quarta-feira, 23 de outubro de 2024

A fraude eleitoral que "apressou" projeto da urna eletrônica

Segura e inviolável, a urna eletrônica brasileira foi criada com dois objetivos muito claros: tornar o processo eleitoral mais rápido — em um país de dimensões continentais –; e acabar com fraudes. O episódio mais emblemático sobre este segundo ponto aconteceu há exatos 30 anos.

Em 19 de outubro de 1994, os sete juízes do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do Rio de Janeiro decidiram, unanimemente, anular as eleições para deputados federais e estaduais no estado, convocando nova votação para o mês de novembro.

Havia fortes evidências de fraude. O número de votos brancos havia caído de 20% para 10% de 1990 para 1994. Pelo menos uma urna não estava devidamente lacrada. Em uma seção, foram encontradas pelo menos 20 cédulas sem assinatura dos mesários. Em uma das zonas eleitorais, um juiz descobriu irregularidades em 185 cédulas. Em outra, 200 cédulas foram preenchidas com a mesma caligrafia.

No meio disso tudo, autoridades eleitorais do Rio receberam telefonemas com ameaças de morte. O então juiz eleitoral do Rio Luiz Fux, hoje ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a recontagem de 380 mil votos de uma zona eleitoral onde se acreditava que 90% das urnas tivessem sido fraudadas.

"As fraudes foram generalizadas e culminaram com a anulação geral do pleito", afirma o jurista Henrique Neves da Silva, ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Essa grave situação precipitou um processo que já estava em curso: a ideia de transformar as eleições brasileiros em um modelo eletrônico. "Havia muita intervenção humana no processo. E onde tem intervenção humana há pelo menos três atributos ligados ao humano: a lentidão, a prática de erros e muitas fraudes", explica o analista de sistemas e matemático Giuseppe Janino, um dos cérebros por trás da criação da urna eletrônica.

"Esses problemas, identificados no processo convencional, foram efetivamente os causadores da anulação das eleições para deputado federal e estadual no Rio de Janeiro", comenta. "Identificaram-se falhas e várias fraudes no processo. Entendeu-se que havíamos batido no fundo do poço na questão da integridade e da credibilidade do processo eleitoral brasileiro."

Neves da Silva comenta que, diante do "péssimo exemplo" que havia ocorrido no Rio, o TSE apressou-se para "desenvolver as primeiras urnas eletrônicas".

•        A criação da urna eletrônica

No rescaldo da confusão fluminense, o então ministro do STF Carlos Velloso assumiu a presidência do TSE, em dezembro de 1994. A prioridade da sua gestão era que, já em 1996, a votação fosse eletrônica ao menos em parte do país.

Foi montado um grupo de especialistas em direito eleitoral e em informática, batizado de Comissão de Informatização das Eleições Municipais de 1996. Até agosto de 1995, eles definiram as premissas do projeto. Em setembro, os gargalos técnicos já haviam sido resolvidos. A partir de então, o desafio era conseguir implantar o sistema e efetivar sua logística a tempo do pleito do ano seguinte.

A informatização era um plano antigo das autoridades eleitorais brasileiras. Tanto que o Código Eleitoral de 1932, a primeira norma brasileira específica para o tema, tinha um artigo prevendo o "uso das máquinas de votar", após uma regulamentação feita "oportunamente pelo Tribunal Superior".

Mas a tecnologia ainda não permitia tamanho avanço. Em 1958, o inventor brasileiro Sócrates Puntel (1917-1990) criou uma máquina de votar e chegou a apresentá-la para autoridades — mas dificuldades em transportá-la impossibilitaram sua adoção. Em 1978, o TRE de Minas Gerais também desenvolveu uma engenhoca semelhante, novamente descartada por não ser acessível, resistente e facilmente transportável. Em 1989, eleitores de um município de Santa Catarina votaram por meio de computadores, de forma experimental.

Neves da Silva lembra que desde os anos 1980, "o cadastro de eleitores no Brasil passou a ser centralizado e informatizado". Isto já resolveu um tipo de problema: as fraudes no alistamento. A partir de então, cada eleitor seguramente só era registrado uma única vez.

Em 1996, houve a estreia do modelo atual — 57 municípios já votaram pelo sistema eletrônico. "As fraudes manuais foram eliminadas e até mesmo os erros naturais de contagem e manipulação de papéis passaram a ser evitados", diz o jurista. "Isso porque, com o processo de votação eletrônico, a mão humana foi retirada das fases de apuração, totalização e proclamação dos resultados, que eram uns dos principais focos dos fraudadores."

