Grupos empresariais de direita direcionam
verbas de reconstrução do Rio Grande do Sul
Com a comoção após as
enchentes de maio deste ano, que devastaram boa parte do Rio Grande do
Sul, grupos empresariais ligados à direita aproveitaram para captar
doações vultosas em nome da reconstrução do estado e escolher os projetos que
receberão os recursos – muitas vezes com o aval do poder público e com
pouca (ou nenhuma) transparência.
Integrantes desses
grupos estão entre os maiores financiadores da campanha de Sebastião Melo
(MDB), prefeito de Porto Alegre que concorre à reeleição e está em
primeiro nas pesquisas. E não fizeram nenhuma doação à Maria do Rosário (PT),
sua opositora.
As entidades são
ligadas à elite porto-alegrense, de famílias como a Gerdau, dona da maior
empresa produtora de aço do Brasil; e Ling, da Évora, holding bilionária que
atua nos setores de embalagens plásticas e metálicas, de não-tecidos (como
fraldas) e florestamento, entre outras.
Um dos fundos é o
Reconstrói RS, que captou R$ 84 milhões para obras de infraestrutura. A maior
parte, R$ 50 milhões, veio da família Ling, e o restante de outras empresas –
como Lojas Renner e Porto Seguro –, e de empresários como Salim Mattar,
fundador da Localiza e ex-secretário de Desestatização do governo Bolsonaro.
A primeira obra
financiada pelo Reconstrói RS foi uma ponte ligando as cidades de Nova
Petrópolis e Caxias do Sul. Ela foi considerada prioritária por ficar em uma
região de alto potencial turístico, segundo a gestora executiva do programa,
Sandra Moscovich. Outras 14 obras estão em andamento, ao custo total de R$ 10
milhões – dez são pontes metálicas na região do Vale do Taquari. Os
projetos são enviados por associações comerciais regionais e não passam pelas
prefeituras.
A ideia é financiar
obras “o mais rápido possível” e “sem intermediação”, como diz o site do
programa, em contraponto às longas e burocráticas licitações de órgãos
públicos. Mas quem escolhe como o dinheiro é aplicado é uma banca formada pelo
Instituto Ling, a Federação de Entidades Empresariais do Rio Grande do Sul
(Federasul) e o Instituto Cultural Floresta (ICF) – ONG que reúne mais de 50
donos de grandes empresas gaúchas e é próxima à produtora conservadora Brasil
Paralelo.
Nesse modelo, as
obras escolhidas são as mais interessantes para as entidades empresariais, e
não necessariamente as mais importantes para a população.
“Nessa lógica, o
doador privado escolhe onde quer investir, onde quer direcionar o seu dinheiro.
Ele não quer que a doação vá para um fundo do Estado, que decidirá o que é
prioritário de acordo com um planejamento estratégico mais amplo”, aponta o
sociólogo Marcelo Kunrath, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). Uma de suas pesquisas trata do poder e influência política dos grupos empresariais de Porto Alegre e como eles
atuaram para alinhar a cidade à direita.
Outra iniciativa do
empresariado é o Regenera RS, que teve um aporte inicial de R$ 30 milhões da
Gerdau e R$ 8 milhões da mineradora Vale. O programa foca na reconstrução de
escolas e outros imóveis danificados, em programas de educação e trabalhos
assistenciais em comunidades das cidades afetadas. Há ainda fundos gerenciados
pelo Instituto Cultural Floresta (ICF) e outros empresários que operam nos
mesmos moldes. Somados, os aportes chegam a mais de R$ 200 milhões.
Esse modelo, no qual
entes privados interferem no planejamento público, é muito parecido com o que
a Agência Pública já mostrou há alguns anos, em que
empresários do ICF montaram uma “Lei Rouanet da segurança pública” para a aplicação de recursos para compra de viaturas ou
munição para as polícias – mas apenas para os locais que eles consideram
importantes.
<><>
Por que isso importa?
- Tanto a prefeitura de Porto Alegre quanto o governo do
estado abriram mão, em alguns casos, de sua prerrogativa de planejamento
estratégico de políticas públicas, repassando o poder de decisão para
algumas das empresas mais ricas do estado.
- As obras escolhidas para receber os recursos são as mais
interessantes para as empresas – não necessariamente as mais importantes
para a população.
<><>
Poder público endossou parcerias
Esse poder de decisão
do empresariado sobre quais obras seriam financiadas ocorreu também nos
projetos capitaneados pelo poder público. Tanto a prefeitura de Porto
Alegre quanto o governo do Rio Grande do Sul abriram mão, em alguns casos, de
sua prerrogativa de planejamento estratégico de políticas públicas em favor de
algumas empresas que estão entre as mais ricas do estado.
É o caso do projeto
Reconstruir Porto Alegre, da prefeitura da capital, que deu carta branca para
que empresas escolhessem obras que iriam financiar, sem fazer nenhum tipo de
interferência. “A decisão sobre qual equipamento público receberá a doação cabe
exclusivamente à empresa interessada, com base em uma lista fornecida pelo
poder público”, informou, por meio de nota, o Escritório de Reconstrução e
Adaptação Climática da cidade.
Todos os projetos
escolhidos pelas empresas são em escolas da rede municipal. É um bom negócio
para as empresas. Elas ganham notoriedade entre o público escolar – que alcança
milhares de pessoas, entre pais, alunos e professores. Depois, ainda podem dar publicidade
para a doação em seus meios de comunicação e recebem menção nominal no site do
município.
