Quem demoliu o Monroe? A história do mais
polêmico prédio público brasileiro
No dia 5 de janeiro de
1976, 15 operários da Aghil Comércio de Ferro Ltda chegaram cedo para
trabalhar.
A empresa, de
propriedade de Antônio Gonçalves da Silva, ganhou a concorrência para demolir o
Palácio Monroe, no centro do Rio de Janeiro.
Munidos de marretas,
picaretas e britadeiras, eles não puderam dar início ao serviço, porque a
Prefeitura ainda não tinha expedido a licença, mas começaram a retirar objetos
de valor, como vitrais e estátuas.
Nas duas entradas do
Palácio Monroe, uma na avenida Rio Branco e outra no Passeio Público, havia
quatro leões de mármore: as peças foram esculpidas pelo italiano Vaccari Sonino
e pesavam, cada uma delas, oito toneladas.
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Quase meio século
depois, dois leões enfeitam a entrada da fazenda São Geraldo, em Uberaba,
município a 481 quilômetros de Belo Horizonte (MG); e dois estão no acervo do
Instituto Ricardo Brennand, no Recife (PE).
Por contrato, a
empresa responsável pela demolição do Monroe podia vender o que estivesse
dentro dele: nem os oitos anjos de bronze que mediam três metros e pesavam cem
quilos escaparam.
Segundo matéria do
Diário de Notícias, publicada em 11 de janeiro de 1976, a Aghil faturou, só na
venda de ferro e cobre, 9 milhões de cruzeiros (cerca de R$ 6,2 milhões em
valores atuais, segundo calculadora do Banco Central com correção pelo
IPC-Fipe).
Pela demolição, ganhou
191 mil cruzeiros (cerca de R$ 131 mil em valores atuais, segundo a mesma
ferramenta de atualização monetária).
A parte mais difícil
da empreitada, ainda segundo o jornal, foi a retirada da cúpula, que tinha 15
metros de diâmetro e pesava 300 toneladas.
A descida do domo
principal até a Rio Branco consumiu 20 dias de trabalho e exigiu, entre outros
cuidados, três guindastes e 80 operários. Aparentemente, ninguém se interessou
pela compra da cúpula.
Em agosto de 1976,
sete meses depois do início da demolição, não havia mais vestígios do Palácio
Monroe no Centro do Rio. Para ocupar sua vaga, foi transferido, em 1979, um
chafariz de fabricação francesa que se encontrava na Praça da Bandeira e tinha
sido adquirido, em 1878, pelo imperador Dom Pedro II (1825-1891), em Viena.
Em 2002, foi
inaugurada, na Praça Mahatma Gandhi, uma garagem subterrânea com capacidade
para 1.050 carros.
"A demolição do
Monroe foi, por assim dizer, um 'assassinato' coletivo, quase um linchamento. E
o palácio não teve 'morte' instantânea. Foi 'torturado' ao longo dos
anos", afirma o escritor e pesquisador Carlos Eduardo Drummond, autor de
Tempos Modernos – O Rio Metrópole, a Exposição de 1922 e a Incrível História do
Palácio que Desapareceu Durante a Ditadura Militar (Litteris Editora, 2024).
"Minha descoberta
mais surpreendente foi, sem dúvida, a ata de uma reunião localizada nos
arquivos da Fundação Getulio Vargas (FGV). É revelada a criação, por ordem do
então presidente Geisel, de uma campanha artificial, em jornais e revistas da
época, para convencer a população de que o Palácio Monroe precisava ser
demolido. É chocante porque prova a ilegalidade do ato. Se fosse um julgamento,
mudaria o rumo da decisão final."
• Quem é o culpado?
A pergunta "Quem
demoliu o Monroe?" já deu origem a livros (Palácio Monroe – Da Construção
à Demolição, de Sérgio A. Fridman), documentários (Crônica da Demolição, de
Eduardo Ades) e teses acadêmicas (Memórias, Resistências e Ressonâncias no Processo
de Destruição do Palácio Monroe, de Daniel Levy de Alvarenga).
São muitas as
hipóteses para a demolição do mais polêmico prédio público brasileiro da
história: desde a construção do metrô até a obstrução da paisagem.
Há quem diga,
inclusive, que tudo não passou de vingança pessoal do então presidente da
República, o general Ernesto Geisel (1907-1996).
Durante o governo de
Juscelino Kubitschek, Geisel teria sido preterido para um cargo de confiança.
Em seu lugar, JK teria escolhido Rafael de Souza Aguiar (1900-1990), filho do
autor do projeto, o engenheiro Francisco Marcellino de Souza Aguiar (1855-1935).
"Não há na
biografia destes dois militares indícios consistentes que reforcem a versão de
que se tratava de uma rivalidade", explica o historiador Daniel Levy de
Alvarenga, doutor em História, Política e Bens Culturais pela FGV/CPDOC e autor
da dissertação de mestrado em História pela Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro (UNIRIO), Memórias, Resistências e Ressonâncias no Processo de
Destruição do Palácio Monroe (2018).
