Ícaro Jorge da Silva Santana: ‘Por que temem uma Universidade que não sirva apenas à elite?’
Historicamente,
a Universidade já provocou muitas violências que não fazem parte da narrativa
de denúncia dessa elite que supostamente critica a Universidade contemporânea.
Será que a vontade deles é voltar aos tempos de ontem, dos quais a crítica era
amordaçada e os “inimigos” eram excluídos?
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Neste último período,
fui interpelado por duas notícias que tratam do seu conteúdo sobre a função da
Universidade. A primeira é a criação da UATX que seria uma universidade Anti –
Wake, ou seja, um projeto de universidade que não fosse pautado pela discussão
crítica social, crítica feminista ou crítica negra. A segunda é sobre o
lançamento do documentário do Brasil Paralelo
intitulado UNITOPIA. Tomando como ponto de partida esses
acontecimentos, vislumbro tratar sobre o papel da Universidade e o medo da
elite acerca da sua democratização.
Inicialmente, convém
tratar a Universidade como uma instituição histórica que possui uma função
social, política e econômica. Compreender a instituição universitária e suas
vicissitudes delineia um caminho interpretativo acerca dos porquês da sua
existência. Esses porquês são elaborados a partir de projetos em disputa que
são forjados a depender do tempo histórico, da geopolítica e da realidade
social. O que afirmo a partir dessa posição é que a instituição universitária
não se constitui a partir de uma perspectiva neutra. Sobre o Brasil, por
exemplo, como aponta Schwarcz (1993) ao tratar das instituições, a própria
ideia de ciência esteve diretamente ligada à política e à sociedade no período
colonial. O saber científico brasileiro da época era influenciado, sobretudo,
pela importação de construções teóricas de outros países. Ou seja, a
universidade e a produção do saber estavam diretamente ligadas aos seus
aspectos sociais, políticos e econômicos.
Partir dessa posição,
é possível compreender que projetos disputam o que se entende como função das
universidades. Por exemplo, a Universidade de Brasília é uma das instituições
universitárias em que o seu projeto foi concebido a partir de uma articulação
teórica entre a elite intelectual da época. Liderada por Darcy Ribeiro e Anísio
Teixeira, a Universidade de Brasília foi projetada a partir de um ideário
civilizatório. A educação como um instrumento de transformação social e a
construção de um núcleo cultural delineou na época o que se entenderia como
universidade (Ribeiro, 2011). De certa forma, compreendendo esses exemplos, é
possível perceber que toda universidade é constituída a partir de marcos
ideológicos e isso não deveria ser um problema porque é uma pressuposição. A
Educação não é neutra. É construída por valores históricos, sociais e políticos
de uma época.
E o que isso tem a ver
com as notícias expostas na introdução?
Em segundo plano, é
necessário o entendimento de que o acesso à educação foi interpelado por
uma série de lutas e reivindicações históricas, afinal a sua universalização
não foi pressuposta, foi conquistada. Até
pouco tempo atrás, a universidade era apenas instrumento de uma elite
econômica, política e social. A função da universidade era garantir a
manutenção da estrutura social constituída, assim como o status quo instituído.
No Brasil, por exemplo, como aponta Schwarcz (1993), no período colonial, o
acesso à universidade era garantido para uma elite. Fausto (2006) vai
exemplificar como, no final do período colonial, havia uma maioria de mineiros
entre os brasileiros na Universidade de Coimbra em Portugal, e como essa
presença influenciou no pensamento da independência brasileira.
Lélia Gonzalez e
Carlos Hasenbalg (1989), por exemplo, vão tratar do acesso ao trabalho e
a desigualdade racial, compreendendo o impacto das teorias elaboradas nas
universidades acerca dessa presença negra no mundo do trabalho. Igualmente,
Theodoro (2020) vai desenhar o histórico de inacessibilidade da população negra
ao direito à educação e como a instituição universitária não foi constituída
para essa população. Nos EUA, Patricia Collins (2022) desenha como o poder
epistêmico interpela a teoria da interseccionalidade e coloca em cena a
necessidade de uma resistência epistêmica. Ou seja, o pensamento na universidade sempre esteve
em disputa. A questão é que, com o avançar da
democratização do acesso à educação na contemporaneidade, uma série de tensões
sociais, raciais e de gênero têm surgido, implicando numa espécie de “contra
ataque” epistêmico que não se dá pela discussão de ideias, mas pela perspectiva
de negação da universidade e desconstrução da própria instituição.
