Os caminhos da educação em Portugal
As relações entre
professores, induzidas por ideais da Revolução dos Cravos, mudaram:
reivindicações justas e lutas sindicais convivem com competições solipsistas,
obsessões pela carreira e estratégias de sobrevivência profissional
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25 de abril, sempre! É
a palavra de ordem de quem continua a acreditar nas principais promessas da
nossa revolução democrática: democratizar, descolonizar e desenvolver.
O D de Democracia
remete-nos para as promessas e conquistas que, entre nós, num período
relativamente curto, se traduziram em direitos fundamentais, que não tínhamos.
Trata-se de direitos que, noutros momentos históricos e noutras sociedades,
foram sendo conquistados em etapas diferenciadas que se sucederam num tempo
relativamente longo e que correspondem a sucessivas gerações de direitos.
Mas uma das
especificidades da nossa revolução democrática reside precisamente no facto de
termos conquistado e consagrado, quase em simultâneo, direitos de diferente
natureza (direitos cívicos, políticos, sociais, económicos, culturais, etc.)
não sendo, por isso, adequado, no nosso caso, falar de gerações de direitos.
E se considerarmos os
direitos consagrados, sabemos que muitas promessas de abril foram cumpridas,
ainda que muitas outras estejam por cumprir ou precisem de ser cumpridas de
forma mais consistente e sustentada.
A questão dos direitos
insere-se, aliás, no campo mais amplo da democracia e das tarefas do seu
aprofundamento, isto é, a democratização da democracia.
Ora, é precisamente a
democracia que está a atravessar desafios importantes e a ser confrontada com
acontecimentos inéditos. Um dos acontecimentos mais preocupantes é a chamada
“desdemocratização” quando, entre outras causas, assistimos a um crescimento inesperado
da extrema direita, com tudo o que isso significa: xenofobia, racismo,
discriminações várias, vozes de setores mais conservadores da sociedade civil a
apoiarem (de forma mais ou menos dissimulada) a reversão de direitos sociais e
liberdades fundamentais, nomeadamente a liberdade de expressar convicções
culturais e identitárias.
Mas as questões são
mais amplas, complexas e globais, como as que decorrem das guerras atuais em
vários países e geografias (da Ucrânia à Palestina, passando pelo Sudão e
outros países de África, bem como por diferentes regiões do mundo que os media
tendem a esquecer). São estas guerras que contribuem para exacerbar ainda mais
os problemas já existentes que dizem respeito aos movimentos de refugiados, à
emigração e à catástrofe climática.
Também por isso, as
questões da crise (ou das crises) da democracia e da participação são hoje,
mais do que nunca, centrais para o nosso futuro comum, embora andem muitas
vezes associadas à despolitização – daí falar-se também de pós-democracia
(Crouch, 2020), ou contrademocracia (Rosanvallon, 2022), ou, como já atrás
referi, de desdemocratização (Brown, 2006).
A pós-política é uma
outra forma de enquadrar e nomear esse debate porque se trata de uma política
sem objeto, como refere Bruno Latour (2020), ou de uma “democracia sem
política”, na expressão do filósofo espanhol (da moda) Daniel Innerarity
(2016).
Um dos sintomas da
pós-política revela-se, por exemplo, na gestão tecnocrática das questões
ambientais. São frequentemente formas de gestão despolitizadas que contribuem
para consolidar uma condição pós-política e pós-democrática. São a antítese da
democracia, porque os processos pós-políticos ou privilegiam explicações e
soluções técnicas, ou tendem a remeter a resolução e a mitigação da crise
ambiental para comportamentos meramente individuais, ainda que eticamente
desejáveis, mas esvaziando as ações coletivas e comunitárias (Afonso, 2024).
A pós-política é assim
a regressão da democracia quando assenta exclusivamente na governação de
especialistas e é impermeável à participação dos cidadãos na tomada de
decisões. O que tem sido designado por alvorecer da barbárie climática e
emergência das ideologias tóxicas só pode ser contrariado com uma mudança
radical nos valores e visões do mundo subjacentes à política (politics) e,
consequentemente, às políticas governamentais concretas (policies).
Sabemos que se
insiste, e bem, numa visão que englobe simultaneamente diferentes problemas
(alguns dos quais estruturais) que subsistem nas sociedades atuais, e que estão
relacionados, direta ou indiretamente, com a crise climática. Como denuncia a
conhecida e prestigiada jornalista Naomi Klein (2017), dizer não, não basta!
Para enfrentar a “barbárie climática total” existem opções, mas não faz sentido
fingir que são fáceis – “vai ser necessária uma guerra total contra a poluição,
a pobreza, o racismo, o colonialismo e o desespero, tudo ao mesmo tempo”
(Klein, 2019, p. 44-45).
Isto é, trata-se de
uma luta contra diferentes formas de opressão e dominação. Daí que devamos dar
maior importância ao conhecimento e ao pensamento crítico sobre o está
acontecendo no mundo, de modo a retomarmos a educação no caminho da
emancipação.
