Como Brics passou a ser visto como ‘bloco
antiocidental’ - e qual o impacto para o Brasil
Criado em 2009,
o Brics foi fundado sob a
premissa de que as instituições internacionais eram excessivamente dominadas
por potências ocidentais e haviam deixado de servir aos países em
desenvolvimento.
O grupo se juntou com
o objetivo de coordenar as políticas econômicas e diplomáticas de seus membros,
encontrar novas soluções para as instituições financeiras e reduzir a
dependência do dólar americano.
Ainda assim, seus
integrantes sempre recusaram publicamente o título de “bloco anti-Ocidente”
atribuído por alguns.
Mas com a emergência
de dois grandes conflitos no contexto global e uma dominância cada vez maior
da China e da Rússia dentro do grupo, o Brics está cada
vez mais sendo enquadrado dessa forma.
A realização da 16ª
cúpula dos líderes do grupo em território russo, em Kazan, é apontada por
especialistas como a oportunidade perfeita para o governo de Vladimir Putin posar para fotos ao lado de seus contrapartes, impulsionar
a ideia de que não está sozinho e, talvez, reforçar ainda mais essa posição.
Ao mesmo tempo,
analistas temem que a expansão do bloco, com a entrada de quatro novos membros
no início do ano e a possibilidade de novas incorporações, possa reforçar ainda
mais a heterogeneidade do grupo e dificultar o consenso para alcançar novos objetivos.
Egito, Irã, Emirados
Árabes Unidos e Etiópia se juntaram à Brasil, Rússia, Índia, China e Rússia no início
deste ano.
A Arábia Saudita
também foi anunciada como um dos novos membros, mas ainda não concretizou os
trâmites para se juntar oficialmente. Ainda assim, o país será representado
pelo seu ministro de Relações Exteriores na reunião que começa nesta
terça-feira (22/10).
·
‘Viés antiocidental’
Além dos nove membros
oficiais do bloco (10 com a Arábia Saudita), o presidente russo Vladimir Putin
convidou mais de 20 outros países interessados em se
juntar ao Brics para a reunião de cúpula em Kazan.
Por motivos de saúde,
o presidente Lula não irá a Kazan. No domingo à tarde, de malas prontas para o
embarque à Rússia, Lula teve um acidente doméstico ao bater com a cabeça na
banheira após escorregar. Os médicos que o atenderam não acharam recomendável
que Lula fizesse uma longa viagem de avião o que levou o presidente a suspender
a ida à reunião do Brics por precaução. O presidente participará via internet e
o Brasil estará representado em Kazan pelo chanceler Mauro Vieira que chefiará
a delegação brasileira.
Para a ex-diplomata e
pesquisadora do instituto britânico Chatham House Natalie Sabanadze, um dos
principais objetivos de Moscou com o encontro é enviar uma mensagem de que,
apesar dos esforços do Ocidente para isolar o país, a Rússia ainda tem aliados.
“A Rússia vê o
encontro como oportunidade de insistir na mensagem de que não só não está
isolada, como tem ao seu lado países que representam metade da população
mundial, um terço da produção econômica mundial e quase metade das reservas de
petróleo bruto no globo”, diz.
Com a invasão da
Ucrânia pela Rússia em 2022 e o consequente apoio de EUA e Europa ao governo de
Volodymyr Zelensky, especialistas veem cada vez mais o conflito se
transformando em uma “guerra por procuração” (um confronto em que blocos se
utilizam de terceiros para não lutarem diretamente entre si) entre as potências
ocidentais e a Rússia.
Por isso mesmo, diz
Marta Fernández, professora da PUC-Rio e diretora do BRICS Policy Center, a
visão do Brics como um bloco anti-Ocidente tem relação com a própria dinâmica
da política internacional atual, que além de extremamente polarizada está
marcada por dois grandes conflitos (Ucrânia e Oriente Médio) .
“A política
internacional está cada vez mais polarizada e existe uma pressão do sistema
para aderir a um lado ou ao outro”, explica. “E nesse sentido qualquer arranjo
alternativo ao tradicional é de certa forma alocado nesse espectro
antiocidental”.
Ao mesmo tempo, a
presença da China e, mais recentemente, do Irã - outro aliado estratégico de
Pequim e Moscou -, no Brics abre ainda mais espaço para uma agenda
anti-Ocidente, argumenta Stewart Patrick, diretor do programa de Ordem Global e
Instituições do think-tank americano Carnegie Endowment for International
Peace.
“Não há dúvida de que
a entrada do Irã, bem como o fato de que a China e a Rússia já eram membros,
significa que há oportunidades para maior colaboração em uma agenda
antiocidental comum”, diz.
Para Rubens Barbosa,
presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice)
e ex-embaixador do Brasil em Londres (1994-99) e em Washington (1999-2004), a
entrada de novos membros no bloco tem o potencial de reforçar ainda mais essa
visão.