Vejamos, o centro
argumentativo para a mobilização de uma elite econômica para a criação da UATX
nos EUA se dá, sobretudo, por uma negativa à diversidade epistêmica dentro da
Universidade. Fundamenta-se que a Universidade “perdeu a sua essência” com o advento
das críticas sociais, raciais e feministas. No mesmo caminho, o Canal do
Youtube Brasil Paralelo lançou um documentário intitulado UNITOPIA. No
documentário, disponível no Youtube, há uma série de entrevistas sobre uma
suposta ideia de silenciamento de concepções que não caminhe com uma
perspectiva crítica social, racial e de gênero nas universidades brasileiras.
Ou seja, em ambos os
casos, é pressuposto algo que não existe: neutralidade do saber. Indiretamente,
a criação de uma universidade que se nega a pensar criticamente ou possibilitar
o avançar do pensamento crítico, impede que a ideia de liberdade de pensamento
seja executada. No fim das contas, o que se observa é uma elite econômica que
teme uma Universidade que não sirva apenas para ela. Igualmente, sob o
argumento de garantia da liberdade do pensamento, o documentário UNITOPIA
propõe para a universidade a exclusão do próprio pensamento democrático,
demonstrando uma posição contraditória com a própria função contemporânea da
universidade.
Em conclusão, no
título apresento uma questão de reflexão. Afinal, qual o medo de uma
Universidade que não sirva apenas à elite? Seria a crítica de uma realidade
violenta que estabelece lugares “naturais” para determinados sujeitos. Ou esse
medo tem no seu conteúdo a construção de inimigos em comum para o que se
entende como conhecimento. Historicamente, a Universidade já provocou muitas
violências que não fazem parte da narrativa de denúncia dessa elite que
supostamente critica a Universidade contemporânea. Será que a vontade deles é
voltar aos tempos de ontem, dos quais a crítica era amordaçada e os “inimigos”
eram excluídos?
¨ A crise da hegemonia identitária nas universidades. Por Richard Miskolci
Por que
eventos como a performance “Educando com o C*” ocorrida na UFMA deixaram de apenas
chocar o público externo e, pela primeira vez em muitos anos, alcançaram
repercussão e repúdio internos
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A opinião pública
chocou-se com a performance de uma mestranda da UFBA em um evento científico no
Maranhão. A integrante do grupo de pesquisa NuCuS, da UFBA, apresentou
“Educando com o C*” e terminou sua fala expondo-o aos presentes. A comunidade
acadêmica também se posicionou contra a performance. Alguns ainda comentaram o
poder que estudos e grupos similares alcançaram nas instituições de ensino
superior públicas: quer no protagonismo em denúncias e cancelamentos quer na
definição de políticas contra assédio e discriminação.
Por que apenas agora membros da comunidade
universitária levantaram suas vozes? Quais as razões para a universidade estar
no centro das atenções da opinião pública? Buscarei
apresentar alguns argumentos que podem ajudar a compreender algo que vai além
do escândalo e, sem o minorar, partir dele para refletir sobre o poder que
grupos controversos e seus líderes alcançaram nas universidades e algumas
associações científicas. Sua influência já se estende também a órgãos de
fomento à pesquisa, os quais definem – por meios de editais – não apenas o que
se pesquisa agora, mas o futuro da ciência brasileira.
Há cerca de uma década as universidades e a
ciência passaram a ser cada vez mais politicamente disputadas em nosso país. Fato indissociável da ampliação do número de jovens que
cursam universidade e que, segundo dados de 2024, alcançam quase 10 milhões de
estudantes (metade na modalidade a distância). Some-se a isso, a implementação
exitosa da política nacional de ações afirmativas que democratizou a composição
estudantil das universidades públicas acolhendo mais jovens vindos da escola
pública, pretos, indígenas.
Hoje o ensino
universitário é parte do horizonte aspiracional de muito mais brasileiros do
que no passado. A despeito da ampliação das vagas, ainda há uma maioria de
pessoas que não têm formação superior e que permanece apartada das
oportunidades que ela traz. É a esse segmento majoritário e não atendido pelo
ensino superior que a extrema-direita procura apresentar a universidade como
espaço moralmente questionável e supostamente controlado pela esquerda. Em vez
de criticar a falta de acesso gratuito e universal ao ensino superior, é mais
simples para ela desqualificar a instituição.
As ações afirmativas
costumam ser um dos tópicos mais evocados pela direita em suas críticas, mesmo
porque não faltam pobres brancos entre os que não chegam à universidade em
nosso país. Na escassez, abre-se a competição e lógicas como a meritocrática passam
a ser defendidas por segmentos da sociedade não atendidos pela política
pública. Se o acesso fosse universal não teríamos competição e conflito. Como o
número de vagas é restrito, as lógicas de acesso, por mais aprimoradas que
sejam, sempre deixarão de fora pessoas insatisfeitas.
