Pedro Amaral: ‘Esquerda, direita e a
distribuição desigual de medos’
Na divisão tradicional
dos papéis de gênero, uma função que a mãe costuma exercer é a de admoestar o
filho desobediente, avisando: você vai ver quando seu pai chegar! Em assim
fazendo, ela age como correia de transmissão da repressão – função delegada ao
marido –, podendo manter a consciência tranquila de quem não bate em criança.
Para o garoto, o anúncio da sova, com horas de antecedência, é um
intensificador do castigo – o qual, assim anunciado, passa a estender-se, de
certo modo, por todo o dia, em vez de durar apenas alguns minutos de dor intensa.
A imagem me vem à
cabeça ao refletir sobre como tem sido recorrente, nos anos recentes, pessoas
que se identificam como de esquerda assumirem algo assim como o papel de bedéis
(e também juízes) ético-políticos, alertando aos correligionários que apresentam
um comportamento “desviante”, “inapropriado”, ou simplesmente “polêmico”: Cuidado,
você está dando munição para a extrema-direita! Agindo assim, você está
contribuindo para que o bolsonarismo cresça e vença as eleições!
Hoje é a performance
de Tertuliana na UFMA (alçada pelos críticos à condição de símbolo da causa
LGBT); ontem foi um rebolado funk num evento sobre prevenção à
saúde no MS (que a ministra Nísia julgou “inadmissível”); antes, causou
rebuliço um happening no curso de Artes Visuais da FURG onde
havia nudez... E por aí vai.
Como observou a
escritora Amara Moira, é curioso que a mesma admoestação não seja comum no
sentido inverso: quando a turba atiçada por militares golpistas depredou as
sedes dos Três Poderes, e D. Fátima, enrolada no lábaro pátrio, houve por bem
defecar num saguão do STF, não houve quem levasse as mãos à cabeça e dissesse:
“Agora pronto! O comunismo vai vir com tudo!”
Uma observação: se
continuarmos nos prestando a ser correias de transmissão do pânico moral que os
neofascistas buscam infundir na sociedade, e assim condenarmos preventivamente
(e com veemência, e até com autoflagelação), ora um funk, ora um
rebolado, ora uma expressão de sensualidade, que tipo de ambiente acadêmico e
que tipo de espaços para manifestações artísticas estaremos criando? Nessa
toada, até quando será possível abordar gênero e sexualidade na academia
brasileira? A extrema-direita, com o falacioso projeto das escolas
militarizadas, já escancarou seu intuito de transformar em quartel o que não é
nem tem vocação para sê-lo.
No que se refere ao
rebolado, essa expressão cultural afro-brasileira, enquanto não o interditam (a
pedido, quem sabe, da própria esquerda), sugiro que consultem as belas
reflexões do etnólogo Câmara Cascudo a respeito.
Ao que parece, o
avanço ideológico da extrema-direita infunde um medo real nos hostes
progressistas, a ponto de estas passarem a temê-lo como a um cão selvagem, ou o
Bicho-Papão de nossas infâncias. Em contraste, o “medo do comunismo”, no lado
de lá, é antes uma palavra de ordem, um eixo unificador, que um temor
verdadeiro a condicionar mudanças de atitude, gestos defensivos (como, digamos,
evitar sair à rua com a camisa da CBF, ou calar piadas homofóbicas).
Se é isso mesmo o que
se dá, a distribuição desigual de medos é apenas um reflexo do momento que as
duas forças políticas atravessam, hoje, no Brasil: uma em ascensão,
consolidando e expandindo sua influência; outra sobrevivendo em estado de
confusão e autoengano.
(Mas não duvido que
parte da elite progressista também pegue carona no conservadorismo da direita
para dar azo ao próprio conservadorismo, sem precisar assumi-lo – como a mãe do
início que, terceirizando a palmada, não precisa bater no filho que, no fundo,
também deseja açoitar).
