A polêmica envolvendo escola histórica do
RJ rebatizada com nome de batismo de Silvio Santos
Silvio Santos
(1930-2024) está no centro de uma polêmica no Rio de Janeiro. Isto porque o
governo estadual decidiu rebatizar um colégio histórico em sua homenagem — de
acordo com o publicado no Diário Oficial no dia 1º de outubro, ou seja, menos
de dois meses depois da morte do apresentador, o tradicional Colégio Estadual
Amaro Cavalcanti, no Largo do Machado, foi renomeado como Senor Abravanel, o
nome verdadeiro do famoso ícone da TV brasileira.
A ideia repercutiu mal
no ambiente escolar. A principal queixa é que a mudança foi feita sem uma
discussão pública.
“É uma escola
centenária e o mínimo que se pede é que a comunidade seja consultada”,
justifica à BBC News Brasil o Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação
do Rio de Janeiro (Sepe), por meio de sua assessoria de imprensa.
Dias atrás, a entidade
publicou uma nota pública dizendo que a mudança “está causando revolta na
escola”.
Os profissionais do
colégio também publicaram uma nota no qual se disseram “surpreendidos” com a
decisão.
“Repudiamos a atitude
arbitrária do governo estadual de alterar o nome da escola, que é tombada como
patrimônio histórico pela relevância de sua construção na história da cidade do
Rio de Janeiro”, afirma o texto.
A BBC News Brasil
conversou com um grupo de professores. Eles pediram para que suas respostas
fossem publicadas de modo coletivo, ou seja, sem identificar cada um deles.
“Estávamos na reunião
do conselho de classe quando a direção leu no Diário Oficial a mudança de nome.
Não houve nenhuma consulta, em total desrespeito com a comunidade escolar”,
lamentam.
Eles contaram que
ainda não houve nenhuma mudança na fachada, com letreiro indicando o novo nome.
Mas relataram que na última quinta (17), funcionários da Secretaria de Estado
da Educação do Rio de Janeiro (Seeduc) estiveram no colégio, possivelmente averiguando
a viabilidade de alterações.
“Documentos virtuais
que estão sendo expedidos já vêm com o nome novo”, informam os professores, que
estão organizando abaixo-assinado físico e virtual “no sentido de organizar a
resistência” ao rebatismo.
Nos anos 1940, o então
adolescente Abravanel estudou nesse colégio — e isto é o que justificaria a
homenagem. Segundo informações, a ideia partiu do próprio governador Cláudio
Castro. A resolução foi executada pela secretária de Educação, Roberta Barreto.
A reportagem
questionou tanto o governo estadual quanto a secretaria, inclusive perguntando
de quem foi a iniciativa e se já estão em curso os trâmites para que a nova
nomenclatura conste de fachadas, sinalizações e documentos da instituição — os
uniformes dos alunos não têm o nome da escola, apenas o da rede de ensino.
A única resposta veio
da Seeduc, por meio de nota — que não esclareceu todas as dúvidas, mas
salientou que o objetivo foi “homenagear seu ex-aluno e uma das maiores
personalidades do nosso país, Senor Abravanel, o Silvio Santos”.
A secretaria enfatizou
que “valoriza e respeita o importante legado dessa unidade” e
• 'Escolas do imperador'
Há alguns fatores que
tornam o caso mais especial. O primeiro é que o colégio tem uma importância
histórica por ser uma das “oito escolas do imperador”.
“As chamadas ‘escolas
do imperador nasceram após a Guerra do Paraguai. Quem vai hoje ao Museu
Histórico Nacional se depara com uma imensa estátua de dom Pedro 2º em gesso,
montado em um cavalo. Era para essa estátua ter sido fundida, mas nunca foi
porque o imperador impediu”, conta à BBC News Brasil o escritor e pesquisador
Paulo Rezzutti, biógrafo do monarca.
“Ele achava o gasto
absurdo e dizia que seria melhor para o povo ter acesso à educação do que ser
feita uma estátua dele.”
