'ArgenChina'? Especialistas esquadrinham
reviravolta ideológica de Milei sobre o gigante asiático
Nas últimas semanas, o
presidente da Argentina, Javier Milei, fez um giro de 180 graus em sua política
externa. De país execrado por ser "comunista", a China se tornou em
poucos meses um "parceiro comercial muito interessante".
Durante a campanha e
após assumir a presidência, em dezembro de 2023, Milei assumiu uma campanha
acirrada contra a China e uma postura pró-ocidental. No entanto, a realidade
econômica do país forçou uma mudança drástica em sua abordagem.
A situação provoca
reflexões sobre a política externa da Argentina e a adaptação de Milei a um
novo contexto global. O podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, ouviu
especialistas nesta segunda-feira (21) para tentar responder a pergunta que
paira no ar: já caiu a ficha de Milei de que o Ocidente não está nem aí para a
Argentina?
O país sul-americano,
que enfrenta há décadas desafios financeiros significativos, tem altíssimos
empréstimos internacionais para pagar, inclusive com a China.
No início de outubro,
Milei descreveu a China como um "parceiro comercial muito
interessante", ressaltando que o país "não exige nada, a única coisa
que pedem é que não sejam incomodados".
Para o professor de
política internacional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Paulo
Velasco, após tomar posse Milei "teve um choque de realidade" ao ter
a real noção da importância da China para a economia argentina.
"Ele percebeu que
evidentemente o país está em um processo de transição econômica, um cenário bem
difícil. Está tentando controlar as contas, mas há um preço muito elevado,
inclusive com o avanço brutal da pobreza. A Argentina precisa de apoio […], e
ele sabe que pouca gente pode dar isso à Argentina como a China."
O professor de
relações internacionais do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo e
pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os
Estados Unidos (INCT-INEU), Matheus de Oliveira tem avaliação similar sobre o
despertar de Milei.
"É um
reconhecimento tardio por parte dele, mas que é um reconhecimento óbvio, que está
minimamente familiarizado com a situação da Argentina, de que a China é um
parceiro econômico imprescindível. Não é possível abrir mão, minimizar o papel
que a China tem para a economia argentina, seja como destino importante de
exportações, pelos investimentos que tem no país, seja também por conta dos
mecanismos financeiros que existem entre os dois países."
Ele acrescentou que os
ataques de Milei contra a China demonstram como ele chegou ao cargo com
"muitas caricaturas e com muitos estereótipos a respeito de questões
vitais para o país, como é o caso das relações com a China".
O apoio
norte-americano pode até ser indispensável, avaliou ele, mas não é suficiente
para enfrentar o problema do estrangulamento externo da economia, do setor
financeiro e da dívida.
Para o cientista
político da UERJ, a América Latina como um todo "tem caído cada vez mais
na realidade" de que a relação sobretudo com os EUA tem trazido mais
frustrações.
"Eles prometem,
prometem, mas não entregam aquilo que prometem. Então é uma região que tem
buscado diversificar laços, parcerias, olhando para outros atores e se
posicionando", disse Velasco, ao defender que a China tem sido muito
melhor parceira para a América Latina que os EUA. "É um melhor investidor,
financia mais e melhor. Tem um comércio mais potente com a região."
Oliveira respaldou tal
afirmação, relembrando que esse é o modus operandi chinês.
"A China não tem
uma postura de interferência em questões internas dos países. A China não tem
esse comportamento de querer barganhar muito posições políticas em troca de
questões econômicas."
Por outro lado,
Velasco ponderou que, historicamente, quando os Estados Unidos enxergam a
região como ameaçada pelo assédio de algum outro player extrarregional, eles
tendem a responder, mostrando-se mais generosos em alguma iniciativa, como já
ocorreu durante o período da Guerra Fria.
"E agora com a
China, de alguma maneira assediando mais diretamente atores importantes — o
Brasil, a Argentina, enfim, vários outros atores no espaço latino-americano e
caribenho —, é natural que os Estados Unidos decidam reagir em alguma medida,
de forma um pouco mais generosa."
Uma dessas medidas
norte-americanas tem sido a de parcelar dívidas e fornecer novos empréstimos
para que o país siga a linha econômica de corte de gastos e diminuição
paulatina do Estado.
