desastres naturais. E também formarão um sistema natural de reciclagem da água
da chuva – algo que as selvas de concreto urbanas de hoje em dia ainda não conseguem
oferecer.
Fonte: BBC Future
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