Em outras palavras,
por mais meritórias que as ações afirmativas sejam (e são) elas mantêm abertos
conflitos que apenas a universalização do ensino superior impediria. Algo que
aqui pode soar utópico, mas foi feito na vizinha Argentina na primeira metade
do século passado. Esse contexto faz com que as universidades ganhem
importância como tópico de discussão e conflito em nossa sociedade, na esfera
pública e, cada vez mais, também na política eleitoral brasileira. Ela ganha
atenção crescente em um movimento positivo quando associada à ampliação do
acesso e ao possível reconhecimento de seu papel na vida nacional. No entanto,
é inevitável que ganhem mais visibilidades as tensões entre os de dentro e os
de fora, dos que conseguem estudar presencialmente e nas públicas e os que
estão no ensino a distância privado.
Nesse contexto
desigual e conflitivo, a universidade pública tende a ficar sob maior
escrutínio coletivo. Quem estuda nelas é relativamente privilegiado diante da
grande maioria que sua para pagar mensalidade ou financiamento nas instituições
privadas de menor qualidade. O escrutínio público não é apenas compreensível,
mas justo, já que as universidades e os institutos federais são mantidos com
recursos do Estado brasileiro e, no limite, com dinheiro do contribuinte.
Enfim, eventos como a performance ocorrida na UFMA ganharam outra dimensão em
nossos dias e a novidade a analisar é por que deixaram de apenas chocar o
público externo e, pela primeira vez em muitos anos, alcançaram repercussão e
repúdio internos.
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Quebrando o silêncio
Assim como já analisei
em meu livro Batalhas morais: política
identitária na esfera pública técnico-midiatizada (2021), há cerca de uma década as principais forças que disputam as
universidades são a extrema-direita que as acusa de ser espaço imoral e antro
de comunistas e os movimentos identitários que se tornaram hegemônicos nas
instituições. As universidades têm sido objeto de disputa de forças políticas
antagônicas que operam no eixo da identidade, quer seja a coletiva ou a de
minorias.
O principal alvo da extrema-direita
costumam ser os estudos de gênero e sexualidade que passaram a chamar de “ideologia de gênero” em meio à
campanha pelo impeachment da primeira mulher a chegar à
presidência da República. Como toda teoria da conspiração, tal tática
político-comunicacional precisa de uma âncora na realidade e não faltam eventos
similares ao ocorrido no Maranhão ou grupos de pesquisa como o da UFBA para os
prover em abundância.
Os estudos de gênero
brasileiros têm uma história fundamental na construção de uma sociedade mais
justa e igualitária. Desde os estudos pioneiros sobre empregadas domésticas
feitos por sociólogas como Heleieth Safiotti (UNESP/PUC-SP) e Alda Motta (UFBA)
em que desigualdades de gênero e classe se entrelaçavam passando pelas
pesquisas sobre violência contra mulheres, desigualdades de renda até temas que
envolvem os direitos sexuais e reprodutivos, esse campo de pesquisa ganhou
reconhecimento científico. É impossível sintetizar aqui o quanto a produção
feminista e de gênero contribuiu para o desenho, a implementação e avaliação de
políticas públicas que impactam as vidas não apenas das mulheres, mas de toda a
população brasileira.
Dentro das
universidades, temáticas de gênero e sexualidade, assim como as que envolvem
relações étnico-raciais, nunca tiveram o protagonismo e o reconhecimento que
mereciam. A rica produção desse campo tendeu a se circunscrever a um círculo
especializado e, dentro das universidades, áreas administrativas e de extensão
não costumavam encontrar razões para se articularem a esses grupos de pesquisa
e seus temas. Cenário que mudou a partir da adoção das ações afirmativas e a
consequente mudança do perfil discente que trouxe desafios em que o
conhecimento desse campo poderia ser acionado.
Quando temas alcançam
notoriedade, também tendem a ser disputados por segmentos menos preparados
academicamente e que se apresentam como mais próximos à militância. Não raro,
sua produção replica a da divulgação científica vendida pelos intelectuais midiáticos
que, em nossos dias, se estendem para além dos colunistas de jornal em
influenciadores digitais e afins. É possível que membros desses grupos tenham
começado a participar ou influenciar na construção dos sistemas de combate ao
assédio e à discriminação nas universidades, na reconfiguração de algumas de
suas respectivas associações científicas e até no desenho de políticas de
fomento à pesquisa.