Não é fácil o momento
que vivem as correntes de esquerda, no mundo, e no Brasil em particular desde
os idos de 2013, quando a serpente do neofascismo rompeu a casca e tomou as
ruas, apropriando-se da pauta dos protestos que emergiam e preparando o terreno
para sua trágica chegada ao Planalto. Aqui e ali emerge a preocupação do campo
dito progressista com a extrema dependência da figura política de Luiz Inácio
Lula da Silva, que venceu a muito duras penas o pleito de 2022 e, cumprida sua
função – de importância histórica – de livrar o processo democrático das
ameaças do neofascismo, faz um governo aprovável, com bons índices a
apresentar, mas despido do brilho de outrora.
Premido pelas
circunstâncias, é um governo que se deixa tutelar pela cúpula reacionária das
forças armadas, que emplacou no ministério da Defesa um seu mensageiro, velho
político de direita “jejuno em assuntos da pasta” (como apontou o professor
Manuel Domingos Neto), no entanto escolhido e prestigiado pelo amigo Lula; um
governo, ademais, garroteado pelas chantagens do Centrão – o que se reflete,
inclusive, no aventado convite do presidente a ninguém menos que Arthur Lira
para integrar o primeiro escalão do governo.
Mais que isso, e pior
que isso, é um governo incerto em relação aos próprios fundamentos, eis que
mistura promessas de avanço com o veredicto de que a Constituição Cidadã não
cabe no sacrossanto “arcabouço fiscal”.
Muito já se falou
sobre o desempenho do PT e das esquerdas no 1º turno das eleições municipais.
Nas redes sociais, o vice-líder do governo na Câmara dos Deputados registrou a
“performance decepcionante” do Partido nas urnas e criticou “nossa [do PT] desconexão
com a realidade”, cobrando mudanças. Algumas das disputas locais retratam bem o
quadro aziago: na capital baiana, o partido de Lula, que governa o Estado há
cinco mandatos, sequer ousou lançar candidato; no Rio de Janeiro, eleitores de
esquerda despejaram votos no candidato da direita liberal, notório oportunista
(reelegendo-o por ampla margem), com medo de que o araponga lançado pelo
bolsonarismo pudesse chegar lá; na maior cidade do país, a campanha lúdica da
coligação Amor Por São Paulo, somada ao pragmatismo à
outrance refletido na presença de Marta Suplicy na chapa
(representando o PT que renegara), talvez não seja suficiente para bater um
prefeito de quem, até outro dia, a maioria dos paulistanos sequer conhecia o
nome; em Porto Alegre, outra cidade cara ao petismo, a coligação PT-PSOL
enfrenta dificuldade para derrotar o síndico que conduziu de modo desastroso o
enfrentamento à maior tragédia climática da história do município.
Nesse cenário adverso,
é esperável que se cace o bode expiatório. E uma gama de analistas, dentre eles
alguns de prestígio, foi rápida em apontá-lo: é o identitarismo. Como é comum
em nosso idioma, o “ismo” encerra uma conotação pejorativa. Neste caso, seria a
percepção de que há exagero na importância dada a demandas de grupos sociais
historicamente discriminados, cuja pauta reivindicatória se centra na condição
que os identifica, cada qual, como grupo: assim as mulheres, os negros, os
indígenas, a população LGBT. Nas páginas amarelas de Veja, um
dirigente nacional do PT caracterizou essas pautas como sendo “mais de
comportamento”, e como “temática de classe média”, desconectada das “questões
econômicas e sociais”.
Um problema decorrente
desse tipo de raciocínio é, primeiro, que, se tomado ao pé da letra, ele nos
levaria a um retrocesso em relação à própria compreensão das questões
econômicas e sociais: afinal, como nos mostraram diversas pensadoras e
pensadores brasileiros, a identificação e o enfrentamento dos nossos problemas
sociais passa, necessariamente, por questões não só de classe, mas também de
gênero e raça.
Segundo: como pensar o
Brasil-Colônia, onde se fincaram as raízes do Brasil que aí está, sem articular
essas três dimensões da opressão? Seria proveitoso, como sonham os
ultraconservadores, darmos um passo atrás na teoria social e descartarmos a
obra de uma Lélia González, e suas reflexões sobre interseccionalidade? Seria
justo dizermos à população trans, que habita o país que mais mata pessoas trans
no mundo, algo do tipo na volta a gente compra, isto é, depois
que resolvermos os grandes problemas da nossa sociedade trataremos das suas
aflições? Ou pedirmos aos indígenas que deixem para exigir respeito a seus
territórios e tradições culturais quando tivermos avançado no resgate da nossa
dívida social?
