quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Laís Martins: Como funciona a máquina de campanha de Ricardo Nunes no WhatsApp

A campanha de Ricardo Nunes, do MDB, à prefeitura de São Paulo criou e operou uma estrutura de grupos de WhatsApp para pedir apoio e pressionar funcionários em cargos comissionados a trabalharem pela eleição do prefeito.

O Intercept Brasil recebeu denúncias que mostram que, em ao menos três secretarias municipais, servidores foram convocados a fazer parte ou foram involuntariamente colocados em grupos criados com o objetivo de trabalhar pela reeleição de Nunes, inclusive nas redes sociais.

Tivemos acesso ao histórico de conversas de um destes grupos, direcionado a servidores da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, a SMDHC, que foi usado para divulgar ações da prefeitura e para convocar servidores a participarem de eventos de campanha. 

As mensagens mais recentes, já durante o segundo turno das eleições, mostram uma série de pedidos aos servidores que variam de comentários em publicações específicas e em transmissões ao vivo no YouTube ao compartilhamento dos conteúdos com os contatos. Muitos deles feitos durante o horário de expediente. 

No dia 15 de outubro, os administradores do grupo enviaram uma mensagem com um link para um vídeo do Instagram de Nunes que mostrava o trabalho conjunto do prefeito e do governador de São Paulo Tarcisio de Freitas, do Republicanos. “Deixe seu comentário de apoio ao nosso prefeito”, dizia a mensagem enviada às 11h43.

Dez minutos depois, às 11h53, um comentário com emoji de palminhas foi deixado no vídeo por Bárbara Abib. Em 2 de outubro, uma pessoa com o mesmo nome foi nomeada para um cargo de assessora na SMDHC.

A situação se repetiu em outra publicação poucas horas depois. Às 14h22, uma mensagem foi enviada no grupo da SMDHC com um link para um vídeo na conta de Nunes com cortes do jornalista Rodrigo Bocardi falando sobre a Enel. “Deixe o seu comentário contra a Enel podem colocar a mensagem de #FORAENEL!”, dizia a mensagem.

Ao menos 13 servidores de sete diferentes secretarias deixaram comentários na publicação, vários em horário de expediente.

A postagem ainda teve outras interações por volta do mesmo horário. Às 14h13, Vitor Sampaio, chefe de gabinete de Ricardo Nunes, deixou seu comentário #ForaEnel. Às 14h14, Gustavo Pires, presidente da SpTuris, também fez um comentário com a hashtag. Cerca de 40 minutos depois, Micaelle Maestrello, assessora no gabinete de Nunes, também deixou um comentário. 

Colocar um servidor em um grupo de WhatsApp de campanha sem sua anuência, somado a pedidos de comentários e engajamentos, pode indicar uma prática ilícita e de coação dos funcionários, explicou ao Intercept o advogado eleitoralista Guilherme Barcelos, membro da Abradep, a Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político.

Além disso, a lei eleitoral proíbe que servidores públicos ou empregados da administração direta ou indireta sejam cedidos para uso em campanha durante o horário do expediente, salvo se estiverem licenciados ou de férias. “Se ficar comprovado essa conduta de uso, nós temos um ilícito aqui”, disse Barcelos, da Abradep. 

Para ele, esse conjunto de ações pode abrir margem para uma representação eleitoral por conduta vedada, uma ação de investigação na justiça eleitoral ou até uma ação de impugnação de mandato eletivo.

·        Constrangimento com ‘coisas de campanha’ de Ricardo Nunes

Na Secretaria Municipal de Cultura, um grupo foi criado em 17 de agosto, logo após o início da campanha, pelo chefe de gabinete da pasta, Rogério Custódio. Foram colocadas 90 pessoas, a maioria servidores de cargos comissionados, segundo uma denúncia recebida pelo Intercept. 

“A finalidade deste grupo é divulgar ações relativas às eleições 2024, especialmente voltadas à mobilização pro Ricardo Nunes (15) e Aline Torres (15900)”, escreveu Custódio na mensagem inicial, em 17 de agosto, dia que a campanha teve início. Torres ocupou o cargo de titular na SMC até abril deste ano, quando deixou o posto para concorrer ao cargo de vereadora em São Paulo pelo MDB – ela não foi eleita. 

Custódio pediu que os servidores não compartilhassem “coisas de campanha” de segunda a sexta-feira das 9h às 18h, durante o horário de trabalho.

Mas a iniciativa constrangeu os funcionários. No mesmo dia em que o grupo foi criado, diversas pessoas enviaram mensagens dizendo que preferiam manter uma “postura técnica e neutra” e que, por isso, sairiam do grupo. Outros, no entanto, embarcaram na campanha. No dia 22, Custódio disse que enviaria o link de um outro grupo que já existia e que aquele seria desfeito.

“Há uma questão de hierarquia muito clara e, naturalmente, a relação é pautada por uma espécie de poder referencial”, pontuou Barcelos. “Imagina a seguinte situação: tu é a minha chefe e me pede: ‘ó, vai lá e posta algo em favor do candidato A’ porque tu apoia o cara. Não precisa nem dizer que se eu não fizesse ia me dar algum problema”, disse o advogado. “Há naturalmente uma situação de constrangimento.” 

