quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Retaliações israelenses se transformaram num genocídio ao vivo, afirma Isabela Agostinelli

Em outubro de 2023, Israel entrou em guerra contra o grupo Hamas em Gaza, após um ataque-surpresa ao país que resultou em mortes e captura de reféns. Desde então, houve uma escalada de violência na região, que contou com uma nova ofensiva em Beirute, capital do Líbano, expandindo os confrontos para além da Faixa de Gaza.

Uma comissão da Organização das Nações Unidas (ONU) criada em 2021 para investigar o conflito israel-palestina apresentou em junho deste ano um relatório que aponta crimes de guerra e contra a humanidade nas operações militares de Israel, que já ultrapassam um ano.

Para falar sobre essa retaliação massiva e desproporcional contra a população palestina, liderada pelo primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, o Pauta Pública desta semana recebeu Isabela Agostinelli, doutora em relações internacionais e especialista em estudos sobre Palestina/Israel. Agostinelli analisa como esta guerra desencadeou uma crise humanitária sem precedentes na região, o papel das grandes potências, especialmente dos Estados Unidos, no apoio à guerra, e a fragilidade das instituições internacionais diante da situação que tem levado o enfrentamento de Israel à governança global.

Para a pesquisadora, as retaliações israelenses se transformaram num genocídio. Ela descreve a situação como um  “desafio moral, no nosso próprio dia a dia, de concepção de mundo que a gente quer e qual [atuação] internacional que nós defendemos. [Já que] esse internacional [que temos] está apoiando um genocídio em curso temunhamos ao vivo.”

Leia os principais pontos:

·        No começo, a guerra era “contra o Hamas”, agora é “contra o Hezbollah”. Agora que o Exército israelense anunciou que vai expandir a invasão por terra no Líbano, pra além dos discursos, é possível entender qual o objetivo real do Estado de Israel com as atitudes nesse conflito? Como você vê isso?

São três grandes níveis, o local, o regional e o internacional. No nível local, eu acho que o interesse israelense fica mais claro quando a gente olha para a perspectiva histórica. 

Ao longo do tempo, como que Israel vem lidando com os palestinos, que para aquele Estado são vistos como uma população indesejável? indesejável no sentido de construir um Estado de maioria étnica judaica, que é o grande projeto de autodeterminação nacional do sionismo, que data desde o final do século XIX, mas que só foi possível ser concretizado às custas da expulsão da população indígena palestina.

Expulsão física ou eliminação simbólica, por exemplo, de assimilação dos palestinos à sociedade israelense. Eles vão ser assimilados a partir do momento em que eles abandonam as suas características étnicas, identitárias, culturais e se assimilam à sociedade do colono, que seria o israelense. Então, ao longo do tempo, temos visto uma expansão territorial de Israel, às custas da desapropriação das terras palestinas, e isso aconteceu principalmente na Cisjordânia, em Gaza também, até 2005. Aqui já faço também um recorte temporal importante para a gente entender o que é Gaza hoje.

Em 2005, Israel pela primeira vez retira os seus colonos de um território ocupado palestino, que, no caso, seria a Faixa de Gaza. Desde 2005 até 7 de outubro de 2023, não tinha nenhum israelense dentro da Faixa de Gaza, e sim só nas fronteiras, com as forças armadas controlando tudo que entra e tudo que sai daquele espaço. Nesse sentido, a gente pode dizer que a ocupação de Gaza nunca acabou, ela só mudou de meios, mudou de táticas. A verdade é que Gaza sempre foi vista como esse espaço indesejado pelos israelenses […] ela sempre foi uma região empobrecida, então é uma região que poderia ser deixada assim aos palestinos, e uma região em que eles poderiam criar um Estado palestino futuramente. Então, isso faz parte desse projeto colonial israelense do sionismo, enquanto movimento político e ideológico.

