quarta-feira, 23 de outubro de 2024

'ArgenChina'? Especialistas esquadrinham reviravolta ideológica de Milei sobre o gigante asiático

Nas últimas semanas, o presidente da Argentina, Javier Milei, fez um giro de 180 graus em sua política externa. De país execrado por ser "comunista", a China se tornou em poucos meses um "parceiro comercial muito interessante".

Durante a campanha e após assumir a presidência, em dezembro de 2023, Milei assumiu uma campanha acirrada contra a China e uma postura pró-ocidental. No entanto, a realidade econômica do país forçou uma mudança drástica em sua abordagem.

A situação provoca reflexões sobre a política externa da Argentina e a adaptação de Milei a um novo contexto global. O podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, ouviu especialistas nesta segunda-feira (21) para tentar responder a pergunta que paira no ar: já caiu a ficha de Milei de que o Ocidente não está nem aí para a Argentina?

O país sul-americano, que enfrenta há décadas desafios financeiros significativos, tem altíssimos empréstimos internacionais para pagar, inclusive com a China.

No início de outubro, Milei descreveu a China como um "parceiro comercial muito interessante", ressaltando que o país "não exige nada, a única coisa que pedem é que não sejam incomodados".

Para o professor de política internacional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Paulo Velasco, após tomar posse Milei "teve um choque de realidade" ao ter a real noção da importância da China para a economia argentina.

"Ele percebeu que evidentemente o país está em um processo de transição econômica, um cenário bem difícil. Está tentando controlar as contas, mas há um preço muito elevado, inclusive com o avanço brutal da pobreza. A Argentina precisa de apoio […], e ele sabe que pouca gente pode dar isso à Argentina como a China."

O professor de relações internacionais do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), Matheus de Oliveira tem avaliação similar sobre o despertar de Milei.

"É um reconhecimento tardio por parte dele, mas que é um reconhecimento óbvio, que está minimamente familiarizado com a situação da Argentina, de que a China é um parceiro econômico imprescindível. Não é possível abrir mão, minimizar o papel que a China tem para a economia argentina, seja como destino importante de exportações, pelos investimentos que tem no país, seja também por conta dos mecanismos financeiros que existem entre os dois países."

Ele acrescentou que os ataques de Milei contra a China demonstram como ele chegou ao cargo com "muitas caricaturas e com muitos estereótipos a respeito de questões vitais para o país, como é o caso das relações com a China".

O apoio norte-americano pode até ser indispensável, avaliou ele, mas não é suficiente para enfrentar o problema do estrangulamento externo da economia, do setor financeiro e da dívida.

Para o cientista político da UERJ, a América Latina como um todo "tem caído cada vez mais na realidade" de que a relação sobretudo com os EUA tem trazido mais frustrações.

"Eles prometem, prometem, mas não entregam aquilo que prometem. Então é uma região que tem buscado diversificar laços, parcerias, olhando para outros atores e se posicionando", disse Velasco, ao defender que a China tem sido muito melhor parceira para a América Latina que os EUA. "É um melhor investidor, financia mais e melhor. Tem um comércio mais potente com a região."

Oliveira respaldou tal afirmação, relembrando que esse é o modus operandi chinês.

"A China não tem uma postura de interferência em questões internas dos países. A China não tem esse comportamento de querer barganhar muito posições políticas em troca de questões econômicas."

Por outro lado, Velasco ponderou que, historicamente, quando os Estados Unidos enxergam a região como ameaçada pelo assédio de algum outro player extrarregional, eles tendem a responder, mostrando-se mais generosos em alguma iniciativa, como já ocorreu durante o período da Guerra Fria.

"E agora com a China, de alguma maneira assediando mais diretamente atores importantes — o Brasil, a Argentina, enfim, vários outros atores no espaço latino-americano e caribenho —, é natural que os Estados Unidos decidam reagir em alguma medida, de forma um pouco mais generosa."

Uma dessas medidas norte-americanas tem sido a de parcelar dívidas e fornecer novos empréstimos para que o país siga a linha econômica de corte de gastos e diminuição paulatina do Estado.