Rezzutti cita uma
carta que dom Pedro 2º mandou para seu ministro Paulino de Sousa em 1870.
"Leio no Diário
[do Rio de Janeiro], que se pretende fazer uma subscrição para elevar-me uma
estátua [...] desejo que declare quanto antes à comissão de que [...] muito
estimaria eu que só empregassem seus esforços na aquisição do dinheiro preciso
para a construção de edifícios apropriados ao ensino nas escolas primárias, e o
melhoramento do material de outros estabelecimentos de instrução pública. O
senhor e seus predecessores sabem como sempre tenho falado no sentido de
cuidarmos seriamente da educação pública, e nada me agradaria tanto como ver a
nova era de paz firmada sobre o conceito da dignidade dos brasileiros começar
por um grande ato de iniciativa deles a bem da educação pública”, diz o texto.
“Além da ideia do
Diário do Rio de Janeiro, a própria Câmara dos Deputados também tentou levantar
dinheiro para uma estátua ao imperador, votando para isso verba própria no
orçamento do império”, acrescenta o biógrafo. “Dom Pedro foi taxativo: ele
disse que não aprovaria o orçamento.”
Assim, do dinheiro
arrecadado foram construídas as oito escolas no município do Rio.
“Desses prédios, três
foram demolidos, um deles foi reconstruído e ainda abriga uma escola. Outros
ainda possuem função educacional ou cultural”, cita Rezzutti.
Essa escola no Largo
do Machado é uma das remanescentes. E isto leva ao segundo fator: por conta
dessa história, desde 1990, o colégio é tombado pelo Instituto Rio Patrimônio
da Humanidade, o órgão municipal de proteção ao patrimônio histórico.
A discussão movimenta
a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj).
Dois deputados
entraram na briga. No dia 2, Carlos Minc apresentou um projeto de lei para
sustar o efeito da resolução.
No dia seguinte, foi a
vez da deputada estadual Martha Rocha, que buscou outra estratégia: apresentou
um projeto de lei propondo dar nova denominação ao colégio — no caso, o “novo”
nome seria o anterior ao atual, ou seja, mais um vez Amaro Cavalcanti.
Ambas as propostas
tramitam nas comissões de Constituição e Justiça e de Educação. Cada uma delas
tem 30 dias para analisar os projetos. Se aprovados, vão para votação em
plenário — sem prazo para que isso ocorra.
À BBC News Brasil, a
deputada reclamou da forma como a nova nomenclatura foi imposta, com
“utilização de um instrumento administrativo” sem “qualquer consulta à
comunidade escolar”.
“Nossa decisão de
apresentar um projeto de lei para trazer de volta o nome de Amaro Cavalcanti é
no sentido de reconhecer a importância dele como advogado, jornalista,
parlamentar, diplomata e professor no cenário da história do Brasil. E também
no sentido de respeitar a vontade da comunidade escolar que ficou profundamente
ofendida e não concorda com essa decisão arbitrária da secretária da Educação”,
afirma ela.
• Quem foi Amaro Cavalcanti
Amaro Cavalcanti
Soares de Brito (1849-1922) tem uma singular biografia. Nascido em Caicó, no
Rio Grande do Norte, aprendeu latim quando era criança e trabalhou como
caixeiro.
Mais tarde, quando
concluiu seus estudos preparatórios, conseguiu trabalhar como professor em
colégios particulares. Lecionou em diversos locais, principalmente no Maranhão
e no Ceará.
Foi convidado a
participar de uma comissão internacional que deveria analisar a organização do
ensino nos Estados Unidos.
Em sua temporada
americana, de 1876 a 1881, aproveitou-se para graduar-se na Albany Law School,
no Estado de Nova York.
Para a obtenção do seu
título jurídico, defendeu uma tese discutindo o papel e a obrigação do Estado
no acesso à educação.