Segundo Barcelos, esse tipo de comportamento poderia configurar abuso de poder político. “Eu não posso me valer da minha condição hierárquica, de superioridade hierárquica, a coagir ninguém a participar de grupo de campanha, de fazer propaganda ou comentário”, observou. 

Caso isso ocorresse, o candidato ou campanha estaria se valendo da estrutura da administração pública para interesses privados, complementou. 

Ocupantes de cargos comissionados de livre nomeação ficam mais vulneráveis a pressões em período eleitoral, já que podem ser exonerados a qualquer tempo e por qualquer motivo, explicou ao Intercept Marina Atoji, diretora de programas da Transparência Brasil, organização da sociedade civil focada em transparência, controle e integridade do poder público.

·        Formulário para registrar apoiadores de Ricardo Nunes

Em 31 de agosto, a prefeitura de São Paulo convocou servidores a participarem de um evento presencial. Relatos de pessoas que participaram da reunião, aos quais o Intercept teve acesso, citam que servidores comissionados foram obrigados a ir e a preencher um formulário.

O formulário pedia a identificação a partir de dados pessoais como nome, CPF e endereço, local de trabalho e disposição em colaborar voluntariamente com a campanha. Outras perguntas no formulário incluíam informação sobre filiação partidária e vínculos com candidatos a vereadores. O formulário, que não está mais disponível no link original, foi detalhado em uma reportagem no Brasil de Fato

A existência do formulário, por si só, já chama atenção. “Tu estás utilizando a estrutura do serviço público municipal para obter pessoas, está usando o servidor para maximizar a campanha ou o teu espectro de eleitores”, analisou Barcelos. 

A coleta de dados através do formulário pode ser também uma violação à legislação eleitoral sobre propaganda, afirmou Atoji, da Transparência Brasil. “A resolução de 2024 do TSE sobre o tema diz expressamente que a coleta de dados para distribuição de propaganda deve seguir os princípios da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, o que claramente não ocorreu no caso”, explicou Atoji.

Ela disse ainda que a inclusão involuntária em meios de difusão é uma afronta à LGPD, ainda mais para coletar dados sensíveis como filiação partidária, e que também deve ser investigada e responsabilizada como abuso de poderes econômico e político.

A fonte que relatou ao Intercept a existência do formulário preencheu o documento como se fosse funcionário público lotado na Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, a SMDHC. No dia 3 de setembro, uma pessoa identificada como Isis J. entrou em contato com a pessoa que havia preenchido o formulário. 

“Opa, tudo bem?! Sou Isis e estou atuando na mobilização da campanha majoritária, este convite é super importante! Participe de nosso grupo”. A mensagem vinha com um link de um grupo nomeado “Engaja SMDHC”.

No formulário, o campo “entidades” permitia a seleção de diversas entidades ligadas à prefeitura de São Paulo. Isso sinaliza a possibilidade de que, assim como o grupo da SMDHC, podem ter sido criados outros grupos para cada pasta ou entidade.

Em setembro, o Intercept publicou reportagem com áudios que mostravam dirigentes da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Trabalho de São Paulo orientando funcionários a fazerem campanha em prol de Nunes. 

Na ocasião, dirigentes da pasta falaram sobre a criação de grupos para disseminar conteúdo positivo sobre Nunes com o objetivo de que servidores o encaminhassem para familiares e amigos e para avisar sobre “mobilizações”.

As denúncias de que servidores em cargo de chefia e em cargos comissionados estariam sendo mobilizados para fazer campanha em prol de Nunes foram objeto de uma ação de investigação judicial eleitoral protocolada pela vereadora eleita Amanda Paschoal, do PSOL, no fim de setembro. 

O Intercept entrou em contato com as secretarias citadas e com o gabinete do prefeito Ricardo Nunes. Todos enviaram um mesmo texto em resposta ao contato da reportagem. Nenhum deles negou a existência dos grupos no WhatsApp nem da estratégia de campanha.

O texto enviado pelas secretarias e o gabinete de Nunes diz apenas que o “posicionamento eleitoral é livre, desde que respeitada a legislação eleitoral em vigor, a qual impede a utilização de recursos públicos”. Destaca ainda que a Controladoria Geral do Município disponibilizou uma cartilha de condutas vedadas ao agente público como parte de “esforço da administração a fim de evitar eventuais incorreções”.

Também procuramos a coordenação de campanha de Ricardo Nunes, mas não tivemos resposta até a publicação desta reportagem.

 

¨      O nome proibido da eleição em SP. Por Paulo Motoryn

Osvaldo Cavalcante Maciel. Se você é jornalista ou morador de São Paulo, onde o prefeito Ricardo Nunes, do MDB, caminha para a reeleição, te faço um alerta: jamais pergunte sobre Osvaldo Cavalcante Maciel para a equipe do candidato.

Eu fiz isso ontem – e vou te explicar agora o perigo.

Para começar: Maciel é um dos empresários presos e condenados por uma das maiores fraudes da história do sistema bancário brasileiro, um caso que foi capa dos jornais em 1995. Ele integrou uma quadrilha que desviou R$ 1,6 bilhão do Banco do Brasil, em valores atualizados.

