quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Fernando Nogueira da Costa: O conceito de capitalismo em xeque

No livro Capitalismo Canibal, publicado em 2024 por Nancy Fraser, a definição tradicional de capitalismo como um sistema meramente econômico é criticada por ser “limitada e insuficiente para explicar a crise multifacetada, vivenciada atualmente”. Para Fraser, o capitalismo é mais bem compreendido como uma ordem social institucionalizada. “Ele se sustenta canibalizando recursos de outras esferas da vida social, como a reprodução social, a ecologia, o poder político e a riqueza de populações racializadas”.

O “capitalismo canibal” é apresentado como a raiz de praticamente todos os problemas contemporâneos, como crises de endividamento, precarização do trabalho, colapso dos serviços públicos, violência racista, pandemias e eventos climáticos extremos. A expressão “bode expiatório” é utilizada para designar algo ou alguém escolhido para ser culpado por um evento negativo, mesmo caso não tenha sido o responsável. Parece ser o caso atribuir tudo de ruim ao “sistema”…

A origem da expressão está no costume dos israelitas de realizar uma cerimônia no Yom Kipur, o dia da expiação. Durante esta cerimônia, um bode era escolhido para carregar os pecados do povo e depois era abandonado no deserto.

Nancy Fraser argumenta a teoria marxista sobre o capitalismo ser insuficiente para explicar a crise atual, pois não considera de forma sistemática as questões de gênero, raça, ecologia e poder político. A autora reconhece o valor da obra de Marx, mas aponta a necessidade de expandir o conceito de capitalismo para além da exploração do trabalho assalariado.

Para ela, o capitalismo deve ser entendido como uma ordem social institucionalizada. Ele se estrutura a partir de divisões entre produção e reprodução, Economia e Política, natureza humana e não humana, exploração e expropriação. Essas divisões são constantemente renegociadas, em “lutas de fronteira”, para redefinir os limites entre essas diferentes esferas.

Desenvolve um conceito de “capitalismo canibal”. Ele se alimenta da riqueza natural, dos recursos humanos e do trabalho não remunerado, exacerbando as desigualdades sociais e provocando crises ecológicas, sociais e políticas.

Nancy Fraser critica a visão tradicional do capitalismo como um sistema estritamente econômico e propõe uma análise mais abrangente, incluindo a reprodução social, a expropriação e a opressão racial, revelando como essas dimensões se interconectam com a acumulação de capital. A superação da crise global exigiria a construção de alianças inter-raciais e a transformação radical do sistema capitalista, erradicando a expropriação e a exploração do trabalho.

Assim como Nancy Fraser, em Capitalismo Canibal, Grégoire Chamayou em A sociedade ingovernável: uma genealogia do liberalismo autoritário (2020) também tinha argumentado o capitalismo contemporâneo se alimentar de recursos externos para sustentar a acumulação de capital. No entanto, enquanto Nancy Fraser se concentra na canibalização da reprodução social, da ecologia e da riqueza de populações racializadas, Grégoire Chamayou foca na canibalização da esfera política e na erosão da democracia. Ambos os autores apontam para a necessidade de repensar o capitalismo de forma mais abrangente, considerando suas interconexões com diferentes esferas da vida social.

Destaca a ideia de a história das lutas sociais e ambientais ser interpretada como uma “revolta das externalidades”. Representa a recusa da sociedade em arcar, via tributação e intervenção estatal, com os custos sociais e ambientais do capitalismo, com consequentes precarização do trabalho e destruição ambiental.

O texto de Bifo Beraldi, Hipercapitalismo e semiocapital (2024), também dialoga com a obra de Grégoire Chamayou, A sociedade ingovernável. Ambos os autores analisam as formas pelas quais o liberalismo contemporâneo se articula com o autoritarismo para controlar e reprimir a dissidência.

Enquanto Grégoire Chamayou se concentra na despolitização da sociedade e na erosão da democracia, Bifo Berardi explora a dimensão hipercolonial dessa lógica, mostrando como ela se manifesta na exploração do Sul global e na violência contra migrantes. Sua análise reflete criticamente sobre as interconexões entre capitalismo, colonialismo e tecnologia, em busca de alternativas para a construção de um futuro mais justo e igualitário.

