Pastor trans que teve câncer relata renascimento
após retirada da segunda mama
Heliano Ferreira da
Silva tinha 38 anos quando iniciou a transição de gênero. Nascido em um corpo
feminino, decidiu em 2018 que era hora de viver sua verdadeira identidade
enquanto homem transexual: queria sentir a barba ao tocar o rosto, se ver e ser
reconhecido como uma figura masculina.
No entanto, o sonho
foi interrompido em 2020 ao ser diagnosticado com um câncer de mama. Além da
perda dos pelos faciais, consequência da quimioterapia, o pastor evangélico da
Igreja Apostólica Kaléo Chamados em Cristo, em Ribeirão Preto (SP), passou dois
anos com apenas um dos seios e conta que enfrentou disforia por não aceitar o
que via no espelho.
Dores que normalmente
são compartilhadas entre mulheres cis – que se identificam com o gênero
atribuído ao nascer – trazem outros desafios sob a ótica de um homem trans.
Para Heliano, o preconceito e a crise de identidade que afetam essa população
doem ainda mais diante da doença
Apesar disso, com uma
trajetória marcada pela discriminação e cinco meses depois de retirar a segunda
mama, aos 44 anos, ele fala em renascimento. “Tenho fotos da época do câncer
que eu olho e falo assim: 'meu Deus, eu passei por isso'. Caramba, parece que
eu renasci das cinzas mesmo'”.
“Amo aquela coisa do
homem que faz a barba, se arruma todo cheiroso. Hoje [sem as duas mamas] eu
posso ser esse homem, hoje eu posso colocar uma camisa mais colada, sem
preocupação se eu vou colocar ou não uma meia pra encher um peito”.
No Dia Mundial de
Combate ao Câncer de Mama, data celebrada neste sábado (19) e que dá origem à
campanha Outubro Rosa, o g1 destaca o relato e, nesta outra reportagem, alerta
para os riscos que pessoas transexuais têm em relação à doença.
• Da descoberta da doença à crise de
identidade
Era janeiro. Depois de
um autoexame com ajuda da esposa, que é enfermeira, Heliano descobriu um nódulo
do tamanho de um grão de arroz. “Já frequentava a igreja e falei que Deus ia me
curar. Não procurei ajuda. Em setembro, o carocinho já estava um limão. Só
então fui ao médico”.
Heliano já havia
iniciado o tratamento de afirmação de gênero para ter uma aparência que
correspondesse a sua identidade. Morando em Campinas (SP), era acompanhado pelo
Ambulatório Transcender e tomava hormônios masculinos, mas precisou interromper
por recomendação médica.
Com 16 ciclos de
quimioterapia, se deparou com um novo patamar da luta pela própria
identificação. Primeiro, viu cair os pelos do rosto. “A barba era minha paixão,
então eu fiquei naquele desespero, mas depois começou a voltar. Com a
[químioterapia] branca caiu tudo de novo, mas voltou um pouco”.
Depois, em 2021, veio
a retirada da mama. Era uma necessidade médica, mas manter apenas um seio gerou
um conflito interno. Ele queria tirar os dois, mas os médicos optaram por não
mexer no órgão saudável e liberar o paciente para casa, evitando a longa estadia
hospitalar diante do risco da Covid-19.
“De lá para cá, foram
os dois anos mais tristes da minha vida. Porque você se olhar no espelho...
Você tira uma mama e fica com a outra pendurada. Imagina isso para um homem
trans? Eu não tinha mais intimidade. Eu começo a falar e choro, porque foi
muito tenso”, conta emocionado
Heliano descobriu
câncer de mama com ajuda da esposa, que é enfermeira — Foto: Arquivo pessoal
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Discriminação
O apoio psicológico
foi fundamental. Após um longo período de espera, frustração e terapia, ele
conseguiu a autorização para a cirurgia que tanto desejava: finalmente tiraria
o outro seio pela rede pública. Porém, se deparou com o preconceito. Heliano afirma
que um médico se recusou a realizar a operação, alegando que o paciente queria
se “mutilar”.
• Vale lembrar: apesar do caráter
estético, a mastectomia masculinizadora – retirada dos seios por pessoas
transmasculinas – é garantida pelo Sistema Único de Saúde (SUS) por ser
entendida como uma questão de saúde e bem-estar dessa população, assim como o
tratamento hormonal e a mudança do timbre de voz, por exemplo.
“Olhou na minha cara,
viu que eu era um homem trans e disse: 'Eu não te opero. Você quer se mutilar.
Eu sou um conservador e não arranco órgão saudável'. Começou a falar um monte”,
relembra. A jornada seguiu até encontrar uma equipe mais acolhedora, formada
por residentes que decidiram abraçar a causa.
“Eu levantei a
camiseta pra elas [médicas residentes] e falei: 'Isso aqui não é digno, nem pra
homem, nem pra mulher. Se a pessoa não quer ficar com uma mama só e não quer
reconstruir, tem que tirar a outra'. Eu tenho consciência que era um órgão
saudável, mas minha situação agora era outra. Eu não sou aquela pessoa. Foi
muito cruel o que fizeram. Foi um dano muito grande na minha cabeça”.
• Muito mais do que fazer as pazes com o
espelho
Entre muitos pacientes
diagnosticados com câncer, a ideia de renascimento vem com a cura. Para
Heliano, a volta à vida veio em maio deste ano com a segunda mastectomia.
“Agora eu consigo me olhar no espelho. Agora eu tô bem, me sentindo, realmente,
um homem trans. Se você olhar na camiseta, o peitoral tá aqui, não tem mais uma
mama. Consigo usar uma camiseta mais colada, mais cavada, também cuido da
barba. Autoestima foi a mil”.
Ele diz que não pode
mais usar hormônios, nem masculinos, nem femininos – o que poderia ser
recomendado quando chegar a menopausa –, mas afirma que a barba voltou a
crescer. Pastor da Igreja Apostólica Kaléo Chamados em Cristo, que acolhe
pessoas da comunidade LGBTQIAP+ em Ribeirão Preto (SP), acredita que a fé teve
papel importante no processo, mas alerta que ela deve ser uma aliada dos
cuidados médicos.
“A minha vida hoje é
explicar pras pessoas: 'apareceu, vai se cuidar, vai na hora se cuidar'. Porque
assim, do mesmo jeito que eu sobrevivi, sei que teve muitas pessoas com câncer
que morreram”.
Fonte: g1
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