Os empreendedores de tecnologia que querem
criar países e substituir a democracia
Imagine se você
pudesse escolher sua cidadania da mesma forma que escolhe se matricular em uma
academia de ginástica.
Esta é a visão de um
futuro não muito distante apresentada por Balaji Srinivasan.
Balaji, que é
conhecido apenas pelo seu primeiro nome, é uma estrela no mundo das
criptomoedas.
Ele é um empreendedor
e investidor que acredita que a tecnologia pode se sair melhor em praticamente
tudo o que os governos fazem hoje.
Eu vi Balaji expor
suas ideias no ano passado em uma grande sala de conferências nos arredores de
Amsterdã.
“Criamos novas
empresas como o Google; criamos novas comunidades como o Facebook; criamos
novas moedas como Bitcoin e Ethereum. Será que podemos criar novos países?”,
perguntou ele enquanto atravessava o palco, vestido com um terno cinza
levemente folgado e uma gravata frouxa.
Mais do que um astro
do rock, ele parecia um gerente qualquer de um departamento de contabilidade.
Mas não se deixe
enganar. Balaji é ex-sócio da gigante empresa de capital de risco Andreessen
Horowitz. Ele tem patrocinadores com muito dinheiro.
O Vale do Silício
adora “disrupção” — o ato de inovar rompendo paradigmas. As empresas emergentes
de tecnologia vêm revolucionando a imprensa tradicional há anos. Agora elas
também estão se aventurando em outras áreas: educação, finanças e viagens
espaciais, por exemplo.
“Imagine mil startups
diferentes, cada uma substituindo uma instituição tradicional diferente”, disse
Balaji ao público.
“Elas existem
paralelamente ao sistema estabelecido, vão atraindo os usuários, vão ganhando
força, até se tornarem o novo.”
·
Substituir países
Se as startups
pudessem substituir todas essas instituições diferentes, argumentou Balaji,
elas também poderiam substituir os países.
Ele chama a sua ideia
de “Estado em Rede”: nações emergentes. Funcionaria assim: as comunidades
formam-se – inicialmente na Internet – em torno de um conjunto de interesses ou
valores comuns.
Eles então adquirem
terras, tornando-se “países” físicos com leis próprias. Estes coexistiriam com
os Estados-nação existentes e, com o tempo, os substituiriam completamente.
Você escolheria sua
nacionalidade da mesma forma que escolhe seu provedor de banda larga. Você
poderia virar cidadão de um pequeno estado-nação cibernético que quisesse.
Não é novidade que as
empresas tenham uma influência indevida em assuntos soberanos.
A expressão
"República das Bananas" deriva do fato de que uma empresa americana,
a United Fruit, governou a Guatemala durante décadas, a partir da década de
1930.
Além de possuir a
maior parte das terras, ela administrava as ferrovias, os correios e o
telégrafo. Quando o governo da Guatemala tentou recuar, a CIA ajudou a United
Fruit instigando um golpe de Estado.
Mas este novo
movimento tecnológico parece ter ambições ainda maiores. Ele não só quer que os
governos existentes sejam submissos para que as empresas possam gerir os seus
próprios assuntos, como também quer substituir os governos por empresas.
·
O 'Estado em rede'
Há quem veja a ideia
do “estado em rede” como um projeto neocolonial que substituiria líderes
eleitos por ditadores corporativos que agiriam em benefício dos seus
acionistas.
Mas outros pensam que
essa seria uma forma de acabar com os Estados dominados pela regulamentação das
atuais democracias ocidentais.
Você acha que isso
parece apenas uma fantasia de um empreendedor de tecnologia? Na verdade, já
existem elementos do Estado em rede no mundo.
A conferência em
Amsterdã incluiu empreendedores de tecnologia apresentando algumas dessas
“sociedades de startups”.
Existe a Cabin, uma
“cidade em rede de aldeias modernas” que tem filiais nos Estados Unidos,
Portugal e outros lugares; e Culdesac, uma comunidade com sede no Arizona
projetada para trabalho remoto.
O conceito de Estado
em rede de Balaji baseia-se na ideia de “cidade outorgada”, áreas urbanas que
constituem uma zona econômica especial, semelhante às zonas francas.
