quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Edmar Bulla: ‘ELEIÇÕES MUNICIPAIS -  Se cobrir, vira circo

Superficialidade gerada pelo consumo rápido de informações limita a capacidade do eleitor de se engajar em debates significativos. Ao contrário, alimenta o ódio, constrói ídolos, forma mitos

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Disputas políticas têm se tornado um fenômeno de espetacularização. As táticas agressivas de marketing político, muitas vezes centradas na polarização e em críticas infundadas, refletem uma dinâmica perigosa que corrói os limites éticos e a própria definição de democracia. A informação, que é viral nas redes sociais, é capaz de afrouxar os freios éticos e morais e contaminar milhões de pessoas, simultânea e instantaneamente, apelando para medos primitivos e reações emocionais que moldam o comportamento do eleitorado.

O medo de perder, a defesa contra o inimigo, rotinas mais básicas do nosso cérebro, disparam em eleitores conectados mecanismos de sobrevivência. Para sobreviver, é preciso aniquilar o outro, e o combustível para isso é o ódio. Os algoritmos, baseados em dados, são incapazes de capturar a complexidade da experiência humana, mas seguem potentes em sua trajetória e formam discursos acalorados, rompantes de emoções, reações destrutivas. Para além da estatística multivariada dos algoritmos que parte da premissa da prevalência e do hedonismo que dita a necessidade de respostas imediatas, a empatia, a intuição, a solidariedade e o altruísmo ficam fora do jogo, literalmente de escanteio.

As redes sociais empobrecem as nossas decisões. Isso é um fato. E o condicionamento excessivo por essas decisões binárias, suportadas por algoritmos, empobrece a capacidade de julgamento e de promover debates sérios. Eleitores ficam então suscetíveis a comportamentos de manada e deles não conseguem mais se livrar. A espetacularização das campanhas eleitorais intensifica ainda mais essa vulnerabilidade. Táticas que priorizam ataques diretos aos adversários e promessas exageradas alienam eleitores moderados e indecisos e inflamam os ortodoxos, que não pensam em parar e refletir, ponderar, avaliar, discernir e conciliar, porque a janela de atenção e raciocínio é reduzida em TikToks e Instagrams, que demandam reações sempre imediatas e impulsivas.

Toda essa superficialidade gerada pelo consumo rápido de informações limita a capacidade do eleitor de se engajar em debates significativos. Ao contrário, alimenta o ódio, constrói ídolos, forma mitos. Cria toda a sorte de personagens, menos políticos em sua essência. E a complexidade de questões sociais se converte em memes simplistas, que trafegam bem distantes de uma análise crítica e fiel à realidade.

A crise ética na política é um espelho da crise ética no mundo. O que vemos ali é um reflexo do empobrecimento de funções importantíssimas do nosso cérebro. Valores morais e necessidades sociais são deixados de lado em favor de respostas rápidas e facilmente digeríveis, memes petardos alimentados pelo ódio do oponente, visto como inimigo que precisa ser destruído. E ninguém é poupado: familiares, amigos de longa data, conexões digitais, pessoas do trabalho… Quem pensa diferente é odiado e precisa ser eliminado, cancelado, bloqueado, menos ouvido. A neurociência nos alerta para os perigos dessa dinâmica. À medida que nos tornamos mais dependentes de interações digitais, a interação humana rica e diversa, que antes moldava nosso julgamento, está sendo substituída por experiências limitadas, mais “burras”, menos empáticas e mais pasteurizadas. Como resultado, a capacidade de tomar decisões ponderadas está se deteriorando e o discurso político se torna, assim, igualmente agressivo.