Na visão do acadêmico
da UERJ, demissões em massa de servidores públicos e cortes de financiamento de
universidades, entre outras medidas elogiadas por instituições financeiras
ocidentais e agências internacionais de crédito e de rating, contribuíram para
os dez últimos meses de superávit na Argentina.
Entretanto o preço
social tem sido alto, cujos efeitos de médio e longo prazo podem ser muito
dramáticos para os argentinos, ponderou Velasco.
"Tenho contato
com vários pesquisadores, parceiros na Argentina, eles estão vivendo uma
situação como nunca viveram, nem nos piores momentos de crise, em termos de
corte de verba, para pesquisa etc. Então é um preço muito alto, e aí a gente
vê, claro, as contas melhorando, mas a população está mergulhando cada vez mais
na pobreza."
Pragmática, a China
não deve perdoar a dívida argentina, mas pode reescalonar os prazos em
benefício de um fôlego financeiro maior para o país.
Em contrapartida, deve
exigir uma postura mais prudente da política externa argentina, opinou Velasco.
"Uma política
externa que meça melhor suas estratégias, seus passos, e saiba calcular melhor
as suas rotas de ação […]. Ou seja, que esse país resista à tentação, à
inclinação de se devotar, por exemplo, a interesses diretamente dos Estados
Unidos ou do Ocidente que possam prejudicar as ações chinesas."
Caso a relação entre
os países se azeite, as possibilidades de ganho são muito concretas do ponto de
vista econômico, "que é justamente onde os Estados Unidos têm
falhado", opinou Velasco.
"A Argentina tem,
há não muito tempo, uma experiência de ter construído um alinhamento automático
com os Estados Unidos, de ter aprofundado significativamente as relações com os
Estados Unidos, e isso, no final das contas, não resultou em benefícios muito
concretos para o país", disse Oliveira.
Mesmo que as relações
"ArgenChinas" comecem a ir de vento em popa, o apoio da gigante
asiática não tem como garantir crescimento econômico, geração de emprego e
outros benefícios para a população, algo que ainda não ocorreu após cerca de um
ano de governo.
Os entrevistados
também opinaram que não importa quem ganhe no dia 5 de novembro nas eleições
presidenciais norte-americanas, adiantou o analista da UERJ.
"A América Latina
vai continuar não sendo prioritária para os Estados Unidos, vamos continuar na
rabeira das prioridades deles", completou Velasco.
Nesse sentido,
Oliveira acrescenta, assim como a Argentina, os demais países da região devem
buscar diversificar parcerias e construir alternativas para fugir de
dependências muito desequilibradas.
"A questão não é
se é melhor ou pior depender da China ou do Ocidente. O ruim é depender só de
um parceiro ou de um conjunto muito restrito de parceiros", concluiu ele.
• Argentina declina assinatura de
documento em reunião do G20 e gera rejeição entre membros
Posicionamento de
representantes argentinos em reunião do G20 irritou governo brasileiro e
participantes, fazendo com que até se considerasse não incluir mais o grupo de
Buenos Aires em algumas reuniões.
De acordo com a
revista Veja, durante reunião ministerial do Grupo de Trabalho de Empoderamento
de Mulheres do G20, comandada pela ministra Cida Gonçalves no último dia 11, os
representantes argentinos foram os únicos a discordar da declaração que seria de
consenso sobre a igualdade de gênero.
Segundo a mídia, o
texto reconhece que meninas e mulheres em todo o mundo enfrentam desigualdades
específicas em decorrência do gênero, que são agentes de mudança e têm um papel
significativo na tomada de decisões, na tomada de decisões, na liderança e no
enfrentamento dos desafios globais. Mas os "hermanos" não adotaram a
causa.
Buscando consenso na
declaração, o Itamaraty recorreu e pediu aos argentinos que reconsiderassem. No
entanto, diplomatas brasileiros receberam a informação de que o tema
"subiu" até chegar a Milei, que rejeitou o texto.
Embaixador russo no
Brasil Alexey Labetskiy. - Sputnik Brasil, 1920, 16.10.2024
Panorama internacional
Brasil desvia as
tentativas de politizar as atividades do G20, diz embaixador russo
16 de outubro, 10:36
O resultado é que
Brasil e os demais países do G20 ficaram na bronca com a Argentina e chegaram a
discutir a possibilidade de não chamar os hermanos para algumas reuniões do
grupo, o que seria inédito, escreve a mídia.