O que eu estou tentando dizer é que não podemos analisar Gaza de uma forma essencialista […] Depois do 7 de outubro, depois dos ataques do Hamas, as retaliações israelenses se transformaram, na verdade, num genocídio. Desde o 7 de outubro, já tinha muitos especialistas falando que já se tratava de um genocídio, e agora o que a gente vê também é a retomada da ocupação física israelense do território de Gaza, com soldados ali dentro. Então, esse seria um nível, a dimensão local, que é e interesse de Israel de conquistar cada vez mais territórios, nesse grande território da Palestina histórica […].

No campo regional, o que eu daria destaque é a questão das relações com outros poderes ou potências médias, no caso o Irã, principalmente. O Irã, que até a década de 70, antes da Revolução Iraniana, era o parceiro preferencial dos Estados Unidos no Oriente Médio. Eles tinham relações muito próximas, e isso garantia, por exemplo, o acesso dos Estados Unidos aos recursos energéticos, principalmente o petróleo. Aí vem a Revolução de 79, a Revolução Iraniana, o projeto de revolução que ganha é o projeto islâmico. Depois vão dizer que se trata de uma revolução islâmica, e, a partir de então, o Irã vai ser considerado o grande inimigo dos Estados Unidos naquela região, e o é até hoje.

Nesse momento é que os Estados Unidos trocam de parceiro estratégico e passam a adotar o Estado de Israel como o grande parceiro, a grande aliança importante dos interesses americanos no Oriente Médio. Essa aliança já existe desde a própria criação do Estado de Israel, mas ela foi adquirindo mais força ao longo do tempo. A década de 70 vai ser o ponto-chave para sedimentar essa aliança tão especial, que vai, ao longo do tempo, como a gente pode ver hoje a postura do Biden muito semelhante à postura do Donald Trump. Como dois presidentes com ideologias opostas, um democrata e o outro republicano, mantêm a mesma posição em relação ao Estado de Israel?

·        Então os Estados Unidos estão dentro desta guerra?

Essa pergunta me ajuda a finalizar a resposta anterior, entrando no terceiro nível de análise, que seria o nível internacional. Os Estados Unidos de fato já estão envolvidos nessa fase da guerra, que não começa no 7 de outubro de 2023, mas é quando ela ganha um novo patamar, inclusive o patamar do genocídio. Os Estados Unidos, então, vão ser essa grande potência que já estava presente no Oriente Médio de forma hegemônica, então o único ator grande, com grande poder, principalmente a partir do fim da Guerra Fria na década de 90. […]

Desde a Primavera Árabe, ou as revoltas árabes, né?, como também são chamadas na década de 2010, começamos a ver uma mudança nessa posição dos Estados Unidos, principalmente por conta da entrada da Rússia. A entrada da Rússia na guerra da Síria, e esse fortalecimento militar da Rússia e das suas alianças com os países do Oriente Médio, principalmente os países do Golfo, as grandes monarquias que são os atores mais poderosos economicamente ali naquela região. Então mudou um pouco ali, os Estados Unidos não estavam mais tão sozinhos nesse sentido.

Depois também, ao longo da década de 2010, começa a entrar a China como um parceiro econômico e estratégico muito importante, a China que no ano passado conseguiu mediar o acordo da normalização das relações entre a Arábia Saudita e Irã, que eram inimigos ferrenhos há muito tempo. Isso já também estava apontando para um tema que inclusive eu estou pesquisando agora no meu pós-doutorado, se a gente estaria entrando no Oriente Médio pós-americano. Mas aí o genocídio vai mostrar que, em termos militares, não é possível a gente firmar isso, porque, em termos militares, os Estados Unidos continuam sendo o ator hegemônico naquela região, com muito poder de armamento, de troca de tecnologia com o Estado de Israel, e que consegue apoiar Israel em tudo que faz.

Por isso que, também, as próprias instituições internacionais têm visto muitos limites na sua própria atuação em relação àquele território. Porque tem muito apoio e envolvimento direto dos Estados Unidos, enquanto um ator muito poderoso. Foram bilhões de dólares em ajuda militar e ajuda financeira em relação ao Estado de Israel. E aí pode-se argumentar, mas os Estados Unidos também enviam ajuda humanitária para Gaza. Enfim, são cenas distópicas que a gente viu nos últimos meses também, da ajuda humanitária dos Estados Unidos chegando por helicóptero e descendo por paraquedas, porque é impossível entrar em Gaza e é impossível sair também. Então, eu diria que sim, os Estados Unidos estão envolvidos nessa guerra diretamente.