A análise da espetacularização e do ódio na política revela que táticas agressivas negativas não vão, jamais, produzir efeitos positivos. Acredito que candidatos que conseguem combinar elementos impactantes com um conteúdo genuíno e propostas claras tendem a estabelecer conexões mais profundas com os eleitores. Essa abordagem contrasta fortemente com a mera agressão, permitindo que candidatos se apresentem como autênticos e comprometidos com a resolução de problemas. No entanto, não sejamos ingênuos, porque a crise ética que emergiu desse ambiente requer um novo enfoque na comunicação política, que valorize a profundidade, a empatia e a construção de um discurso que ressoe verdadeiramente com as preocupações da população. A verdadeira vitória nas urnas, portanto, não está apenas na capacidade de atrair a atenção, mas em engajar e mobilizar o eleitorado de maneira significativa e, não custa lembrar, mais humana.

 

¨      Política municipal: eleições, espantalhos e ausência de crítica. Por Maurício Brugnaro Júnior

cultura está no cotidiano e é construída através das relações sociais em seus múltiplos níveis, continuamente, sendo desenvolvida pelas ações e sedimentadas em estruturas ao longo da história. Dizer isso é compreender, desde logo, que estruturas são dotadas de mobilidade, ou seja, são capazes de se transformar através das ações coletivas. Da mesma forma, as relações, quando construídas — estruturadas — em diferenças de poder ao longo da história, reservam perpetuações de assimetrias e distinções a diversos grupos sociais, o que, de forma alguma, implica em sua aceitação ingênua, mas deveria servir de motivação para horizontalizar os direitos humanos, constituídos e transpassados por questões políticas, sociais, econômicas, ambientais, entre outras que compõem nossa realidade.

Os desenvolvimentos histórico-sociais desiguais estipulam a disputa por regrasrecursos e formas de acessos a poderes políticos, conferindo hierarquias e modos de distinção legitimados por categorias de prestígio e status sociais. Apesar disso — ou, justamente por isso — partes de camadas populares acabam por ser marginalizadas e, de certa forma, excluídas socialmente. Nunca é demais relatar o histórico de poder estruturado ao redor da figura do homem branco, cis e heterossexual. O acesso a política e, assim, aos poderes políticos é facilitado por vários motivos e condicionamentos sociais, o que também não descartamos questões e barreiras de classe — estigmas, em geral.

Ao acompanhar os desenvolvimentos, planos e agendas políticas se torna óbvio o ponto de observação direcionado aos próprios interesses e ao aumento de formas de poder, capitais políticos, econômicos e sociais. Junta-se a isso, na época atual, o elemento midiático das redes sociais — atualização da sociedade do espetáculo, fetichizado pelo capital. Em contraposição, as lutas e participações sociais na política — e a própria cultura continuam em movimento, desestabilizando antigas estruturas, adaptando-as e estruturando novas. Ou seja, a movimentação e a criação cultural são fatos sociais totais inevitáveis, negar tal sentido histórico é negar a própria movimentação dialética da vida.

Neste cenário de transformação constante, é preciso apontar a falta de preparo da classe política em larga escala, atravessando as três casas dos poderes políticos, pois apenas as utilizam como meios de ascensão pessoal e de sua comunidade restrita: igrejas, profissões e grupos privados. Quando, na realidade, a política democrática deve ser o exercício do bem comum, de todos. Assim, vale dizer, que nem mesmo os ditos “conservadores” compreendem sua autodenominação, uma vez que conservar não é ser estático ou o retorno romântico ao passado, mas acompanhar a mudança histórica conservando em adaptações estrutura sociais bem estabilizadas. (Isso sem mencionar a incongruência intelectual dos ditos “conservadores nos costumes, liberais na economia”, revelando mais uma vez as limitações mentais dessa classe política contemporânea despreparada). A ameaça a construção de algo novo sobre os escombros do passado apenas seria possível com um horizonte revolucionário, que sempre encontrou muitas barreiras nesta cidade, o que nos leva a luta de setores majoritários da política municipal: “conservadores” contra espantalhos políticos.

