Na Inglaterra, a luta contra a
mercantilização da água
A insatisfação com o
desempenho das empresas privadas de água e esgoto na Inglaterra foi
potencializada com a vacilação do novo governo trabalhista em enfrentar as
causas de uma crise que se aprofunda nos últimos anos. Na verdade, mais um ato
da tragédia que se iniciou com o processo de privatização iniciado há 35 anos
por Margaret Thatcher.
Não foram feitos os
investimentos necessários para expandir capacidades e modernizar as
infraestruturas, o que generalizou a poluição causada por extravasão de esgotos
não tratados nos rios e costas e provocou o aumento das perdas de água. As
contas dos usuários não param de subir, mas mesmo assim não foram realizados os
investimentos para aumentar a resiliência dos sistemas em face das mudanças
climáticas.
Ao ser informada que
as contas de água das empresas que representa podem aumentar quase 30% acima da
inflação até 2030, a Federação de Pequenas Empresas (FSB) acusou as empresas
privadas de água de sobrecarregá-las com o custo de “erros históricos” cometidos
por dirigentes de um setor atingido por escândalos. Já o regulador econômico, o
Ofwat, afirma que os aumentos nos próximos cinco anos se justificam para pagar
os investimentos necessários nos serviços de água e esgotos.
• Insatisfação generalizada com desempenho
e tarifas cobradas
Segundo The Guardian,
as reclamações dos usuários não resolvidas na Inglaterra e no País de Gales
atingiram o nível mais alto da década, sendo constatado um aumento de 29% em
2023-24 nas queixas encaminhadas ao Conselho de Consumidores de Água (CCW) por famílias
que não conseguiram obter uma solução por parte de seu prestador, disse o órgão
regulador.
A dimensão dos eventos
de poluição por esgotos não tratados, os erros de cobrança e problemas com
hidrômetros, as remunerações escandalosas dos dirigentes das empresas e a
priorização do pagamento de dividendos aos seus acionistas em detrimento da
realização dos investimentos necessários alimenta hoje iniciativas de boicote
ao pagamento das contas pelos usuários.
Confirmando este
cenário lamentável, na terça, 8 de outubro, o regulador Ofwat, por ocasião da
divulgação de sua avaliação anual, informou que apesar de as empresas privadas
terem se comprometido a reduzir os incidentes de poluição em 30% no período de
2020-25, o aumento nos incidentes de poluição em 2023 em nove das onze empresas
significa que houve redução de apenas 2% até o momento. No que diz respeito à
redução das perdas de água, diz a Ofwat que, embora tenha havido progresso, as
empresas só alcançaram uma redução de 6%, contra uma meta de 16% até 2025. As
empresas também se comprometeram a reduzir os incidentes de refluxo de esgoto
para o interior das edificações em 41% ao longo de cinco anos, mas em quatro
anos só conseguiram reduzir 10%.
Ao patético apelo para
que as empresas melhorem seu desempenho, a Ofwat combinou a aplicação de multas
às quatro empresas privadas com pior desempenho que chegam a £ 162,8 milhões
(equivalentes a R$ 1,19 bilhões) e que deverão ser pagas por meio de descontos
nas contas do ano que vem dos respectivos consumidores.
• Ao invés de investir, privadas pagaram
altos dividendos aos acionistas e se endividaram
Segundo matéria do
jornal The Guardian, nas últimas três décadas, as empresas de água inglesas
pagaram £ 53,1 bilhões em dividendos – £ 83 bilhões em preços atuais
(equivalente a R$ 592 bilhões) – e acumularam dívidas astronômicas que
totalizam £ 60,3 bilhões (correspondente a R$ 430 bilhões). Para efeito de
comparação, o orçamento da cidade de São Paulo para 2025 é de R$ 119 bilhões.
A Thames Water, a maior das empresas
privatizadas, acumulou dívidas de £ 15 bilhões e enfrenta graves problemas de
liquidez, com possibilidade de quebra do caixa já em dezembro. Na primeira
semana de outubro, a Thames Water sofreu mais um golpe quando sua dívida foi
classificada como lixo pelas agências S&P Global Ratings e a Moody’s. Desde
julho, a empresa está sob “medidas especiais” estabelecidas pelo Ofwat. Em
agosto, a Thames Water alertou que para sobreviver precisa de um aumento de 59%
na conta nos próximos cinco anos.