(Ou, ainda, bons
bedéis, devemos pedir que reclamem em tom mais baixo, sem ferir ouvidos
delicados?)
Tem razão, reconheço,
quem aponta que as demandas “identitárias” tendem a ser esvaziadas de sentido
se desvinculadas de mudanças mais profundas na hierarquia de classe, gênero e
raça do nosso país capitalista periférico, e assim reduzidas a uma espécie de
fetiche da representação. Aí cabe avaliar o que as lideranças, a
institucionalidade, o governo federal inclusive, têm feito para alterar a
correlação de forças e promover as reclamadas mudanças estruturais.
Nesse particular, os
sinais são inquietantes, para dizer o mínimo. O pior deles é, creio, o pacote
de medidas que a dupla Tebet-Haddad promete anunciar, com a bênção de
presidente, após o 2º turno. Medidas que, pelo que tem sido ventilado por eles
mesmos na imprensa, poderão contemplar cortes em políticas de fundamental
importância para a sobrevivência dos mais pobres, de modo a fazer com que parte
(e parte apenas) do programa do candidato Lula caiba no “arcabouço fiscal”, o
leito de Procusto imposto pela classe dominante ao país que considera seu.
Fariam bem os nossos
analistas à esquerda se fossem menos afoitos na caça ao bode expiatório, e em
vez de amplificar o pânico moral fabricado em torno de “performances polêmicas”
em universidades ou ministérios (assim gerando cortina de fumaça para as falhas
e contradições dos nossos partidos e do governo que lutamos para eleger), de
algum modo nos ajudassem a identificar e superar essas falhas e contradições, a
tempo de evitarmos o salto no abismo que se abre diante de nossos olhos.
¨ Desajustados, ressentidos e rancorosos. Por Ronaldo Lima Lins
O primeiro turno das
últimas eleições brasileiras apresentou fenômenos dignos de registro para
posterior reflexão. Alguns candidatos, passando ou não para o segundo turno,
cumpriram agendas e se colocaram como figuras com as condições pessoais de se
ajustar em cargos da administração. Outros transmitem a ideia de haver
participado de um espetáculo subalterno, ansiosos por tirar proveito de
situações escusas. Entre esses, destacam-se os nomes de Pablo Marçal, de triste
figura; do André Fernandes, notável pelas práticas de depilação; e do Abílio
Brunini, já célebre pelas aparições bizarras.
Estrelas de uma
espécie de submundo intelectual e político, imaginam que nos transformamos num
país tão excêntrico que lhes oferecemos lugar em nossas arenas de um colóquio
importante. Gente que em outra época não sairia do anonimato, hoje, graças às
redes sociais e à generosidade das televisões, passou a dividir as luzes
obscuras da sociedade e ali desejam permanecer, com promessas para o futuro.
Felizes as nações que cultivam heróis. Mas tristes as que, na falta deles,
valorizam o ridículo e acalentam anomalias. Se prosseguirmos em semelhante
opção, logo cumpriremos um rol de projetos estapafúrdios, como, em parte, nos
aconteceu com a gestão de Bolsonaro. Democracias assim alimentam pesadelos que
perseguem o presente e contaminam de desesperança um amanhã possível. E o pior
é que tais lideranças não demonstram pudor de se expor frente a plateias à
beira da histeria, dizendo-se perseguidos e exigindo compensações.
De todos, sem querer
diminuir nenhum, Pablo Marçal imprime nas retinas um exemplo de arrogância
digno de nota. É como se ele não tivesse perdido a disputa para se colocar
ainda como um quadro capaz de alterar alguma coisa. Fala como se houvesse
vestido a fantasia de um rei, para não desgastar a imagem de um deus, em parte
por se considerar rico e, portanto, acima das injunções comuns. Pouco se lhe dá
se em torno de seu currículo entra uma sentença de quatro anos e meio, por
pouco não cumprida. Isso, somado pelas vezes em que arranhou a legislação,
bastaria para enquadrá-lo nos requisitos da norma da Ficha Suja e alijá-lo de
quaisquer pretensões. Finalmente, depois de se expor com falsas denúncias
contra Guilherme Boulos, devidamente esclarecidas e desmontadas, é fato que não
deixa margens para dúvidas em termos de caráter. Aristóteles costumava observar
que o homem é um animal político.