O presidente argentino
confirmou sua presença na cúpula do grupo em novembro no Rio de Janeiro. Essa
será a primeira vez que ele e Luiz Inácio Lula da Silva vão se encontrar desde
a chegada de Milei ao poder em meio a um relacionamento conturbado e com troca
de farpas entre os líderes.
• Como uma província falida Argentina está
enfrentando os amplos cortes feitos por Javier Milei
Parecem dinheiro,
cabem nas carteiras como dinheiro e o governador promete que serão usadas como
dinheiro. Mas essas notas coloridas (veja imagem acima) não são nem pesos
argentinos nem os requisitados dólares americanos — moeda preferida de quem
vive na Argentina.
São, na verdade,
“chachos”, uma moeda emergencial criada pelo governador de La Rioja, uma
província do noroeste do país. O território entrou em falência quando o
presidente Javier Milei cortou as transferências de recursos para as
províncias, parte de um programa de austeridade sem precedentes.
“Quem poderia imaginar
que um dia eu iria querer ganhar pesos?”, disse Lucía Vera, uma professora de
música. Ela fez a declaração ao sair de uma academia cheia de funcionários
públicos que esperavam para receber seu bônus mensal de chachos no valor de 50
mil pesos (cerca de US$ 40).
Na capital La Rioja,
adesivos informam ao público que os “chachos são bem-vindos”. As frases são
vistas em redes de supermercados, postos de gasolina e até em restaurantes
elegantes e salões de beleza.
O governo local
garante uma taxa de câmbio de 1 para 1 com pesos e aceita chachos para
pagamento de impostos e contas de serviços públicos.
Mas existem
desvantagens: os chachos não podem ser usados fora de La Rioja e apenas
empresas registradas podem trocá-los por pesos. A troca pode ser feita em
pontos estabelecidos pelo governo.
“Preciso de dinheiro
de verdade”, disse Adriana Parcas, uma vendedora ambulante de 22 anos que paga
seus fornecedores em pesos. Ela havia acabado de recusar a venda a dois
clientes que queriam comprar perfumes com chachos.
As notas trazem o
rosto de Ángel Vicente “Chacho” Peñaloza, líder famoso por defender La Rioja
numa batalha do século 19 contra as autoridades nacionais em Buenos Aires. Um
QR Code na nota leva a um site que expõe Milei por se recusar a transferir a
parcela de fundos federais para a província.
Após assumir o
governo, em dezembro de 2023, Milei rapidamente impôs um choque fiscal como
tentativa de reverter décadas de gastos populistas que deixaram a Argentina com
déficits monumentais.
Os cortes apertaram as
23 províncias do país, mas desencadearam uma crise total em La Rioja, onde a
folha de pagamento pública representa dois terços de todos os trabalhadores
registados e onde os impostos redistribuídos pelo governo federal sustentam 90%
do orçamento.
Com menos de 384,6 mil
habitantes e pouca indústria além de nogueiras e oliveiras, La Rioja recebeu
mais fundos federais discricionários do que qualquer outra província no ano
passado, exceto Buenos Aires, onde vivem 17,6 milhões de pessoas.
No entanto, a taxa de
pobreza na província é de 66%, resultado, segundo críticos, de um sistema
clientelista há muito utilizado para apaziguar grupos de interesse em
detrimento da eficiência.
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Posição ousada
Enquanto as reformas
de Milei forçaram outras províncias a apertar o cinto e a despedir milhares de
funcionários, o governador Ricardo Quintela – uma figura influente no movimento
peronista há muito dominante na Argentina e um dos mais ferrenhos críticos de
Milei – se recusou a absorver o descontentamento com a austeridade.
“Não vou tirar o prato
de comida do povo de Rioja para pagar uma dívida que o governo nacional tem”,
disse Quintela à Associated Press, que retratou o seu plano de impressão de
chachos como uma posição ousada frente a 10 meses de queda dos salários, aumento
do desemprego e aprofundamento da miséria sob o governo de Milei.
La Rioja se declarou
inadimplente no pagamento da dívida em fevereiro e agosto. Em setembro, um juiz
federal de Nova York ordenou que a província pagasse quase US$ 40 milhões em
indenizações a detentores de títulos norte-americanos e britânicos.
A Suprema Corte da
Argentina está analisando o caso da recusa da província de cobrar dos
consumidores preços altos de energia elétrica após Milei ter retirado os
subsídios.