Na visão do acadêmico da UERJ, demissões em massa de servidores públicos e cortes de financiamento de universidades, entre outras medidas elogiadas por instituições financeiras ocidentais e agências internacionais de crédito e de rating, contribuíram para os dez últimos meses de superávit na Argentina.

Entretanto o preço social tem sido alto, cujos efeitos de médio e longo prazo podem ser muito dramáticos para os argentinos, ponderou Velasco.

"Tenho contato com vários pesquisadores, parceiros na Argentina, eles estão vivendo uma situação como nunca viveram, nem nos piores momentos de crise, em termos de corte de verba, para pesquisa etc. Então é um preço muito alto, e aí a gente vê, claro, as contas melhorando, mas a população está mergulhando cada vez mais na pobreza."

Pragmática, a China não deve perdoar a dívida argentina, mas pode reescalonar os prazos em benefício de um fôlego financeiro maior para o país.

Em contrapartida, deve exigir uma postura mais prudente da política externa argentina, opinou Velasco.

"Uma política externa que meça melhor suas estratégias, seus passos, e saiba calcular melhor as suas rotas de ação […]. Ou seja, que esse país resista à tentação, à inclinação de se devotar, por exemplo, a interesses diretamente dos Estados Unidos ou do Ocidente que possam prejudicar as ações chinesas."

Caso a relação entre os países se azeite, as possibilidades de ganho são muito concretas do ponto de vista econômico, "que é justamente onde os Estados Unidos têm falhado", opinou Velasco.

"A Argentina tem, há não muito tempo, uma experiência de ter construído um alinhamento automático com os Estados Unidos, de ter aprofundado significativamente as relações com os Estados Unidos, e isso, no final das contas, não resultou em benefícios muito concretos para o país", disse Oliveira.

Mesmo que as relações "ArgenChinas" comecem a ir de vento em popa, o apoio da gigante asiática não tem como garantir crescimento econômico, geração de emprego e outros benefícios para a população, algo que ainda não ocorreu após cerca de um ano de governo.

Os entrevistados também opinaram que não importa quem ganhe no dia 5 de novembro nas eleições presidenciais norte-americanas, adiantou o analista da UERJ.

"A América Latina vai continuar não sendo prioritária para os Estados Unidos, vamos continuar na rabeira das prioridades deles", completou Velasco.

Nesse sentido, Oliveira acrescenta, assim como a Argentina, os demais países da região devem buscar diversificar parcerias e construir alternativas para fugir de dependências muito desequilibradas.

"A questão não é se é melhor ou pior depender da China ou do Ocidente. O ruim é depender só de um parceiro ou de um conjunto muito restrito de parceiros", concluiu ele.

•        Argentina declina assinatura de documento em reunião do G20 e gera rejeição entre membros

Posicionamento de representantes argentinos em reunião do G20 irritou governo brasileiro e participantes, fazendo com que até se considerasse não incluir mais o grupo de Buenos Aires em algumas reuniões.

De acordo com a revista Veja, durante reunião ministerial do Grupo de Trabalho de Empoderamento de Mulheres do G20, comandada pela ministra Cida Gonçalves no último dia 11, os representantes argentinos foram os únicos a discordar da declaração que seria de consenso sobre a igualdade de gênero.

Segundo a mídia, o texto reconhece que meninas e mulheres em todo o mundo enfrentam desigualdades específicas em decorrência do gênero, que são agentes de mudança e têm um papel significativo na tomada de decisões, na tomada de decisões, na liderança e no enfrentamento dos desafios globais. Mas os "hermanos" não adotaram a causa.

Buscando consenso na declaração, o Itamaraty recorreu e pediu aos argentinos que reconsiderassem. No entanto, diplomatas brasileiros receberam a informação de que o tema "subiu" até chegar a Milei, que rejeitou o texto.

Embaixador russo no Brasil Alexey Labetskiy. - Sputnik Brasil, 1920, 16.10.2024

Panorama internacional

Brasil desvia as tentativas de politizar as atividades do G20, diz embaixador russo

16 de outubro, 10:36

O resultado é que Brasil e os demais países do G20 ficaram na bronca com a Argentina e chegaram a discutir a possibilidade de não chamar os hermanos para algumas reuniões do grupo, o que seria inédito, escreve a mídia.