Em um aparente
paradoxo, especialistas nesses temas foram ignorados e passaram a ser
perseguidos quando traziam ao discurso as fragilidades desse processo de
adaptação das instituições à nova realidade, ao mesmo tempo mais rica e
diversa, mas também mais potencialmente conflitiva. A razão deveria ser
cristalina: sua obra e expertise colocava à prova as frágeis bases intelectuais
dos que foram alçados a referência sobre temas como equidade e direitos
humanos. Preteridos e perseguidos, assim abriu-se caminho para a instalação de
uma visão unidimensional das diferenças nas universidades brasileiras em que a
identidade é o principal referente e aquele que se apresentar como membro de um
grupo estigmatizado ou subalternizado sempre tem razão.
A democratização das
universidades tem se revelado contraditória e conflitiva: em vez de se
construir mais equidade, a compreensão da diversidade interna via identidade
enreda professores, outros servidores e até estudantes em uma lógica binária e
simplista em que só se pode ocupar o lugar de algoz ou vítima. É como se a
alternativa à terrível discriminação e o preconceito que vigoraram no passado
só pudesse ser a da complacência irrestrita. No limite, instauram-se lógicas
simplórias de mera inversão de posições entre “opressor e oprimido” que
inviabilizam a construção de igualdade em favor de políticas de ressentimento
ou vingança.
Tais lógicas apagam
também a preocupação antes fundamental com a desigualdade econômica e de
classe. A preponderância da identidade como referente tende cada vez mais a
influenciar políticas científicas e de permanência estudantil em um processo de
retroalimentação do conflito apenas benéfico aos que se beneficiam dele. Tais
absurdos saltam aos olhos de muitos, mas deixaram de ser apontados e criticados
pela hegemonia identitária nas universidades, a qual é capaz de diretamente –
por influência, pressão ou participação nos meios administrativos – ou
indiretamente – por táticas como o cancelamento – calar vozes dissidentes e até
banir colegas de seu campo de pesquisa.
Um silêncio estridente
por anos se instalou nas instituições pelo temor compreensível de se ser
tachado de preconceituoso, relegado ao ostracismo por colegas de trabalho ou,
como não faltam exemplos, tornar-se alvo de investigações e processos
administrativos. Processos que talvez nem tenham como objetivo exonerar alguém,
antes submetê-los à destruição e humilhação públicas, o que inviabiliza suas
carreiras e desqualifica suas críticas. O medo é real e palpável, uma força
política autoritária que garante a grupos identitários, seus membros e
apoiadores o poder de se impor, inclusive sem ter que provar academicamente sua
suposta expertise. Bases frágeis e contestáveis sobre as quais
criam-se medidas de suposto aprofundamento da democratização das instituições,
como as que estendem as ações afirmativas de formas controversas, ameaçando
desmoralizá-las e demolir o legado riquíssimo que elas nos trouxeram.
Quando alguém rompia o
silêncio era rotulado de reacionário ou apoiador da extrema-direita em
malabarismos retóricos que, ao menos até recentemente, funcionavam. Acusar
qualquer crítico de discriminatório e preconceituoso provou-se mais eficiente e
seguro do que responder a questionamentos válidos e construtivos. O monopólio
de um suposto “local de fala” se sobrepôs e superou o da pesquisa e seus
resultados. Formas controversas de pesquisar e divulgar ciência tornaram-se
aceitáveis porque o critério na identidade de quem investiga os tornou
refratários a críticas.
Afinal, o que mudou
para que tal silêncio fosse rompido e não apenas a opinião pública, mas também
a comunidade acadêmica se manifestasse sobre a performance no Maranhão e o que
ela nos mostra sobre um segmento que se tornou hegemônico nas universidades?
Uma hipótese preliminar é a do provável esgotamento dessa aposta na política de
identidades como via para justiça social e o reconhecimento de seu descolamento
das necessidades dos menos favorecidos socialmente.
Diferentemente dos que
associaram o repúdio à performance obscena a mero rescaldo da derrota da
esquerda nas eleições municipais, é possível aventar que a constatação da
derrota apenas permitiu que os limites das pautas identitárias fossem
discutidos publicamente sem que os participantes do debate fossem
automaticamente chamados de reacionários ou apoiadores da extrema-direita.
A universidade que a
maioria da comunidade acadêmica quer não é a imposta pela hegemonia
identitária. A performance inapropriada e rechaçada pela opinião pública
encontrou eco nas universidades, nas quais vozes caladas por anos se levantaram
contra uma hegemonia que sempre se assentou mais na ameaça e no medo, portanto
mais na força do que no consentimento. Aquele silêncio que aos grupos
identitários e apoiadores parecia concordância, só se mantinha pela mordaça.
Suspensa a censura, agora podemos ouvir as divergências e críticas e a
universidade talvez recupere uma de suas mais admiráveis características: a de
acolher a pluralidade de pensamento.
Fonte: Le Monde
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