Existem vários
projetos deste tipo em construção em todo o mundo, incluindo na Nigéria e na
Zâmbia.
Em um comício
eleitoral recente em Las Vegas, o ex-presidente americano e candidato à Casa
Branca Donald Trump prometeu que, se eleito em novembro, ele liberaria terras
federais no Estado do Nevada para “criar novas zonas especiais com impostos e
regulamentações ultra-baixas”, para atrair novas indústrias, construir
habitações a preços acessíveis e gerar empregos.
O plano, segundo ele,
iria reanimar “o espírito da fronteira e do sonho americano”.
Culdesac e Cabin são
mais como comunidades online que estabeleceram bases territoriais.
Já a comunidade
Próspera é diferente. Localizada em uma ilha perto do litoral de Honduras, ela
se descreve como uma “cidade privada” que atende empreendedores.
A cidade promove o que
chama de "ciência da longevidade", oferecendo terapias genéticas
experimentais e não regulamentadas para retardar o processo de envelhecimento.
Administrada por uma
empresa com fins lucrativos sediada em Delaware, nos Estados Unidos, a Próspera
recebeu classificação especial do governo hondurenho anterior para criar suas
próprias leis.
A atual presidente,
Xiomara Castro, quer que a empresa vá embora e começou a retirar alguns dos
privilégios especiais que lhe foram concedidos.
A Próspera está
processando o governo hondurenho por US$ 10,8 bilhões.
·
Uma criptocidade de livre mercado
Em algum momento
durante a sessão de apresentação que durou todo o dia em Amsterdã, um jovem com
um moletom cinza surgiu no palco.
Seu nome era Dryden
Brown. Ele disse que queria construir uma nova cidade-estado, em algum lugar da
costa do Mediterrâneo.
Ela não seria
governada por uma burocracia estatal gigante, mas pela “blockchain”, a
tecnologia das criptomoedas.
Seus princípios
fundadores seriam as ideias de “vitalidade” e “virtude heróica”. Ele chamou
isso de Praxis, a antiga palavra grega para “ação”. Os primeiros cidadãos desta
nova nação, disse ele, poderão se mudar para lá em 2026.
Ele não foi muito
específico sobre os detalhes. Mudar-se exatamente para onde? Quem construiria a
infraestrutura? Quem administraria a cidade?
Dryden Brown mostrou
um slide, sugerindo que a Praxis era apoiada por fundos com acesso a centenas
de bilhões de dólares.
Por enquanto, porém, a
“comunidade Praxis” existe principalmente na internet. Existe um site onde você
pode solicitar a cidadania.
Não está claro quem
são exatamente esses cidadãos. Dryden mostrou outro slide. Era um meme de Pepe:
o triste sapo de desenho animado que se tornou mascote da direita alternativa
durante a campanha de Trump em 2016.
Neste nicho mundial de
nações emergentes, a Praxis tem reputação de ser inovadora.
Ela promoveu festas
que ficaram famosas: há relatos de noites à luz de velas em enormes coberturas
de Manhattan, onde programadores de computador se misturavam com modelos e
figuras do “Iluminismo das Trevas” (um movimento cultural antidemocrático e
reacionário) — que inclui pessoas como o blogueiro Curtis Yarvin, que defende
um futuro totalitário em que o mundo seja governado por "monarcas
corporativos".
Suas ideias são às
vezes descritas como fascistas, algo que ele nega. Os participantes da festa em
geral precisam assinar um acordo de confidencialidade. Os jornalistas não são
bem-vindos.
Após sua apresentação,
fui conversar com Dryden Brown. Ele parecia na defensiva e um pouco frio, mas
me deu seu número de telefone. Enviei algumas mensagens, tentando iniciar uma
conversa. Mas não tive sucesso.
Cerca de seis meses
depois, vi um anúncio interessante no X: “Lançamento da revista Praxis. Amanhã
à noite. Tire cópia das suas páginas favoritas.”
A hora ou local não
foram indicados. Havia apenas um link onde você poderia se registrar para
participar.
Fiz minha inscrição.