Aqueles da classe política a quem serve a carapuça mencionada camuflam sua incapacidade política com a espetacularização de espantalhos e negações da realidade. Aqui, espantalhos políticos são compreendidos como a criação ou a manutenção de pautas distorcidas — falácias informacionais — que ignoram o posicionamento de adversários políticos e mesmo a realidade social, com o fim de obter benefícios próprios e agradar a base eleitoral pessoal, mesmo que vá contra interesses e movimentos sociais legítimos. Em seu cerne, carecem de capacidade para compreensão da política, independente da corrente teórica e caracterização adotadas, e, se conscientes, atuam na maldade e no oportunismo. De Maquiavel e a política como disputa e manutenção do poder à Rancière e a política enquanto modo de conhecer quais os sujeitos e objetos visados a esse poder e quem vai ser apto a discuti-los, a política comporta transformações culturais e participações populares, assumindo candidatos interessados na ampla realidade social.

Com a espetacularização da política em mídias sociais, nas quais mais importam ‘likes’ e engajamento, chovem projetos de nomeações de ruas — com personalidades de seu próprio círculo social —, nomeações de cidadania, e, junto a esses, projetos de retrocesso contra moinhos de vento. Pautas que caminham para o esquecimento e a lata de lixo da história, como os recentes: “escolas sem partido”, proibição da linguagem neutra — que desconsidera e violenta, mais uma vez, grupos minorizados socialmente —, e o investimento de discurso religioso em espaço institucionalmente laico, a própria política. Um grande volume de conteúdo — agora em meios digitais — não implica, necessariamente, em absorção e transformação de conhecimento e pensamento crítico.

Dito isso, não é preciso dar nomes aos gados. Disputas eleitorais municipais parecem adentrar em lógicas espirais, nas quais permanece o passado enquanto a troca periódica de cadeiras assume a mesma “persona”, mantendo os elos e heranças políticas antiquadas, acorrentadas ao passado e cegas ao futuro, fundadas em discursos vazios de prazer a curto prazo de políticos estéreis social, histórica e politicamente. Face de tais discursos encontram materialidade nas violências que carregam os cansativos e ofensivos jargões de origem fascista, como conceitos esvaziados intencionalmente de “família”, “deus” e “pátria”. Espantalhos de todos os lados, os que são armados e contra os quais lutam, orientados pelos sentidos individualistas da história.

Como é possível acompanhar nos desenvolvimentos linguísticos — culturais — da sociedade, a língua sempre está em modificação, pronomes de tratamento se transformaram de “vossa mercê” até alcançar a forma “você”, obviamente não sem conflitos e disputas. Como expôs de forma exemplar Rô Vicente, artista e ativista, “a linguagem neutra e não-binária é uma forma natural do avanço da sociedade”.

Em suma, negar a mudança cultural e adaptação linguística, reiterando, é negar a própria movimentação da vida cotidiana e do futuro possível. A carência de pautas importantes, como: inclusão, direitos humanos, meio ambiente e programas educacionais, não comporta espaço para as vivências e o desenvolvimento municipal. Desenvolvimento no sentido de qualidade de vida, com transportes públicos de qualidade, acessíveis à população e implementação de ciclovias — público crescente na cidade —; respeito e dignidade as formas de vida humana e não humanas; a integralidade identitária com o meio ambiente, sua conservação e combate à degradação e poluição (incluída a redução de consumo e circulação de carros movidos por combustíveis fósseis); adaptação e instauração tecnológica e atração de empregos conscientes, por exemplo. No nível legislativo, vale lembrar que os políticos não votam apenas pela pauta que os elegeu, mas outras que não são da sua área ou de seu eleitorado, sendo os partidos ótimos filtros de orientações futuras.

Embora o discurso político de capitais domine os debates, como coaches criminosos e padrinhos políticos de extrema-direita, para recolocar as políticas nos eixos da realidade é preciso não fazer política apenas em períodos eleitorais, mas no cotidiano, no qual o engajamento ocorre no consumo cultural e crítico, considerando a realidade municipal. O levante crítico da população diariamente violentada (a capacidade de ação) não há de ser confundido com a violência (física e discursiva com implicações práticas) das oligarquias modernas da política municipal. Enquanto isso não acontece, não há de se esperar nada além de monocultura, elemento estrutural do histórico sistema de plantation com implicações políticas diretas.

 

Fonte: Le Monde

 

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