Além dos países
incluídos no bloco em 2024, os membros discutem aceitar países associados, que
não seriam integrantes plenos, mas gozariam de muitos dos benefícios fornecidos
pelo grupo. Segundo o governo brasileiro, mais de 30 nações teriam expressado desejo
de ingressar no Brics, entre elas Azerbaijão, Bolívia, Honduras, Venezuela,
Cuba e Turquia.
Os parâmetros para
inclusão de novos integrantes ainda não estão claros. Em uma declaração
recente, o Ministério de Relações Exteriores da Rússia disse que a não adesão
às sanções implementadas contra a Rússia por Estados Unidos, União Europeia,
Reino Unido e outros aliados é um critério para a adesão aos Brics.
“Cada vez mais parece
que a tendência é que os novos membros confirmem esse viés antiocidental”,
afirmou Barbosa à BBC Brasil.
Segundo o diplomata,
essa orientação tende a ficar mais visível em pautas como a busca por reforma
nos organismos internacionais, a desdolarização da economia e a contestação de
sanções unilaterais.
Paulo Velasco,
professor de Política Internacional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(Uerj), vê no Brics uma postura cada vez mais revisionista da ordem vigente.
“O bloco surgiu como
um espaço revisionista, mas um revisionismo moderado e brando”, diz. “Mas esse
aspecto está ficando cada vez mais latente, especialmente com a entrada do Irã
no grupo ou a intenção de incluir países como Venezuela e Nicarágua.”
Mas os especialistas
são unânimes ao reconhecer que nem todos os membros dos Brics têm desejo de se
alinhar de forma estratégica com a Rússia ou com a China e desejam manter o
diálogo com a outra ala da política mundial.
É o caso da Índia, da
África do Sul e do Brasil. Segundo Patrick, esses países querem manter sua
“flexibilidade diplomática” e fazer parte “da maior parte de clubes diferentes
possível”.
Mas o posicionamento
antiocidental do Brics parece já ter gerado incômodos, que alguns analistas
veem manifestados pela demora na entrada formal da Arábia Saudita no bloco.
Riade e Moscou são
parceiros na OPEP+, de países exportadores de petróleo, e Vladimir Putin
cultiva um relacionamento pessoal caloroso com o príncipe herdeiro saudita
Mohammed bin Salman. A China também tem se tornado um aliado cada vez mais
importante da Arábia Saudita.
Mas ao mesmo tempo, o
país tem nos Estados Unidos um de seus sócios mais notáveis, ao mesmo tempo em
que cultiva uma rivalidade histórica com o Irã.
Os rumores são de que
Washington, preocupado com a entrada da Arábia Saudita (e sua economia de alta
renda) no Brics, teria trazido o tema para suas conversas, fazendo com que a
nação árabe revisse sua posição.
·
Quanto mais membros
melhor?
Ao mesmo tempo,
especialistas afirmam que as divergências e heterogeneidade dos Brics só tendem
a aumentar com novos membros.
Para Rubens Barbosa,
ao mesmo tempo em que o grupo mostra tendências mais anti-Ocidente, também
parece estar cada vez mais difuso.
“O bloco como está
agora já está exibindo muitos interesses difusos e se novos países entrarem a
tendência é só crescer”, diz. “Vamos ver uma agenda de mais contestação ao
Ocidente, mas também podemos esperar que nem todos concordem com essa agenda.”
Stewart Patrick, do
think-tank americano Carnegie Endowment for International Peace, afirma que o
Brics sempre foi marcado pela heterogeneidade de seus membros - mas argumenta
que a expansão do grupo pode tornar a cooperação de forma extensiva e o desenvolvimento
de um propósito coerente ainda mais difíceis.
“Esses países têm
sistemas políticos muito diferentes, estão em posições econômicas muito
distantes em termos de protagonismo e renda per capita, têm diferentes
alinhamentos estratégicos e, em alguns casos, são inclusive rivais
geopolíticos”, diz.
Além do conflito de
interesses latente entre Arábia Saudita e Irã, Patrick cita os conflitos entre
China e Índia em suas fronteiras e a competição entre as duas nações por
influência no Oceano Índico como exemplo desses desencontros.
Os especialistas
também preveem uma certa divergência em torno dos debates sobre transição
energética.
Rússia, Irã, Arábia
Saudita e Emirados Árabes Unidos são grandes produtores de petróleo e gás.
Enquanto isso, a China e a Índia estão no grupo dos maiores importadores
mundiais de combustível. Além disso, Egito, Etiópia e Brasil também são
importadores de produtos derivados e de petróleo bruto.
“Então podemos esperar
que suas atitudes em relação à transição para energia limpa e outras políticas
de recursos naturais sejam bem diferentes”, diz Patrick.