O artigo de Daniel Pereira Andrade, “O que é neoliberalismo” (2019), resenha diferentes perspectivas teóricas. Na definição foucaultiana [de Michel Foucault], o neoliberalismo é visto como uma arte de governar em busca de moldar as condutas dos indivíduos e das instituições a partir da lógica do mercado. Na definição marxista, o neoliberalismo é analisado como uma estratégia política para reforçar a hegemonia de classe e expandir o capitalismo globalmente via financeirização, desregulamentação dos mercados e precarização do trabalho.

Na definição bourdieusiana [de Pierre Bourdieu], o neoliberalismo é apresentado como uma utopia da teoria econômica neoclássica, convertida em projeto político. Na definição weberiana [de Max Weber], o neoliberalismo é visto como uma tentativa de substituir os julgamentos políticos pela racionalidade econômica, baseada em indicadores quantitativos e na lógica da competitividade.

Além dessas definições autorais, há uma multiplicidade de neoliberalismos. Na definição pós-colonialista, trata-se da generalização de processos típicos dos países desenvolvidos como paradigma universal. Na definição do hibridismo governamental, o neoliberalismo é apresentado como um conjunto de práticas flexíveis capazes de se adaptarem a diferentes contextos, interagindo com outras racionalidades políticas e gerando configurações híbridas de poder. Por fim, na definição neorregulacionista, o neoliberalismo é analisado como um processo contraditório de governo pró mercado, marcado por intervenções estatais e por uma constante reestruturação regulatória.

A partir da análise das diferentes perspectivas teóricas, Andrade identifica quatro alvos principais para a crítica e o combate ao neoliberalismo. Na dimensão econômica globalizada, trata-se de enfrentar a financeirização, a acumulação por espoliação e o poder das corporações transnacionais através da luta de classes e da resistência à exploração. Na dimensão da luta antidisciplinar, visa-se combater as formas de regulamentação e controle social em busca de imporem a lógica do mercado e da competitividade, buscando alternativas para a organização do trabalho, das instituições e das políticas públicas.

Na dimensão teórica e simbólica, o propósito é desconstruir a ideologia do mercado autorregulado, questionar a validade da racionalidade econômica como critério para a tomada de decisões políticas e defender valores como a solidariedade, a igualdade e a democracia. Na dimensão das disposições subjetivas, o objetivo é resistir à subjetividade individualista e competitiva, promovida pelo neoliberalismo, buscando alternativas para a construção de identidades e práticas sociais baseadas em cooperação e emancipação.

Por aqui, Vladimir Safatle, em entrevista ao site UOL (13/20/2024) afirma “a esquerda não chegou à periferia porque não tem o que dizer para a periferia. O que tem para dizer para a população periférica? Serão criadas macroestruturas de proteção social, grandes estruturas de educação pública, vamos fazer o ensino secundário totalmente gratuito para que as pessoas não sejam obrigadas a pagar, ou um investimento sólido no sistema educacional? Não tem nada disso acontecendo. Nada disso está na pauta do dia”.

Para ele, “a extrema direita diz: ‘Agora é cada um por si’. E isso tem um nome, é empreendedorismo. O problema é a esquerda ter integrado esse discurso, e isso é uma lógica suicida. Porque se esse é o jogo, a esquerda não tem nada a dizer”.

Conclui: “hoje, o nosso papel [da esquerda] é a defesa do Judiciário, defesa dos direitos morais, defesa das instituições, defesa da normalidade democrática, defesa dos contratos. Como a gente pode ser antissistema? Isso não tem o menor sentido. Por isso, a esquerda morreu”.

Percebe-se o incômodo do filósofo da USP (e suplente do PSOL) com a defesa de um governo de Frente Ampla contra o neofascismo ameaçador de ascender ao Poder Executivo, seja por meio de eleições democráticos, seja por meio de golpes militares. Parece achar um atraso de vida a defesa das instituições democráticas.

Já me deparei com um notável professor titular de sociologia do IFCH-UNICAMP em debate acadêmico. Quando defendi a necessidade de oferecer educação financeira para universitários, bem como, de maneira adequada, para estudantes de todos os níveis escolares, como uma preparação para a ascensão social, ele retrucou aos brados: – Eu sou contra! Tem sim de fazer os estudantes lerem O capital!