O caso teve ampla cobertura da imprensa. Uma das reportagens menciona a relação de Maciel com políticos da capital e da grande São Paulo.

Há cerca de dois meses, a excelente série Endereços, do site De Olho nos Ruralistas, revelou uma suposta ligação entre Maciel e Ricardo Nunes. Uma das reportagens, intitulada “Como o prefeito de SP ficou subitamente milionário, em 1994”, ouviu um ex-vizinho de Nunes que afirmou que o prefeito era empregado de Maciel.

Procurei uma a uma as sabatinas e entrevistas de Nunes – com especial atenção para os relatos sobre seu passado empresarial. Afinal, nunca tinha ouvido falar sobre essa experiência profissional. E não encontrei nenhuma menção a isso.

É claro que resolvi apurar. Fiz um mergulho nos processos judiciais e administrativos que tratavam da fraude do BB e tentei contato com cada um dos envolvidos. Cheguei a falar com um ex-servidor do BB condenado pelo caso, mas demorei a conseguir contato com Maciel.

Até que, há duas semanas, consegui falar ao telefone com Julianno Maciel. Hoje empresário na zona sul de São Paulo, ele é filho de Osvaldo. Ele me disse que mostrou a reportagem do De Olho nos Ruralistas ao pai – e que, apesar de condenado, Maciel seria inocente.

Antes de desligar, perguntei a ele: “O Ricardo Nunes era funcionário do seu pai? O que ele fazia pro Maciel?”. E ouvi a seguinte resposta: “De fato, o Ricardo Nunes foi funcionário do meu pai. Foi funcionário. Eu confirmo. A função dele na companhia eu não sei”.

Aqui, pela integridade da informação, é importante fazer as seguintes ponderações: i) Nunes nunca foi investigado ou relacionado a qualquer tipo de crime associado à fraude no Banco do Brasil; ii) não existem acusações ou provas de que ele teria se envolvido ou beneficiado financeiramente do crime.

Fiz as seguintes perguntas à assessoria de imprensa de Nunes: “Por quantos anos o prefeito trabalhou com Maciel? Qual função? Entre 1994 e 1996, o prefeito foi remunerado com parte do patrimônio de Maciel?”, questionei, com base nas alegações da reportagem.

Como resultado, há poucas horas, recebi uma das respostas mais violentas em anos cobrindo temas como extremismo, corrupção e crime organizado. O texto foi assinado pelo advogado criminalista Daniel Bialski – e anuncia “imediatamente” um processo judicial contra os supostos caluniadores.

“O site Intercept Brasil procurou a campanha de Ricardo Nunes, com acusações graves, caluniosas e totalmente infundadas que tentam vincular o prefeito a um escândalo de fraude bancária ocorrido em meados da década de 1990”, começa o texto.

Acho importante saberem que o comunicado atacou o De Olho nos Ruralistas por uma suposta ligação com uma familiar de Guilherme Boulos, do PSOL (o site, que já havia sido alvo de intimidação semelhante, afirma que mantém todas as informações publicadas, obtidas, em sua maior parte, em documentos públicos, e não foi acionado judicialmente até o momento). Para nós, o comunicado de Nunes anunciou, antes mesmo de publicarmos qualquer coisa, que está ingressando com um processo criminal.

“[A defesa] adianta, inclusive, que vai ingressar, imediatamente, na Justiça, e adotará as medidas criminais contra os autores, asseclas e participes das acusações falsas, caluniosas e inescrupulosas que procuram de forma criminosa envolver Nunes em algo que não tem qualquer relação com a sua história ou com seus atos”, diz a nota.

O comunicado assinado por Bialski também insinua que as reportagens sobre o tema têm “mandantes”: “Buscaremos a condenação por esses crimes também dos aloprados que atuam como mandantes dessa tentativa desesperada de tumultuar e manchar a reputação e a dignidade do prefeito – uma farsa que fere a democracia e desrespeita os eleitores”. 

Segundo o advogado, “Ricardo Nunes jamais recebeu nenhum centavo do senhor Oswaldo Cavalcante Maciel; jamais se beneficiou de qualquer parte do patrimônio dele”. No entanto, o questionamento objetivo sobre o tempo em que Nunes trabalhou para Maciel continuou aberto. 

Não houve resposta objetiva à pergunta: Ricardo Nunes de fato trabalhou para Maciel? Essa história ainda estava em apuração. E mandar perguntas é passo básico nesse processo. Diante da dúvida que persistiu, discutimos internamente e avaliamos que a não-resposta do candidato – e a ameaça de processo diante de um questionamento simples – nos obrigou a trazer essa informação ao conhecimento dos leitores. Afinal, Ricardo Nunes é o líder na corrida eleitoral para a prefeitura da maior cidade da América Latina.

Da minha parte, admito que temos um mandante: você, leitor, que tem o direito inegociável de saber de cada detalhe da história dos seus governantes. Nada mais. Este é o papel do jornalismo. Não podemos nos curvar às ameaças de ninguém.

 

Fonte: The Intercept

 

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