"A hipótese mais
aceita e estudada pela historiografia é aquela que atribui a demolição do
Monroe à ausência de valor estético e arquitetônico que justificasse sua
preservação. O estilo eclético do palácio e sua desconfiguração com relação ao
projeto original teriam sido os motivos determinantes para a sua
destruição."
Uma das hipóteses mais
recorrentes – a de que o Palácio Monroe teria sido destruído para dar lugar à
estação da Cinelândia do Metrô – também é refutada.
"O Metrô não foi
a causa da demolição do Monroe. Sua rota desvia do palácio", revela o
cineasta Eduardo Ades, diretor e roteirista do documentário Crônica da
Demolição (2015). "Por que, em vez de simplesmente demolir o Monroe, não o
reconstruíram em outro lugar?", indaga.
Autor de Tempos
Modernos, Drummond afirma que são muitos os vilões dessa história. "Uns,
com mais peso; outros, com menos", pondera.
No topo da lista,
estão o arquiteto Lúcio Costa (1902-1998) e o general Ernesto Geisel. "Os
dois tinham prerrogativas técnicas e políticas suficientes para evitar a
demolição." E, no entanto, nada fizeram.
• A joia da coroa
A história do Palácio
Monroe começou em 27 de julho de 1903. Naquele dia, Souza Aguiar foi chamado ao
gabinete do presidente Rodrigues Alves (1848-1919), no Palácio do Catete.
A ele, foram confiadas
duas missões: presidir a comissão que representaria o Brasil na Exposição
Universal de 1904 e construir o pavilhão que serviria de sede para o Brasil em
Saint Louis. A exposição comemorava o centenário da compra da Louisiana pelos EUA.
Não satisfeito, o
ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas, Lauro Müller (1863-1926),
acrescentou um terceiro pedido: terminada a exposição, o pavilhão seria
reconstruído na Avenida Central, atual Rio Branco, no Rio de Janeiro, a então
capital do Brasil.
Até o dia 30 de abril
de 1904, data da inauguração da exposição, Souza Aguiar teria sete meses para
projetar e construir o pavilhão.
Com 41 metros de
comprimento e 31 metros de largura, foi um dos mais visitados de Saint Louis.
Entre outros convidados ilustres, recebeu a visita do presidente dos EUA,
Theodore Roosevelt (1858-1919), e do “pai da aviação”, Alberto Santos Dumont
(1873-1932). Quem visitava o pavilhão degustava o cobiçado cafezinho brasileiro
– foram servidas até quatro mil xícaras por dia.
A exposição chegou ao
fim no dia 1º de dezembro de 1904. Dos 12 pavilhões presentes em Saint Louis, o
brasileiro foi considerado o mais bonito. Ganhou do júri oficial a medalha de
ouro do grande prêmio de arquitetura.
No dia 19 de novembro
de 1905, já no Brasil, foi lançada a pedra fundamental do palácio, batizado de
São Luiz – a versão aportuguesada de Saint Louis. O objetivo inicial do governo
federal era transformá-lo em local de exposições. E a primeira delas já tinha
sido até escolhida: a 3ª Conferência Pan-Americana, em 23 de julho de 1906.
Pela segunda vez, Souza Aguiar teve que correr contra o relógio: teria oito
meses para concluir sua reconstrução.
Na inauguração do
Palácio São Luiz, o discurso de abertura foi proferido pelo Barão do Rio Branco
(1845-1912) e a conferência presidida por Joaquim Nabuco (1849-1910),
embaixador do Brasil em Washington. Partiu dele, aliás, a ideia de rebatizar o
Palácio de Monroe, em homenagem ao ex-presidente americano James Monroe
(1758-1831).
Com o fim da 3ª
Conferência Pan-Americana, em 27 de agosto de 1906, o Palácio Monroe passou a
abrigar os mais diversos eventos sociais, como bailes, concertos e formaturas.
O velório de Joaquim Nabuco, que sugeriu a mudança de nome de São Luiz para
Monroe, também foi realizado lá, em 1910.
• Tema de exposição
O Palácio Monroe
sediou a Câmara dos Deputados e o Senado Federal. A Câmara dos Deputados, por
oito anos, de 1914 a 1922, e o Senado Federal, por 35 anos, de 1925 a 1960.
Quando o Palácio Tiradentes ficou pronto, a Câmara dos Deputados mudou de
endereço. O mesmo se pode dizer de Brasília. Quando a capital do Brasil foi
inaugurada, o Senado Federal foi transferido do Rio de Janeiro para o Distrito
Federal.
Em 1923, quando ficou
decidido que o Monroe seria a sede do Senado Federal, o palácio sofreu
profundas transformações arquitetônicas. Entre outras reformas, foram
instalados três elevadores, que chegaram ao Brasil a bordo do navio American
Legion, em 1924.
Ao longo desses 35
anos, o Monroe foi ocupado pelo Ministério da Justiça, o Departamento de
Imprensa e Propaganda e o Departamento de Ordem Política e Social, do Estado
Novo de Getúlio Vargas, em 1937, e pelo Tribunal Superior Eleitoral, em 1945.
Com a volta do regime democrático, o Senado voltou a ocupar o Monroe.