Lamentável… Eu ofereço cursos lotados de estudantes, intitulados “Finanças comportamentais: planejamento da vida financeira”. Ensino: – Vocês podem enriquecer sem emburrecer e virar uma pessoa inculta de direita!

 

•        The Economist descobre que as maravilhas do capitalismo liberal estão no fim. Por Paulo Henrique Arantes

The Economist publicou artigo alarmado e alarmante sobre o “desmoronamento do liberalismo”. Disse a revista que o colapso pode ser “repentino e irreversível”. A bíblia do liberalismo econômico está preocupada com o fim de um modelo que, no seu entender, levou o mundo a um histórico ciclo de prosperidade.

No mundo real, a queda dos dogmas liberais antevista por The Economist pode significar o avanço da humanidade em direção a uma realidade menos cruel.

A revista atribui o risco de colapso do liberalismo às seguintes situações possíveis: o retorno de Donald Trump à Casa Branca, com sua volúpia de destruição institucional; uma segunda onda de importações chinesas baratas; uma guerra aberta entre Estados Unidos e China por causa de Taiwan; uma guerra entre o Ocidente e Rússia. A revista não explica quem é “o Ocidente”, mas supõe-se que sejam os Estados Unidos e seus aliados incondicionais.

The Economist esqueceu a maravilha que a ordem econômica liberal – neta de Hayek, filha de Friedman e afilhada de Reagan e Thatcher – causou à economia mundial em 2008, sua apoteose. E enalteceu o falso êxito do modelo no seguinte parágrafo, pérola de cinismo:

“Está na moda criticar a globalização desenfreada como a causa da desigualdade, da crise financeira global e da negligência em relação ao clima. Mas as conquistas das décadas de 1990 e 2000 – o ponto alto do capitalismo liberal – são incomparáveis na História. Centenas de milhões escaparam da pobreza na China à medida que esta se integrava na economia global. A taxa de mortalidade infantil em todo o mundo é menos da metade do que era em 1990. A porcentagem da população global morta por conflitos travados entre estados atingiu o mínimo do pós-guerra de 0,0002% em 2005; em 1972, era quase 40 vezes maior. Pesquisas mais recentes mostram que a era do ‘Consenso de Washington’, que os líderes de hoje esperam substituir, foi aquela em que os países pobres começaram a desfrutar de um crescimento, de recuperação, diminuindo o abismo em relação ao mundo rico.”

Já se cansou de demonstrar que o capitalismo liberal, com sua ignóbil defesa da austeridade em detrimento de gastos sociais – sempre pelo carreamento dos recursos do Estado para os detentores das dívidas públicas –, aprofunda a desigualdade, nunca a diminui. Se houve uma redução da distância entre países ricos e pobres, foi por filigranas estatísticas; dentro dos países, a desigualdade aumentou, a renda se concentrou. Especialmente nos Estados Unidos, é notório o empobrecimento da classe média desde que o estado de bem-estar social, iniciado no Pós-Guerra, foi substituído pelo capitalismo da Escola de Chicago. A miséria e a fome grassam nos países ditos periféricos, que The Economist enxerga como beneficiados pela ordem econômica ora agonizante.

O capitalismo enaltecido por The Economist é um fiasco socioeconômico, é causador de tragédias humanitárias por concentrar riqueza em nível escandaloso. Dois terços de todas as novas riquezas produzidas no mundo ficam nas mãos de 1% da população, segundo relatório da Oxfan divulgado às vésperas do Fórum Econômico Mundial de 2023. Os repórteres da revista britânica estavam lá?

Já o trecho sobre a população global morta por conflitos entre estados é de arrepiar pelo descolamento da realidade. The Economist, sempre recorrendo à matemática, compara percentuais de 1972, época da Guerra do Vietnã, e 2005. Esquece-se de que hoje os palestinos estão sendo dizimados, numa contenda em que um país, sob a vista grossa e até a ajuda bélica dos Estados Unidos, mata populações civis sem a menor cerimônia. Certamente, trata-se de mais uma consequência espetacular do capitalismo liberal apregoado pela revista britânica. Um capitalismo cego, desumano.

 

Fonte: A Terra é Redonda/Brasil 247

 

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