Em agosto do ano
passado, o criador do termo Bric (ainda sem a África do Sul), o economista
britânico Jim O’Neill descreveu o anúncio de expansão do bloco como "sem critério".
"Continuo sem
saber o que os Brics pretendem alcançar, além de um simbolismo poderoso",
disse O’Neill à BBC News Brasil. "Isso fica óbvio com a escolha do Irã,
por exemplo. Diria que pode até tornar as coisas mais difíceis", complementou.
Mas para Sarang
Shidore, diretor do Programa para o Sul Global do Instituto Quincy, um think
tank com sede em Washington DC, há também muitos benefícios em expandir o
bloco.
“Os objetivos de curto
prazo do bloco podem ganhar um impulso com os novos membros”, diz.
Segundo o analista, o
Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), também chamado de banco dos Brics, está se
consolidando nos últimos anos e pode se beneficiar de mais investimentos e uma
estrutura expandida.
O banco foi criado em
2015, com o propósito de ser uma alternativa às fontes tradicionais de
financiamento e apoiar projetos de infraestrutura e desenvolvimento nos países
mais pobres.
Ao mesmo tempo,
Shidore acredita que com mais vozes na mesa os Brics podem expandir mais sua
influência e poder de barganha.
“O Brics tem como
objetivo dar mais força à discussão sobre alternativas à ordem mundial dominada
pelos EUA e pela Europa. E mais países assinando declarações que questionam
esse sistema acrescenta peso normativo a esses argumentos”, diz o especialista
em relações internacionais.
·
Qual o impacto para o
Brasil?
Para Paulo Velasco,
professor da Uerj, o Brasil e os demais membros do Brics que desejam manter o
diálogo aberto com o Ocidente podem encontrar cada vez mais dores de cabeça e
ver sua influência interna diminuir.
Segundo o
especialista, diplomatas brasileiros já têm relatado preocupações com o caminho
seguido pelo grupo, com temores de que a posição mais anti-Ocidente do grupo e
a dominância da China e da Rússia no bloco afastem outros aliados.
“O Brasil preza por
uma cartilha plural universalista, dialogando muito bem com os dois lados”,
diz. “Não interessa para o Brasil mergulhar de maneira definitiva em uma
cruzada antiocidental.”
“Esse jogo não é
nosso”, completa o professor da Uerj.
O ex-embaixador Rubens
Barbosa, porém, acredita que o governo brasileiro tem capacidade de desviar das
controvérsias que podem surgir usando sua tradição diplomática conciliatória.
“O Brasil não vai se
juntar a esse movimento e vai conseguir manter uma posição de equidistância”,
avalia.
Quando o tema é o
ingresso de novos membros, porém, os especialistas preveem alguns
desentendimentos.
O Brasil era
historicamente contrário à ampliação do Brics. E divergências já haviam surgido
durante a cúpula de 2023, realizada na África do Sul, quando China e Rússia
pressionaram pela entrada dos cinco novos integrantes.
A urgência para
anunciar os novos filiados causou incômodo entre a delegação brasileira, que
demandava o estabelecimento de critérios mais claros para a aceitação dos
membros.
Segundo Marta
Fernández, do BRICS Policy Center, esse debate deve retornar nos próximos dias,
com a diplomacia brasileira pressionando por uma discussão formal sobre os
parâmetros mínimos exigidos dos novos integrantes.
“Um dos critérios que
devem ser discutidos é a exigência de que os novos integrantes tenham relações
diplomáticas e amigáveis com os países membros do Brics”, diz. “Ou ter um
desejo comum pela reforma da arquitetura financeira mundial e reforma das Nações
Unidas.”
Ao mesmo tempo, também
há quem preveja disputa sobre a entrada de países específicos no grupo, em especial Venezuela e Nicarágua.
As duas nações estão
sendo consideradas para uma possível nova categoria de membros associados, que
participariam de praticamente todas as reuniões do bloco, mas não teriam poder
de veto.
O governo Lula, porém,
já sinalizou que deverá se posicionar contra o ingresso da Venezuela, segundo
reportagem do portal G1.
A recusa do Brasil em
apoiar a entrada do país vizinho no Brics estaria ligada à situação política
venezuelana. Lula tem feito críticas a Nicolás Maduro e à sua recusa em
divulgar as atas das eleições de julho, das quais diz ter saído vitorioso.
China, Rússia e Irã,
porém, reconheceram a vitória de Maduro e parecem apoiar a entrada da Venezuela
no bloco.
No caso da Nicarágua,
o desconforto brasileiro é motivado pelo recente congelamento das relações com
o país.
Ex-aliado de Lula, o
líder nicaraguense Daniel Ortega expulsou o embaixador brasileiro de Manágua em
agosto. Em resposta, o Brasil fez o mesmo com a embaixadora do país
sul-americano em Brasília.
A expectativa é que o
Brasil também vete o ingresso da Nicarágua.
Fonte: BBC News Brasil
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