• Intervenção governamental temporária ou
renacionalização
Do ponto de vista de
vários movimentos sociais o equacionamento de tão grave situação passa
necessariamente pela intervenção governamental denominada “special
administration” e prevista legalmente no Water Industry Act de 1991, para que o
governo possa promover as reformas necessárias no setor. Com a intervenção o
governo assumiria o controle da Thames e de outras empresas falidas, removendo
diretores da empresa e suspendendo os dividendos pagos aos acionistas. As
empresas poderiam então ser transferidas para novos proprietários que poderiam
ser de privados ou controlados publicamente.
A intervenção é também
defendida publicamente pelo professor Ewan McGaughey do King’s College London
que afirmou que a administração especial não custaria nada ao Tesouro ou aos
contribuintes, contradizendo declaração do Secretário (ministro) do Meio Ambiente,
Steve Reed. McGaughey acusou o secretário do novo governo trabalhista de estar
se apoiando em uma análise “economicamente analfabeta”, paga pelas próprias
empresas de água, para rejeitar os pleitos de levar as empresas do setor de
volta à propriedade pública.
McGaughey disse que o
administrador especial pode submeter ao tribunal superior um plano para
cancelar a dívida de uma empresa, se pagamentos contínuos aos bancos
interferirem na execução adequada das funções de prestar adequadamente os
serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário.
E mais: “A melhor
maneira de limpar nossa água é com mais investimento. Quarenta por cento a mais
de investimento seria possível se parássemos de socorrer bancos e acionistas
com aumentos de contas. Custará mais de £ 12,5 bilhões continuar a pagar acionistas
e bancos… a maneira certa de fechar esse buraco negro é fazer com que as
empresas falidas percam suas licenças, suas dívidas sejam canceladas e seja
feita a transição para o controle público… tudo isso é possível sob a lei
existente.”
O professor de
Política Econômica na Universidade de Oxford, Dieter Helm, é outra voz que
defende a intervenção urgente na Thames Water por meio de “special
administration”. E avalia que a postergação da intervenção joga lenha na
fogueira da renacionalização de todo o setor:
“À medida que a saga
da Thames Water se arrasta continuamente, a pouca fé que os clientes e
contribuintes possam ter de que a empresa vai resolver os seus problemas
continua a diminuir. No final, o público vai exigir a renacionalização e, nas
próximas eleições, em 2028 ou 2029, isso estará inevitavelmente na cédula de
votação. Afirma Helm: “a via de administração especial é provavelmente a única
forma de reestruturar a Thames e recomeçar de forma limpa, com capacidade de
captar recursos. A administração especial é o caminho para tornar a Thames e o
setor capazes de receber investimentos a médio e longo prazo. A tragédia é que
o governo e o Ofwat provavelmente continuarão a tentar todas as formas
possíveis evitar a administração especial e, no processo, apenas farão
acontecer o seu pior medo: a renacionalização.”
• Governo trabalhista põe panos quentes e
não age
No início de setembro
o secretário do Meio Ambiente, Steve Reed, anunciou o projeto de nova
legislação antipoluição a ser aplicada na Inglaterra e no País de Gales para
“acabar com o comportamento vergonhoso das empresas de água e seus dirigentes”.
As novas leis deverão dar maiores poderes aos reguladores para lidar com
empresas poluidoras e facilitar que elas sejam multadas, vedam o pagamento de
dividendos aos dirigentes das empresas inadimplentes com a legislação e
possibilitam enviá-los para a prisão.
Mas, segundo informa a
BBC, ativistas ambientais criticaram a nova legislação, dizendo que ela vem
para evitar uma intervenção governamental mais decisiva no setor. Eles
apontaram que já há uma violação generalizada dos regulamentos e disseram que o
verdadeiro problema era a falha do regulador de água, o Ofwat, e da Agência
Ambiental em aplicá-las adequadamente.
Cresce a mobilização
O fato é que as
postergações e vacilações do governo trabalhistas estão fazendo as entidades e
movimentos se articularem e assumirem posições mais decididas. Assim, uma ampla
coalizão de entidades está convocando, para o domingo, 3 de novembro, na Praça do
Parlamento, em Londres, a Marcha para reivindicar do governo Água Limpa em todo
o Reino Unido e a solução estrutural que o setor necessita depois que a
privatização mostrou seus trágicos resultados.
Fonte: Marcos Helano
Montenegror, em Outras Palavras
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