Retornou dos Estados
Unidos em outro patamar na carreira. “De volta ao Brasil, trazendo na bagagem
não só o diploma universitário como também a experiência da viagem e admiração
pelo regime do país que conheceu, foi nomeado, em outubro de 1881, diretor-geral
da Instrução Pública no Ceará”, conta o verbete dedicado a ele no Centro de
Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação
Getúlio Vargas (CPDOC-FGV).
No ano seguinte,
transferiu-se para o Rio, onde se tornou professor no Imperial Colégio Pedro
2º, no Rio. E passou a atuar como advogado e jornalista.
“Ele foi um
republicano que lutou pela democracia e contra a escravidão, contra o racismo”,
ressalta a deputada Rocha.
Em 1890, foi eleito
senador constituinte. Tornaria-se um dos redatores da primeira Constituição do
Brasil republicano, a de 1891.
Como diplomata, atuou
prestando consultoria ao Ministério das Relações Exteriores, cumpriu missão no
Paraguai e integrou a Corte Permanente de Arbitragem em Haia, nos Países
Baixos.
De 1906 a 1914 foi
ministro do Supremo Tribunal Federal.
No fim da vida, ainda
exerceu o cargo de prefeito do então Distrito Federal — o Rio de Janeiro — e
também foi ministro da Fazenda.
Como frisa o
CPDOC-FGV, deixou “vasta obra publicada, que versa sobre educação, finanças e
direito”. Entre elas, Educação Elementar nos Estados Unidos da América do
Norte, Ensino Moral e Religioso nas Escolas Públicas, The Brazilian Language
and Its Agglutination, O Meio Circulante no Brasil, Projeto de Constituição de
um Estado e Tributação Constitucional, Polêmica na Imprensa.
“Amaro Cavalcanti é
uma figura singular na história do pensamento brasileiro. Ele estudou nos
Estados Unidos na época em que poucos iam aos Estados Unidos, conhecia o
direito público como ninguém, era latinista e chegou a lecionar no imperial
Colégio Dom Pedro 2º”, ressalta à BBC News Brasil o jurista Arnaldo Sampaio de
Moraes Godoy, professor livre-docente na Universidade de São Paulo (USP) e
professor titular no Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).
De acordo com ele,
Cavalcanti deixou quatro “legados fundamentais”. O primeiro foi como
tributarista, já que ele foi autor de obras sobre direito tributário e direito
financeiro.
O segundo seria o
internacionalista, pois ele “foi o grande consultor jurídico do Ministério das
Relações Exteriores”.
Por fim, os legados
“como professor” e “como constituinte”. Godoy lembra que a Constituição
redigida em 1891 “de certa maneira define a estrutura republicana que persiste
até os dias de hoje”.
“Ele foi um político e
jurista importante tanto na época do Império quanto nas décadas iniciais da
República”, comenta Rezzutti.
“Ele é da geração de
Ruy Barbosa, Joaquim Nabuco, Barão do Rio Branco entre outros que tinham um
projeto de Brasil e fizeram a diferença para a construção do Estado nacional.
Por mais relevante que Silvio Santos seja na vida de milhões de brasileiros, critérios
como fama podem ser efêmeros e no futuro não dizer nada mais a respeito do
homenageado.”
Para o professor Godoy
a troca de nome “é um desrespeito à história cultural do Brasil”.
“Ainda que nós
reconheçamos o Silvio Santos como uma figura também singular, que tem os seus
méritos, tenho a mais absoluta convicção de que Amaro Cavalcanti não pode ter o
nome trocado dessa maneira tão abrupta”, declara.
Na opinião dele, “nome
de colégio é algo que naturalmente deve ser uma evocação a um educador, a um
professor ou alguém que lutou pelas letras”.
“E Silvio Santos, com
todos os seus méritos, jamais foi educador, jamais foi professor, jamais lutou
pelas letras”.
“Um colégio deve
designar uma pessoa de cultura, uma pessoa que incentiva a informação e os
livros e uma vida de mais realização cultural. Silvio Santos em nenhum momento
chegou perto disso. E Amaro Cavalcanti é uma prova emblemática disso”, destaca.
Fonte: BBC News Brasil
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