"A ideia de redemocracia, de governo aberto a partir do uso de ferramentas tecnológicas, é muito forte no Brasil, e também corroborada por uma série de tratados internacionais", comenta a cientista política e socióloga Mayra Goulart, professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Ela explica que a urna eletrônica se insere nesse contexto, já que a ideia é "usar a tecnologia para disponibilizar informação e aumentar a participação do cidadão na política". Tal participação vem tanto no ato de "selecionar os representantes" quanto na "participação do processo político, exercendo funções de controle".

"No caso específico do Brasil, caracterizado por uma relação de muito poder das elites locais, que acabam tendo um domínio muito grande sobre a população que vive nos território por elas comandadas, havia a tradição do ‘voto de cabresto', expressão que implica justamente que a ascendência dessas elites poderia ser determinante pare restringir a liberdade de voto", contextualiza Goulart. "A urna eletrônica surge para romper com esse cenário de atraso e conferir liberdade política para esses cidadãos."

•        Fraudes mais comuns

Alguns tipos de fraudes eram recorrentes nos tempos das cédulas de papel. Uma delas, conforme contam os especialistas, era o "voto formiguinha". O fraudador chegava na fila e aliciava um eleitor para o esquema, dando a ele um papelzinho em branco e orientando-o a colocar esse papel na urna — e trazer a cédula oficial para o golpista, em troca de dinheiro.

Então essa cédula era preenchida conforme os interesses do fraudador e dada a um outro eleitor — que tinha de depositá-la na urna em vez do seu voto, trazendo uma nova cédula em branco para receber a recompensa. E assim sucessivamente.

Outro método era o da "urna emprenhada", ou seja, já cheia de votos dentro antes mesmo do início da eleição. "Havia também fraude na mesa apuradora, quando escrutinadores de má fé, no momento em que abriam os votos, aproveitavam-se da possibilidade de subtração ou inserção de cédulas", conta Janino. "E votos em branco, havia apuradores que colocavam grafite embaixo da unha e assim os preenchiam."

Neves da Silva diz também que "os resultados eram modificados na fase de apuração, quando eram inseridos manualmente nos boletins e posteriormente, quando copiados para a totalização".

"Ou seja: havia muitas fraudes dentro do processo convencional e isso foi o grande motivador para a total quebra de paradigma", avalia Janino. "A decisão foi mitigar a mão do homem do processo, substituindo-a pela tecnologia."

•        Sistema consolidado

Em 28 anos de adoção, nunca houve nenhuma comprovação de fraude no sistema eletrônico. A cientista política Goulart lembra que, depois de o modelo ter sido amplamente questionado — sobretudo por apoiadores do ex-presidente e então candidato Jair Bolsonaro, que insuflava esse discurso — nas eleições anteriores, o tema parece superado. "2024 marca um desgaste desse tipo de discurso. Foi um processo eleitoral em que o questionamento às urnas não se fez presente na maioria dos discursos", diz ela.

 

•        "Urna eletrônica incomodou quem se beneficiava de fraudes", diz um dos seus criadores

Pouquíssimos personagens brasileiros foram tão falados, comentados e debatidos ao longo de 2022 como o sistema de computador que, a partir de 1996, se tornou parte indissociável do próprio processo democrático da nação: a urna eletrônica.

Para um dos criadores do sistema, o matemático e analista de sistemas Giuseppe Janino, esse movimento visando a desacreditar a votação digital começou a se fortalecer há oito anos, impulsionado por "um grupo que pretende efetivamente desestabilizar o processo democrático e desqualificar a própria urna eletrônica, sustentáculo do processo".

E as estratégias desse grupo, conforme avalia Janino, tomaram forma sobretudo depois da ascensão do republicano Donald Trump nos Estados Unidos, força política conservadora que acabou inspirando militantes de extrema direita em todo o mundo, inclusive apoiadores de Jair Bolsonaro no Brasil.

Neste ano em que as urnas eletrônicas foram, mais uma vez, protagonistas no Brasil, Janino lançou o livro O Quinto Ninja, em que conta um pouco dos bastidores da criação do sistema. Gaúcho de Canoas, ele tinha 35 anos quando, em 1996, passou no concurso de analista de sistemas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e se tornou um dos desenvolvedores da urna.

"Sempre houve questionamentos com relação à urna eletrônica justamente porque ela própria incomodou e ainda incomoda alguns segmentos da classe política", comenta em entrevista à DW. "Aqueles que se beneficiavam de fraudes certamente ficaram incomodados."

Durante 15 anos, o matemático foi Secretário de Tecnologia da Informação do TSE. Atualmente ele é consultor em eleições digitais e conselheiro da organização internacional Project Management Institute em Brasília.