Não houve resposta. Então, na manhã seguinte, enviei outra mensagem para Dryden
Brown. E, para minha surpresa, ele respondeu imediatamente: “Ella Funt às 22h”.
Ella Funt é um bar e
boate em Manhattan — anteriormente conhecido como Club 82, uma lendária casa
noturna na cena gay de Nova York. Nos anos 50, escritores e artistas
frequentavam o local para tomar coquetéis servidos por mulheres de smoking e
assistir a shows de drag no porão.
Agora o local seria
palco de uma festa exclusiva para pessoas tentando fundar um novo país. E, para
meu espanto, eu estava convidado.
Mas eu estava no
Estado de Utah, a 3 mil quilômetros dali. Se eu quisesse chegar a tempo, teria
que pegar um vôo imediatamente.
Ainda assim, acabei
sendo um dos primeiros a chegar. O lugar estava quase vazio, com algumas
pessoas da Praxis colocando exemplares de sua revista no bar.
Folheei o papel caro e
grosso, com muitos anúncios de coisas aparentemente aleatórias: perfumes, armas
impressas em 3D e... leite.
Assim como Pepe, o
Sapo, o leite é um meme da internet. Nos círculos da direita alternativa,
postar um emoji de garrafa de leite branca é um sinal de supremacia branca.
A revista incentivava
os leitores a "fotocopiar as páginas e colá-las por toda a cidade",
como uma espécie de meme analógico. Uma máquina Xerox foi colocada no bar
exatamente para isso.
Um grupo de jovens
entrou, alguns usando botas de cowboy. No entanto, eles não pareciam pessoas
que viviam muito ao ar livre.
Comecei a conversar
com um deles. Ele se apresentou como Zac, um “cripto cowboy” de Milton Keynes,
na Inglaterra (ele usava um chapéu Stetson de couro).
“Eu meio que
represento o Velho Oeste americano”, disse ele. “Eu sinto que estamos em uma
espécie de fronteira.”
Muitas pessoas
associam criptomoedas a fraudes: dinheiro altamente volátil da internet, cujo
valor pode desaparecer da noite para o dia.
Mas no mundo do Estado
em rede, todos adoram criptomoedas. Eles acreditam que elas são o futuro do
dinheiro — um dinheiro que os governos não podem controlar.
A próxima pessoa com
quem falei se autodenominava Azi. Perguntei seu sobrenome. “Mandias”, ele
respondeu com um sorriso.
Era uma referência a
um soneto do poeta inglês Percy Bysshe Shelley: Ozymandias, rei dos reis.
O anonimato é uma
parte importante da ética do mundo cripto. Tive a sensação de que ninguém
naquela festa estava me falando seus nomes verdadeiros.
Mandias era
originalmente de Bangladesh, mas cresceu no bairro de Queens, em Nova York. Ele
era fundador de uma empresa de tecnologia emergente.
Ele acreditava que,
tal como a imprensa tinha contribuído para o colapso da ordem feudal na Europa
há 500 anos, hoje as novas tecnologias (criptomoedas, blockchain, inteligência
artificial) causariam o colapso do Estado-nação democrático.
“Obviamente, a
democracia é ótima”, disse ele. “Mas o melhor governante é um ditador moral.
“Algumas pessoas chamam isso de rei filósofo.”
·
A ascensão do rei corporativo?
Azi disse que estava
animado por estar à beira do que considera ser o próximo renascimento.
Mas antes deste
renascimento, ele previu um “movimento ludita” contra as novas tecnologias que
destruiria milhões de empregos e monopolizaria a economia global.
Os luditas
fracassariam, observou Azi. No entanto, ele previu que o período de transição
para o que chamou de “próxima fase” da evolução social humana – a fase do
Estado em rede – seria violento e “darwiniano”.
Longe de ficar
perturbado com esta perspectiva, Azi parecia entusiasmado com a ideia de que
das cinzas da democracia emergiriam novos reis: ditadores corporativos que
governariam a sua rede de impérios.
Fui até o bar e peguei
uma bebida. Lá conversei com duas jovens que não pareciam fazer parte do grupo
cripto.