O presidente argentino confirmou sua presença na cúpula do grupo em novembro no Rio de Janeiro. Essa será a primeira vez que ele e Luiz Inácio Lula da Silva vão se encontrar desde a chegada de Milei ao poder em meio a um relacionamento conturbado e com troca de farpas entre os líderes.

 

•        Como uma província falida Argentina está enfrentando os amplos cortes feitos por Javier Milei

Parecem dinheiro, cabem nas carteiras como dinheiro e o governador promete que serão usadas como dinheiro. Mas essas notas coloridas (veja imagem acima) não são nem pesos argentinos nem os requisitados dólares americanos — moeda preferida de quem vive na Argentina.

São, na verdade, “chachos”, uma moeda emergencial criada pelo governador de La Rioja, uma província do noroeste do país. O território entrou em falência quando o presidente Javier Milei cortou as transferências de recursos para as províncias, parte de um programa de austeridade sem precedentes.

“Quem poderia imaginar que um dia eu iria querer ganhar pesos?”, disse Lucía Vera, uma professora de música. Ela fez a declaração ao sair de uma academia cheia de funcionários públicos que esperavam para receber seu bônus mensal de chachos no valor de 50 mil pesos (cerca de US$ 40).

Na capital La Rioja, adesivos informam ao público que os “chachos são bem-vindos”. As frases são vistas em redes de supermercados, postos de gasolina e até em restaurantes elegantes e salões de beleza.

O governo local garante uma taxa de câmbio de 1 para 1 com pesos e aceita chachos para pagamento de impostos e contas de serviços públicos.

Mas existem desvantagens: os chachos não podem ser usados fora de La Rioja e apenas empresas registradas podem trocá-los por pesos. A troca pode ser feita em pontos estabelecidos pelo governo.

“Preciso de dinheiro de verdade”, disse Adriana Parcas, uma vendedora ambulante de 22 anos que paga seus fornecedores em pesos. Ela havia acabado de recusar a venda a dois clientes que queriam comprar perfumes com chachos.

As notas trazem o rosto de Ángel Vicente “Chacho” Peñaloza, líder famoso por defender La Rioja numa batalha do século 19 contra as autoridades nacionais em Buenos Aires. Um QR Code na nota leva a um site que expõe Milei por se recusar a transferir a parcela de fundos federais para a província.

Após assumir o governo, em dezembro de 2023, Milei rapidamente impôs um choque fiscal como tentativa de reverter décadas de gastos populistas que deixaram a Argentina com déficits monumentais.

Os cortes apertaram as 23 províncias do país, mas desencadearam uma crise total em La Rioja, onde a folha de pagamento pública representa dois terços de todos os trabalhadores registados e onde os impostos redistribuídos pelo governo federal sustentam 90% do orçamento.

Com menos de 384,6 mil habitantes e pouca indústria além de nogueiras e oliveiras, La Rioja recebeu mais fundos federais discricionários do que qualquer outra província no ano passado, exceto Buenos Aires, onde vivem 17,6 milhões de pessoas.

No entanto, a taxa de pobreza na província é de 66%, resultado, segundo críticos, de um sistema clientelista há muito utilizado para apaziguar grupos de interesse em detrimento da eficiência.

<><> Posição ousada

Enquanto as reformas de Milei forçaram outras províncias a apertar o cinto e a despedir milhares de funcionários, o governador Ricardo Quintela – uma figura influente no movimento peronista há muito dominante na Argentina e um dos mais ferrenhos críticos de Milei – se recusou a absorver o descontentamento com a austeridade.

“Não vou tirar o prato de comida do povo de Rioja para pagar uma dívida que o governo nacional tem”, disse Quintela à Associated Press, que retratou o seu plano de impressão de chachos como uma posição ousada frente a 10 meses de queda dos salários, aumento do desemprego e aprofundamento da miséria sob o governo de Milei.

La Rioja se declarou inadimplente no pagamento da dívida em fevereiro e agosto. Em setembro, um juiz federal de Nova York ordenou que a província pagasse quase US$ 40 milhões em indenizações a detentores de títulos norte-americanos e britânicos.

A Suprema Corte da Argentina está analisando o caso da recusa da província de cobrar dos consumidores preços altos de energia elétrica após Milei ter retirado os subsídios.