LEIA A ENTREVISTA

•        DW: Neste ano foram muitos os questionamentos em relação à segurança da urna eletrônica. Como um dos desenvolvedores, como você responde a isso?

Giuseppe Janino: Questionamentos sempre houve, desde a criação. Infelizmente, eles foram intensificados nos últimos oito anos e nós podemos identificar a causa desse aumento justamente como uma estratégia de um grupo que pretende efetivamente desestabilizar o processo democrático e desqualificar a própria urna eletrônica, sustentáculo do processo. E a estratégia é desqualificar, colocar informações tendenciosas, falsas, no sentido de que se possa, uma vez desqualificadas as imagens do processo eleitoral e da urna eletrônica, questionar posteriormente quaisquer resultados que não sejam de acordo com esse grupo.

O que garante que a urna eletrônica brasileira é 100% confiável?

Justamente a sua história. Basta olhar: são 26 anos de utilização, e não há sequer um caso de fraude evidenciado. Sempre que há suspeições, estas são formalizadas e investigadas por instituições independentes e competentes como o Ministério Público e a Polícia Federal. E a história demonstra efetivamente que não há sequer um caso de fraude evidenciada. Isso é uma evidência de que a urna eletrônica é 100% confiável.

•        Se o sistema já está em uso há tanto tempo, porque esses questionamentos se tornaram mais intensos nos últimos anos?

Sempre houve questionamentos com relação à urna eletrônica justamente porque ela própria incomodou e ainda incomoda alguns segmentos da classe política […]. Aqueles que se beneficiavam de fraudes certamente ficaram incomodados. E isso se intensificou principalmente depois das eleições americanas de 2016, quando foi eleito Donald Trump. Ali surgiu uma novidade: a avalanche de fake news utilizando-se da desinformação. Herdamos essa estratégia nas eleições de 2018 [quando foi eleito Jair Bolsonaro], quando as fake news apareceram e trouxeram o questionamento, principalmente por aqueles que desejavam desestabilizar a credibilidade do processo eleitoral e democrático, às urnas eletrônicas. Com as redes sociais e as notícias falsas, tivemos um novo cenário. Esse aumento nos questionamentos foi potencializado por essa onda que surgiu a partir de 2016, com o uso das fake news com um potencial instrumental, tecnológico, por meio das redes sociais.

•        Quando a urna eletrônica passou a ser utilizada, ainda de forma parcial, em 1996, quais eram suas expectativas?

Era a introdução, a mudança do paradigma convencional para o digital. Um terço das seções eleitorais, em 1996, experimentava ali a urna eletrônica pela primeira vez. A expectativa, a preocupação, era justamente como o cidadão brasileiro iria se comportar diante dessa grande transformação, abandonar as cédulas de papel para interagir com um computador. Houve iniciativas no sentido de capacitar o eleitorado brasileiro, com urnas colocadas [antes do dia da eleição] em praças, shoppings centers e locais de grande circulação.

Pelo fato de a urna ter sido construída de maneira intuitiva, o resultado superou muito as expectativas. Todos os eleitores se adequaram ao voto pela urna eletrônica e a surpresa foi que aqueles cidadãos que estavam à margem do processo de votação [com as cédulas], conseguiram, a partir daí, interagir com o processo eleitoral. O analfabeto, o deficiente visual, o indígena, o idoso, pelo fato de a urna ser intuitiva, foram melhor incluídos. Conseguiu-se resgatar segmentos da sociedade.

•        E quanto às dificuldades? Há algum relato a respeito?

Há várias histórias bastante curiosas. Nas eleições municipais de 1996, na inauguração da própria urna eletrônica, havia uma expectativa e uma preocupação de como o eleitor haveria de se comportar diante dessa mudança importante no processo, como ele iria interagir com a urna eletrônica. Apesar de toda a campanha feita, ainda existia bastante insegurança por parte do eleitor em termos de como ele iria se comportar diante da urna eletrônica. Em uma seção eleitoral no estado do Rio de Janeiro, os mesários costumavam levar um lanchinho e, nessa, eles sofisticaram um pouco e também levaram um micro-ondas para esquentar o lanchinho. Deixaram o equipamento em um canto da sala. Durante a votação, entrou uma senhora bastante ansiosa, nervosa, insegura. Ela se dirigiu ao canto para votar e, quando interagia com o equipamento, um mesário foi atrás dela. A senhora perguntou o que tinha acontecido, se ela estava votando errado. "Não, a senhora está votando certo, mas está votando no equipamento errado", respondeu o mesário. Ela estava digitando o número no micro-ondas e não na urna eletrônica. Diz-se que esse foi o voto mais quente da história.

 

Fonte: DW Brasil

 

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