Ezra era gerente de
outra boate próxima, e sua amiga Dylan era estudante. Aparentemente elas tinham
sido convidadas para acrescentar um pouco de glamour ao que era essencialmente
uma festa de criptoempreendedores e geeks de informática. Mas elas tinham algumas
ideias próprias sobre o Estado da rede.
“E se você não tiver
funcionários suficientes no hospital ou na escola para cuidar das crianças?”,
perguntou Dylan. “Não é realista começar uma cidade inteira sem qualquer
governo.”
Para Ezra, toda a
ideia parecia distópica. “Queríamos ver como seria uma reunião de um culto de
verdade”, disse ela, brincando, eu acho.
Naquele momento,
Dryden Brown, cofundador da Praxis, apareceu na festa. Quando ele saiu para
fumar um cigarro, eu o segui.
A revista Praxis era
uma forma de mostrar a nova cultura que ele esperava construir, ele me disse. A
Praxis, afirmou ele, tratava da “busca da fronteira” e da “virtude heróica”.
Eu duvidava que Dryden
conseguisse durar muito tempo numa carroça no Velho Oeste. Ele parecia exausto.
Eu queria fazer
algumas perguntas específicas sobre o projeto do Estado em Rede: quem seriam os
cidadãos deste admirável mundo novo? Quem o governaria? Por que usar tantos
memes de extrema direita? E a pergunta de Dylan: quem iria trabalhar nos
hospitais?
Mas éramos
constantemente interrompidos pela chegada de convidados. Dryden Brown me
convidou para visitar a “Embaixada Praxis” no dia seguinte.
Nos despedimos e
voltei para dentro. A festa estava ficando mais selvagem. Ezra, Dylan e algumas
amigas que pareciam modelos subiram na máquina de Xerox.
Elas estavam ocupadas
fotocopiando, não páginas de revistas, mas partes de seus corpos. Peguei um
exemplar da revista e saí.
De volta ao meu
pequeno Airbnb acima de um supermercado chinês, folheei a revista. Ao lado dos
memes da supremacia branca e dos anúncios de armas, havia um código QR que
levava a um curta-metragem de 20 minutos contra o vazio da vida moderna e com
nostalgia por um mundo de hierarquias e heroísmo que já não existe mais.
Nas entrelinhas
“Você está entretido e
saciado”, entoa o narrador, “você parece produtivo, mas não é excelente”.
A voz fala dos
“algoritmos que fazem você odiar a si mesmo e à sua própria civilização”.
Neste ponto do curta,
a tela mostra uma figura animada apontando uma arma diretamente para o
espectador.
“A mídia contemporânea
proclama que ter qualquer ideal é fascista”, continua a voz. “Todo aquele que
tem convicções é fascista.”
Seria isso um convite
para adotar o rótulo de fascista? Este movimento parecia ansiar por uma
concepção específica da cultura ocidental: um mundo nietzschiano em que os mais
aptos sobrevivem, onde a ruptura e o caos dão origem à grandeza.
No dia seguinte,
passei pela “Embaixada Praxis”, uma cobertura gigantesca na Broadway.
As prateleiras estavam
realmente cheias de exemplares de Nietzsche, biografias de Napoleão e um volume
intitulado O Manual do Ditador. Esperei um pouco, mas Dryden Brown nunca
apareceu.
Saí me perguntando o
que exatamente tinha testemunhado na noite anterior: seria um visão do futuro,
no qual países como os Estados Unidos e o Reino Unido seriam envolvidos por uma
teia de sociedades corporativas, um mundo no qual alguém poderia escolher se
tornar cidadão de um pequeno Estado cibernético?
Ou estariam Dryden
Brown e seus amigos apenas "trollando" — um grupo de empreendedores
de tecnologia se passando por revolucionários de extrema direita para rir do
establishment e se divertir?
Poderia Dryden Brown
um dia se tornar um rei-CEO, governante de uma franquia de império de direita
radical com postos avançados espalhados por todo o Mediterrâneo?
Eu duvido. Mas já
existem medidas para promover mais portos livres e cidades autônomas.
E se a democracia
estiver em apuros, o movimento do Estado em rede parece estar pronto para
entrar em cena.
Fonte: BBC News
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