Da maneira como as
coisas avançam, pode-se concluir que, cada vez mais, estes mesmos homens se
metamorfoseiam em bestas, com perdão da má palavra, virando seres irracionais.
Por uma brecha no sistema, o tal de Marçal, também chamado de “coach”, própria
ou impropriamente, talvez volte ao anonimato. Esperemos que sim. Outros, como
Fernandes e Brunini, numa segunda volta, ainda conspiram para que ninguém lhes
note os defeitos... E la nave va, como diria Fellini. Afinal, no
plano da política, já sofremos demais. Esperemos que os elementos nos guardem e
protejam, com ou sem chuvas, apagões e podas de árvores...
¨ Esperança versus miséria: por que é tão difícil entender? Por
Julimar Roberto
Nos últimos dois anos,
o Brasil viveu uma reviravolta no combate à extrema pobreza, destacando-se
globalmente ao retirar 9,6 milhões de pessoas da vulnerabilidade, enquanto o
cenário mundial seguiu na contramão. Esses avanços demonstram o compromisso do presidente
Lula em reconstruir um país devastado pela ineficiência e negligência dos
governos neoliberais que esfacelaram a nação. A diferença de abordagem entre os
dois sistemas de governo é evidente, enquanto Lula promove a inclusão e a
justiça social, Bolsonaro e Temer deixaram um rastro de abandono e descaso,
levando o país de volta ao Mapa da Fome.
O retorno de Lula ao
poder trouxe consigo a reativação de programas que historicamente haviam
promovido a redução da pobreza no Brasil, como o Bolsa Família, agora
reformulado e ampliado. A inclusão de adicionais para famílias com crianças
pequenas e políticas de segurança alimentar foram essenciais para devolver
dignidade a milhões de brasileiros. Em menos de dois anos, o governo federal
reduziu drasticamente o número de pessoas passando fome de 33 milhões, em 2022,
para 8,6 milhões em 2024. Lula não precisou reinventar a roda, mas resgatou e
aprimorou as iniciativas que já haviam dado resultados em seus mandatos
anteriores e no início da gestão de Dilma Rousseff. Essas políticas de
transferência de renda e segurança alimentar, que em 2014 haviam tirado o
Brasil do Mapa da Fome, provaram mais uma vez sua eficácia. O impacto foi
imediato. Além da redução da fome, cerca de 20 milhões de brasileiros saíram de
situações de insegurança alimentar grave ou moderada.
Em contrapartida, o
governo de Jair Bolsonaro agravou a crise social, deixando o Brasil mergulhado
na fome e na miséria. Sob sua gestão, o Auxílio Brasil foi marcado por falhas
operacionais e exclusão digital, prejudicando justamente aqueles que mais precisavam.
Bolsonaro não apenas negligenciou o combate à fome, como também comprometeu
programas essenciais que auxiliavam as populações mais pobres. Além disso, a
falta de uma gestão competente durante a pandemia agravou a situação. A crise
econômica foi intensificada pelo negacionismo e pela ausência de políticas
públicas eficazes, empurrando milhões de brasileiros para a pobreza. O teto de
gastos imposto durante o governo Temer e mantido por Bolsonaro só aprofundou os
cortes em áreas essenciais, como saúde e segurança alimentar.
Então, não custa
comparar. Enquanto Lula busca a inclusão social e a recuperação da dignidade da
população, Bolsonaro priorizou cortes orçamentários e medidas que ignoravam a
realidade dos mais vulneráveis. Lula não apenas tirou o Brasil do Mapa da Fome novamente,
mas recolocou o país no caminho da esperança. Essa guinada é um facho de luz em
um cenário internacional preocupante. Com mais de um bilhão de pessoas vivendo
em extrema pobreza no mundo, o Brasil se destaca como uma referência de que é
possível reverter a fome e a miséria com vontade política e compromisso social.
Fonte: Brasil 247
Nenhum comentário:
Postar um comentário