“Digamos que existe um caminho diferente daquele traçado pelo atual presidente”, disse Quintela. Para ele, Milei está propondo um caminho bastante difícil "pela crueldade das políticas que aplica”.

Ele parecia convencido, em um momento em que os índices de aprovação de Milei caíram abaixo dos 50% desde que o economista radical assumiu o poder.

Mas, como dizem Milei e os seus aliados, a alternativa de Quintela oferece pouco mais do que um regresso ao terreno peronista habitual de gastos desenfreados – e insolvência – que levou à crise total que o seu governo herdou.

“Vocês estavam acostumados a ter a gravata amarrada e os sapatos engraxados. Agora, vocês que têm que fazer o nó”, disse o secretário de imprensa de Milei, Eduardo Serenellini, aos líderes empresariais em uma recente visita à província. “Quando o dinheiro acaba, acaba."

Serenellini pegou uma nota de chacho e a sacudiu como um fiapo.

Vendedor de ovos mostra seus ganhos em 'chachos' após um dia de trabalho na província de La Rioja, na Argentina. — Foto: Associated Press

<><> Sem resgate

A manobra do governador Quintela na remota província teve pouco efeito nas finanças federais da Argentina. Mas isso poderá mudar se mais províncias com falta de dinheiro seguirem o exemplo, como aconteceu durante a terrível crise financeira do país em 2001.

À época, um plano de austeridade igualmente brutal fez mais de uma dúzia de províncias imprimirem às pressas suas próprias moedas paralelas.

No entanto, ao contrário de duas décadas atrás, quando o ex-presidente peronista Néstor Kirchner colocou fim ao caos ao trocar as moedas provisórias “patacones”, “cecacores” e “bocanfores” por pesos, o presidente Javier Milei se recusou a resgatar La Rioja.

“Não seremos cúmplices de pessoas irresponsáveis que procuram enganar as pessoas com a falsificação de papéis”, afirmou Milei em uma entrevista recente ao canal de TV argentino Todo Noticias.

Mas o presidente reconheceu que não poderia impedir La Rioja de fazer o que queria, considerando que a constituição da Argentina permite esse tipo de solução financeira.

<><> Emissão de chachos

O chacho entrou em circulação em agosto, após o Legislativo de La Rioja aprovar planos para emitir 22,5 bilhões de pesos da moeda para ajudar a cobrir até 30% dos salários do setor público.

Com o rendimento médio de La Rioja abaixo de US$ 200 por mês e lojas fechando devido à falta de clientes, as autoridades distribuíram chachos no valor de 8,4 mil milhões de pesos em bônus mensais em agosto e setembro. A medida busca estimular a economia local e ajudar os trabalhadores a lidar com uma inflação na casa dos 230%.

Para incentivar o uso do chacho, as autoridades prometem pagar juros de 17% sobre as notas mantidas até o vencimento, em 31 de dezembro.

“Quanto mais nos aproximamos do vencimento, mais a confiança no chacho se consolida”, disse Carlos Nardillo Giraud, assessor do tesoureiro provincial.

Açougueiro aceita 'chachos' como forma de pagamento em La Rioja, na Argentina. — Foto: Associated Press

A maioria dos funcionários públicos entrevistados nas filas de chacho que se espalhavam pelas calçadas de La Rioja disseram que queriam se livrar dessas contas o mais rápido possível.

“O chacho é uma alternativa para pessoas que não conseguem chegar ao fim do mês”, disse Daniela Parra, professora de física de 30 anos, com os braços cheios de chachos e pronta gastar tudo no supermercado. "Mas não sabemos o que vai acontecer no próximo mês."

Nas ruas, os comerciantes dizem que se sentem em um beco sem saída. Não aceitar os chachos significa afastar clientes com novo poder de compra em plena recessão. Mas aceitar a moeda significa encher o caixa com dinheiro sem valor para fornecedores estrangeiros.

“É um sistema onde você é forçado a depender [do governo]”, disse Juan Keulian, diretor do Centro de Comércio e Indústria de La Rioja. “Não há opção em um lugar como este.”

 

Fonte: Sputnik Brasil/AP

 

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