·        Existe um componente novo nesses conflitos que é não apenas a transmissão ao vivo de torturas e mortes de civis e, portanto, provas documentadas de diversos crimes de guerra sendo cometidos, mas também a criação de conteúdo para redes sociais, como os vídeos de soldados israelenses dançando em meio a escombros, destruindo casas, vestindo as roupas das pessoas que assassinaram ou desalojaram, além de vídeos de jovens israelenses cantando que vão queimar aldeias até o chão em festas, ou “fantasiados” de palestinos em vídeos para o TikTok.  De que maneira você acha que isso influencia na visão do mundo sobre esse genocídio ou que interfere na própria guerra?

Isso tudo faz parte dessa tradição e dessa técnica do Estado de Israel desumanizar o povo palestino, de uma forma geral, e o povo árabe também. Com isso, muitas pessoas vão tratar palestino, árabe, muçulmano como tudo a mesma coisa, e todos seriam, por exemplo, terroristas. [Nesta lógica] eles não são passíveis da nossa comoção, não são passíveis de luto, e, portanto, essas mortes não vão ser sentidas.

Isso fica muito claro quando a gente vê o acompanhamento da mídia sobre quando acontece um bombardeio em Gaza, que é todos os dias, quase a todo momento, e quando acontece o envio de um foguete do Hamas, por exemplo, para Israel. Aparecem nos grandes noticiários os israelenses ouvindo as sirenes em Tel Aviv, conseguindo se esconder nos bunkers, e esses foguetes nunca chegam porque o Israel tem um sistema de defesa muito forte, que é o domo de ferro, que consegue interceptar diversos mísseis, diversos foguetes.

Quando tem um bombardeio em Gaza, a gente vê nas redes sociais, inclusive muitas pessoas postando fotos de crianças assassinadas, crianças faltando uma mão ou com vários cortes. Isso não gera comoção? Gera, mas, depois de ser tão replicado e de acontecer tantos dias, acaba sendo normalizado e ficamos meio que anestesiados em relação a essas imagens.

Isso tudo faz parte desse processo histórico de desumanização do povo palestino em particular e do povo árabe em geral. […] A criação imagética e de representação do que é o Oriente de acordo com os olhares do Ocidente. Aquele que é visto como bárbaro, como atrasado, como o não civilizado. Israel se vale dessa narrativa desde a sua fundação, que vai se colocar ali como o pequeno país que tem as suas características da Europa moderna, ocidental, e, portanto, está cercado de inimigos, de não civilizados, bárbaros, loucos, muçulmanos. Isso acaba, de certa forma, justificando essa não comoção por parte de grande parte da comunidade internacional em relação às vidas palestinas. 

 

¨      Os EUA e sua acumulação militarizada. Por Alexandre Aragão de Albuquerque

A guerra da Otan contra Rússia na Ucrânia é uma imposição dos Estados Unidos à Europa. Uma nova fase da exploração capitalista, denominada de “acumulação militarizada” (William I. Robinson), por meio da corrida armamentista capaz de impulsionar a economia estadunidense a entrar numa nova onda de crescimento, tendo como referência novos padrões tecnológicos baseados na nanotecnologia, bioengenharia e inteligência artificial.

William I. Robinson, renomado teórico sobre o capitalismo, é professor de sociologia na Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara. Ele usa o termo “acumulação militarizada” para descrever um fenômeno onde a acumulação capitalista se torna cada vez mais dependente da militaMilitarismoMilitarismorização e dos conflitos. Robinson alerta que quanto mais a economia global se torna militarizada, há um aumento dos focos de guerra e de conflitos armados, alimentados pelos interesses dos donos do capital transnacional.

Foi estratégico para os EUA promover a guerra em solo europeu, na Ucrânia, para disparar a produção massiva de armamentos produzidos pelo seu complexo militar – como Raytheon, General Dynamics, Lockheed Martin, Northrop Grumman e Boeing – impondo compras à Europa, gerando mais dependência comercial e monetária dos países daquele continente com os EUA.