“Digamos que existe um
caminho diferente daquele traçado pelo atual presidente”, disse Quintela. Para
ele, Milei está propondo um caminho bastante difícil "pela crueldade das
políticas que aplica”.
Ele parecia
convencido, em um momento em que os índices de aprovação de Milei caíram abaixo
dos 50% desde que o economista radical assumiu o poder.
Mas, como dizem Milei
e os seus aliados, a alternativa de Quintela oferece pouco mais do que um
regresso ao terreno peronista habitual de gastos desenfreados – e insolvência –
que levou à crise total que o seu governo herdou.
“Vocês estavam
acostumados a ter a gravata amarrada e os sapatos engraxados. Agora, vocês que
têm que fazer o nó”, disse o secretário de imprensa de Milei, Eduardo
Serenellini, aos líderes empresariais em uma recente visita à província.
“Quando o dinheiro acaba, acaba."
Serenellini pegou uma
nota de chacho e a sacudiu como um fiapo.
Vendedor de ovos
mostra seus ganhos em 'chachos' após um dia de trabalho na província de La
Rioja, na Argentina. — Foto: Associated Press
<><> Sem
resgate
A manobra do
governador Quintela na remota província teve pouco efeito nas finanças federais
da Argentina. Mas isso poderá mudar se mais províncias com falta de dinheiro
seguirem o exemplo, como aconteceu durante a terrível crise financeira do país
em 2001.
À época, um plano de
austeridade igualmente brutal fez mais de uma dúzia de províncias imprimirem às
pressas suas próprias moedas paralelas.
No entanto, ao
contrário de duas décadas atrás, quando o ex-presidente peronista Néstor
Kirchner colocou fim ao caos ao trocar as moedas provisórias “patacones”,
“cecacores” e “bocanfores” por pesos, o presidente Javier Milei se recusou a
resgatar La Rioja.
“Não seremos cúmplices
de pessoas irresponsáveis que procuram enganar as pessoas com a falsificação de
papéis”, afirmou Milei em uma entrevista recente ao canal de TV argentino Todo
Noticias.
Mas o presidente
reconheceu que não poderia impedir La Rioja de fazer o que queria, considerando
que a constituição da Argentina permite esse tipo de solução financeira.
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Emissão de chachos
O chacho entrou em
circulação em agosto, após o Legislativo de La Rioja aprovar planos para emitir
22,5 bilhões de pesos da moeda para ajudar a cobrir até 30% dos salários do
setor público.
Com o rendimento médio
de La Rioja abaixo de US$ 200 por mês e lojas fechando devido à falta de
clientes, as autoridades distribuíram chachos no valor de 8,4 mil milhões de
pesos em bônus mensais em agosto e setembro. A medida busca estimular a
economia local e ajudar os trabalhadores a lidar com uma inflação na casa dos
230%.
Para incentivar o uso
do chacho, as autoridades prometem pagar juros de 17% sobre as notas mantidas
até o vencimento, em 31 de dezembro.
“Quanto mais nos
aproximamos do vencimento, mais a confiança no chacho se consolida”, disse
Carlos Nardillo Giraud, assessor do tesoureiro provincial.
Açougueiro aceita
'chachos' como forma de pagamento em La Rioja, na Argentina. — Foto: Associated
Press
A maioria dos
funcionários públicos entrevistados nas filas de chacho que se espalhavam pelas
calçadas de La Rioja disseram que queriam se livrar dessas contas o mais rápido
possível.
“O chacho é uma
alternativa para pessoas que não conseguem chegar ao fim do mês”, disse Daniela
Parra, professora de física de 30 anos, com os braços cheios de chachos e
pronta gastar tudo no supermercado. "Mas não sabemos o que vai acontecer
no próximo mês."
Nas ruas, os
comerciantes dizem que se sentem em um beco sem saída. Não aceitar os chachos
significa afastar clientes com novo poder de compra em plena recessão. Mas
aceitar a moeda significa encher o caixa com dinheiro sem valor para
fornecedores estrangeiros.
“É um sistema onde
você é forçado a depender [do governo]”, disse Juan Keulian, diretor do Centro
de Comércio e Indústria de La Rioja. “Não há opção em um lugar como este.”
Fonte: Sputnik
Brasil/AP
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