Imagem
publicada pela supervisora da EMEB Doutor Liberato, que recebeu R$ 7 milhões de
Ambev e Gerdau; as empresas lucram com a visibilidade
A maior escola da rede
municipal, a Escola Municipal de Educação Básica (Emeb) Doutor Liberato Salzano
Vieira da Cunha, que atende mais de 1,7 mil alunos, foi adotada pelas gigantes
Ambev e Gerdau, que são líderes no mercado de seus respectivos segmentos. As
ações são anunciadas continuamente nas redes sociais da escola, e, com isso, as
empresas acabam ganhando propaganda gratuita. As obras vão custar R$ 7 milhões
– um valor ínfimo se comparado com o lucro líquido das duas empresas, que ficou
na casa dos bilhões só no ano passado.
O Sindiatacadista, que
reúne unidades da Fecomércio, Sesc, Senac e Confederação Nacional do Comércio
(CNC), financiou as obras das escolas municipais Patinho Feio, no bairro São
Geraldo, e a Meu Amiguinho, no Floresta. As duas vão custar R$ 820 mil e atendem
pouco mais de cem alunos. O Instituto Jama, do presidente do grupo RBS, Jayme
Sirotsky, pagou R$ 1 milhão para a reforma da escola municipal Vereador Antonio
Giudice, no Humaitá, e R$ 1,4 milhão na Escola de Educação Infantil (Emei) Vila
Elizabeth, no Sarandi. O ICF financiou R$ 2,1 milhões na Emef João Goulart, no
Sarandi.
O diretor da João
Goulart, Manoel da Silva, disse que foi comunicado pela prefeitura de que o ICF
iria cuidar da reconstrução de sua escola. Porém, de acordo com ele, a reforma
se limitou ao quadro elétrico. “O ICF está fazendo uma parte das ações de reforma
da escola. A projeção que havia, de que eles se encarregariam de maiores
espaços, hoje está concentrada na aquisição e substituição do quadro elétrico
geral da escola, suas conexões com a rede externa e uma reforma na rede
elétrica no prédio da cozinha”, disse.
Inicialmente, a
prefeitura tinha uma lista com as obras que precisam ser feitas na capital e
estavam abertas para doação de empresas. A lista continha 14 escolas. Seis
delas receberam aportes. As outras oito não foram consideradas interessantes.
As razões pelo desinteresse não foram divulgadas nem pelas empresas, nem pela
prefeitura.
O lançamento do programa ocorreu em um evento na sede do Instituto
Ling, com protagonismo do vice-prefeito Ricardo Gomes (sem partido), ligado à
Brasil Paralelo desde a sua fundação e apresentador de um quadro semanal
transmitido nas redes da produtora. Ele frisou que os valores das obras
são repassados pelas empresas diretamente aos fornecedores, sem passar pela
prefeitura.
Gomes aparece na
pesquisa do sociólogo Marcelo Kunrath como um dos principais elos entre o
empresariado e o poder público. Ele tem um largo histórico com as grandes
empresas do estado – foi presidente e membro da diretoria de gestões do
Instituto de Estudos Empresariais (IEE) e é amigo próximo dos diretores do ICF.
Durante as enchentes de maio, Gomes chegou a pedir doações para o ICF em vez de solicitar à prefeitura que ele
próprio comanda. O atual vice-prefeito não se candidatou nas eleições deste
ano.
Já o governo do
estado, de Eduardo Leite (PSDB), colocou empresas e representantes do setor
como membros do conselho do Plano Rio Grande, que trata do planejamento de reconstrução do estado. “O
conselho é formado por 178 membros, com forte predomínio da representação
empresarial em detrimento de trabalhadores, ambientalistas e da população
atingida”, analisa Kunrath.
“A reconstrução se
constituirá em um processo bilionário, gerando grandes e diversas oportunidades
de negócios para o empresariado”, explica o pesquisador.
·
Vínculos
políticos
Pessoas ligadas a
esses grupos empresariais não escondem suas posições políticas. Eles estão
entre os maiores doadores da campanha do prefeito de Porto Alegre, Sebastião
Melo, que por pouco não venceu a disputa em primeiro turno – ele obteve 49,7%
dos votos.
Os empresários também
foram os maiores doadores do candidato derrotado Felipe Camozzato (Novo), que
tinha propostas parecidas com as de Melo. Por outro lado, não fizeram nenhum
repasse para as candidatas alinhadas à centro-esquerda – Maria do Rosário (PT)
e Juliana Brizola (PDT).
Pessoas ligadas ao ICF
e a outros grupos que participam dos fundos de reconstrução foram responsáveis
por cerca de 25% das doações de Melo no primeiro turno. O maior doador foi Elie
Horn, fundador da construtora Cyrela, com R$ 64 mil.
No Rio Grande do Sul,
a Cyrela se uniu com a Goldsztein, que é da família de Cláudio Goldsztein,
diretor do ICF – ele próprio foi o segundo maior doador, com R$ 30 mil. Outras
pessoas que trabalham na Goldsztein, no ICF ou são parentes doaram outros R$ 93
mil. Membros da Gerdau desembolsaram R$ 32 mil para Melo.
“Essa atuação
empresarial apresenta um viés político-ideológico. A ‘reconstrução’ não é um
processo neutro; ao contrário, é um processo no qual estão em disputa
concepções de Estado, políticas públicas, relação entre Estado e sociedade,
papel do empresariado, cidadania e direitos, e relação com a natureza”, afirma
Kunrath. “Nesse sentido, destaca-se no discurso empresarial uma constante
reafirmação da superioridade do mercado, quando comparado ao Estado, para
conduzir a ‘reconstrução’ de forma ágil, eficiente e eficaz.”
Fonte: Por Amanda Audi,
da Agencia Pública
Nenhum comentário:
Postar um comentário