Já em 1990, o governo de George W. Bush prometera verbalmente a Mikhail Gorbachev, Secretário-Geral da União Soviética, que não haveria expansão da Otan. Entretanto, com o fim da Guerra Fria, tal promessa foi quebrada em 1994 quando Bill Clinton deu início à política de Estado de expansão da Otan ao Leste Europeu, a qual absorveu quatorze países da Europa Central e Oriental: 1) em 1999, República Checa, Hungria e Polônia; 2) em 2004, Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia e Eslovênia; 3) em 2009, Albânia e Croácia; 4) em 2017, Montenegro; 5) em 2020, Macedônia.

Como já afirmara anteriormente o primeiro secretário-geral da Otan, Hastings Ismay (1952-1957): “O objetivo da Aliança do Tratado do Atlântico Norte é manter a União Soviética [Rússia] fora da Europa, os americanos dentro e os alemães embaixo”. Eis o centro do confronto em solo europeu atual. A força militar intervencionista dos EUA-Otan sobrepôs-se e destruiu a possibilidade da união entre as nações, no caso, da integração da Rússia com a União Europeia.

O renomado jornalista investigativo Seymour Hersh ganhou, em 1970, o Prêmio Pulitzer pelo papel que desempenhou ao revelar para a opinião pública internacional o covarde massacre de soldados estadunidenses a cerca de 500 civis desarmados, cujas vítimas foram homens, mulheres, crianças e idosos, o qual ficou conhecido como o Massacre de My Lai, ocorrido em 16 de março de 1968, durante a Guerra do Vietnã.

Em 8 fevereiro de 2023, Seymour publicou um artigo  (How America Took Out The Nord Stream Pipelinedescrevendo minuciosamente como a Marinha estadunidense bombardeou o Nord Stream que transportava gás natural, a preços baixíssimos, da Rússia para a Alemanha.

Segundo o renomado jornalista, o conselheiro de segurança nacional dos EUA, Jack Sullivan, havia convocado, em dezembro de 2021, antes do início da guerra na Ucrânia, uma reunião da força-tarefa formada pelos Chefes do Estado Maior Conjunto, a CIA, os Departamentos do Estado e do Tesouro, requerendo que o grupo apresentasse um plano para a destruição dos dois dutos do Nord Stream.

Com a sabotagem militar aos dutos, obrigou-se a Alemanha a manter-se na guerra da Ucrânia e a comprar GNL (Gás Natural Liquefeito), embarcado em navios dos EUA, a preços e fretes infinitamente superiores.

Entre os danos causados pela destruição, houve uma forte redução no fornecimento de gás natural, resultando em aumento de preços de energia na Alemanha e em toda a Europa, afetando tantos as populações como as empresas, que tiveram que arcar com custos muito mais altos para aquecimento dos lares e para a produção de bens e serviços.

Consequentemente, acarretou um desarranjo na economia alemã, reduzindo a competitividade de suas empresas em função do aumento dos custos de produção, provocando de forma incisiva a queda do consumo doméstico pela alta da inflação. A destruição dos gasodutos gerou incerteza e instabilidade no mercado de energia, dificultando o planejamento e tomada de decisões.

Não é diferente com o genocídio que acontece na Palestina pelos ataques indiscriminados de Bibi Netanyahu, há mais de um ano, provocando um morticínio covarde e insano de populações civis – mulheres e crianças em sua maioria – visando ao extermínio étnico do povo palestino. Atualmente, numa nova fase de sua guerra, amplia-se o horror para as populações civis do Líbano, incluindo ataques a bases das tropas de paz plurinacional da ONU, Força Interina das Nações Unidas no Líbano (Unifil), contestados por diversos Estados-Nação, inclusive o Brasil.

Não nos enganemos: essas guerras, na Europa e no Médio Oriente, são imposição imperialista dos EUA

 

Fonte: Por Andrea DiP, Clarissa Levy, Claudia Jardim, Ricardo Terto, Stela Diogo, na Agencia Pública/Outras Palavras

 

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