A última sessão nas
dependências do Monroe foi realizada no dia 14 de abril de 1960. Com a vitória
nas eleições, Juscelino Kubitschek cumpriu a promessa de transferir a sede do
Senado para a recém-inaugurada Brasília.
Desde março, o Palácio
Monroe é tema de uma exposição: Um Legado da Democracia, que faz parte das
comemorações dos 200 anos do Senado Federal. “Era uma edificação imponente, com
uma arquitetura em estilo eclético, que trazia a ideia de solidez e poder no
início do século 20 e representava a nova República e a modernização do
Brasil”, descreve a museóloga Luana da Conceição Martins.
“Como sede do Senado,
foi palco para aprovação de importantes legislações, como o voto feminino, no
início da década de 1930; as primeiras leis de proteção da criança e do
adolescente, e a legislação trabalhista, durante o primeiro governo de Getúlio
Vargas”.
• Ascensão e queda
Curiosamente, o
palácio que, em 1904, ganhou um importante prêmio internacional de arquitetura,
a ponto de merecer rasgados elogios da imprensa americana como “soberbo”,
“estupendo” e “grandioso”, passou a sofrer ataques da mídia brasileira. Entre
outros impropérios, foi xingado de “inútil”, “ridículo” e “desprezível”. “O
Monroe representa um trambolho que nada justifica enfear o Rio”, publicou O
Globo em 10 de janeiro de 1961.
“Chega a ser
impressionante a trajetória do Monroe: em apenas 55 anos, passou de modelo e
símbolo de civilização para um ‘trambolho’ que atrapalhava a cidade”, ironiza o
historiador Daniel Levy de Alvarenga. “O que mais chama a atenção é a violência
simbólica de sua demolição. Não podemos esquecer que, durante 35 anos, o Monroe
foi sede do Senado Federal. Seria como demolir o Capitólio em Washington”.
O Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) era a favor da demolição.
Mesmo aposentado como chefe da divisão de estudos e tombamentos, Lúcio Costa
endossou o parecer da instituição: “Perdeu toda e qualquer significação e deve
ser demolido em benefício do desafogo urbano”, declarou o pioneiro da
arquitetura modernista do Brasil.
O Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro (IHGB), porém, defendia sua preservação. “A memória do
homem é fraca”, declarou o historiador Pedro Calmon (1902-1985). “Por isso que
a história é a memória de um povo”.
O Clube de Engenharia
também saiu em defesa do Monroe. “A construção tem um grande valor
arquitetônico e histórico, não apresenta problemas de segurança e sua
destruição não beneficiaria o tráfego local”, dizia o relatório assinado pelo
engenheiro Durval Lobo (1910-2007), diretor do Departamento Técnica
Especializado de Urbanismo do Clube de Engenharia.
À época, Lobo liderou
um movimento, o Manifesto pela Preservação do Palácio Monroe, que contou com a
adesão de 162 arquitetos, urbanistas e engenheiros, como o paisagista Roberto
Burle Marx (1909-1994).
“Não podemos esquecer
que, nos anos 1970, o Brasil vivia os horrores do golpe de 1964. Neste aspecto,
considero o manifesto, mesmo não conseguindo manter o prédio de pé, um ato de
coragem”, enaltece Alvarenga.
De nada adiantou.
No dia 9 de outubro de
1975, Golbery do Couto e Silva (1911-1987), chefe da Casa Civil de Ernesto
Geisel, enviou uma carta a Mário Henrique Simonsen (1935-1997), ministro da
Fazenda, comunicando a decisão do presidente de demolir o Monroe.
A decisão foi
comemorada pelo jornal O Globo.
“Por decisão do
Presidente da República, o Patrimônio da União já está autorizado a
providenciar a demolição do Palácio Monroe. Foi, portanto, vitoriosa uma
campanha deste jornal que há muito se empenhava pelo desaparecimento do
monstrengo arquitetônico da Cinelândia”, publicou na edição de 11 de outubro de
1975.
• O próximo capítulo
À pergunta “Quem
demoliu o Monroe?”, segue-se outra: “Como estaria hoje o Palácio?”. O
historiador Daniel Levy de Alvarenga imagina que o Monroe poderia ser “um
importante equipamento urbano de divulgação da cultura”, como o Centro Cultural
Banco do Brasil (CCBB) ou o Centro Cultural Correios.
Já o cineasta Eduardo
Ades acredita que, em vez do Palácio da Cidade, em Botafogo, a Prefeitura do
Rio poderia funcionar no Palácio Monroe, no Centro da Cidade. “É uma pena! Se o
Monroe ainda estivesse lá, a Cinelândia não estaria tão abandonada”, lamenta.
O escritor Carlos
Eduardo Drummond, mais do que imaginar como o Monroe estaria hoje, sonha com
sua reconstrução. “Está na hora de criar outra campanha: o da reconstrução do
Monroe, bem ali no lugar original. Não há mais justificativa para ter um
estacionamento subterrâneo naquela praça. E um chafariz que praticamente não é
desfrutado pela população, dado o risco de furtos e assaltos, por causa do
descaso e do abandono da região”.
Fonte: BBC News Brasil
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