E se passados 50 anos,
o D de Democracia está mais frágil, ou pelo menos mais ameaçado, o D de
Desenvolvimento também já não pode nem deve seguir o caminho único que, de
forma restrita, a velha ideologia da modernização parecia pressupor, e que era
o caminho da aproximação dos países periféricos e semiperiféricos, como
Portugal, aos padrões de desenvolvimento dos países capitalistas centrais do
sistema mundial. Continuar os atuais padrões de desenvolvimento e de
crescimento, nomeadamente em termos de consumo, tornará o mundo completamente
inviável. Mas não existe um único caminho. Dado que há modernidades múltiplas e
diferentes interpretações do que é a modernidade, também existem diferentes
interpretações do que é (e do que deve ser) desenvolvimento.
Não é por acaso que,
no âmbito deste debate, tem surgido a questão do decrescimento, a exigir uma
transformação socioecológica profundamente radical. É também por esta razão que
o D de Desenvolvimento, sobretudo quando visa ou significa, essencialmente, crescimento
económico numa lógica neoliberal (à custa de todas as outras questões que são
fundamentais para uma sociedade mais justa), pouco tem a ver com um dos ideais
mais amplos da revolução democrática de abril de 1974. Neste sentido, o
desenvolvimento precisa de ser repensado, já não apenas no contexto nacional,
mas também, cada vez mais, no contexto europeu e global.
Falta o D de
Descolonização. As antigas colónias africanas conseguiram a independência ao
fim de uma longa luta, nomeadamente por ação armada de movimentos de libertação
contra o regime ditatorial que mantinha Portugal amordaçado. Tratava-se de um
regime que também constituía uma ameaça aos jovens portugueses, muitos deles
incorporados compulsoriamente no serviço militar por pertencerem a movimentos
estudantis que contestavam a guerra e a ditadura. Os movimentos estudantis
deram assim um contributo importante para a revolução democrática (entre
outros, Ferreira, 2012; Rosas, 2023; Teodoro, 2023).
No entanto, se é
verdade que o colonialismo acabou na sequência da revolução democrática, a
colonialidade persiste na sociedade portuguesa. A colonialidade (nas variantes
e imbricações do poder e do saber) é a expressão usada pelos autores
pós-coloniais/de(s)coloniais para designar a reatualização dos pressupostos de
dominação e subalternização próprios da ideologia e da prática da colonização.
A este propósito, por exemplo, nada melhor do que perceber de forma crítica o
que acontece quando são feridos direitos humanos fundamentais pela inadequada
concretização de políticas de acolhimento, legalização e de integração social
de emigrantes e refugiados.
Neste contexto de
adversidade, importa salientar que a Educação e os seus profissionais não podem
deixar de contribuir para construir mudanças profundas e urgentes. É também em
relação a estas questões que a escola pública está hoje numa nova, enorme e dilemática
encruzilhada. “Educação ou barbárie” é quase um grito, simultaneamente de
revolta e de esperança, com o qual Bernard Charlot (um dos sociólogos da
educação francófonos mais conhecidos no Brasil) intitulou um dos seus últimos
livros (Charlot, 2020).
Historicamente, a
escola pública foi disputada e pressionada para levar a cabo diversos mandatos
(ora complementares, ora contraditórios): promover a cidadania restrita às
lógicas do Estado-nação, a socialização, a coesão social, as exigências da
economia, a legitimação das desigualdades e a reprodução social e cultural, mas
também a racionalidade científica e a educação para a emancipação.
Nos últimos anos, ao
contrário do que prometiam as utopias do processo revolucionário, a ideia de
emancipação tem vindo a ser esquecida ou ressemantizada. Em certos contextos, o
significado de emancipação, enquanto projeto coletivo, parece agora mais próximo
da noção de “hipervalorização de projetos individuais” (Afonso, 2001) –
projetos apoiados e maximizados por estratégias de crescente mercadorização e
de privatização da educação, com a consequente desvalorização da escola
pública.
Não é, aliás, por
acaso que as estratégias classistas neomeritocráticas continuam a levar a
melhor no ensino privado. Estas estratégias articulam a velha meritocracia com
a parentocracia, isto é, a capacidade e o esforço individual de cada um com a
intervenção dos pais na definição dos trajetos e opções estudantis. A
investigação sociológica sobre as estratégias educacionais das classes médias e
médias-altas passa atualmente por perceber esta neomeritocracia, que, entre
outras coisas, incentiva cada vez mais a internacionalização dos estudos.
Não é, portanto, por
acaso que os percursos de (suposta e desejada) excelência escolar são percursos
que também têm maior probabilidade de acontecer numa articulação virtuosa entre
os quesitos da velha meritocracia e os recursos da parentocracia, ou seja, da
neomeritocracia (Afonso, 2017).
Nada contra o direito
legítimo de escolha dos projetos educativos, entre o público estatal, o social
solidário (menos falado) e o privado. Mas como defensor de uma educação pública
universal de qualidade científica, pedagógica e democrática, para todas e
todos, não posso deixar de registar os insuficientes investimentos e os
crescentes cerceamentos que em Portugal (e em muitos outros países) sofrem as
políticas sociais, nomeadamente na saúde e na educação. E, neste caso, com
todas as consequências para a educação pública e para o reconhecimento e
dignificação dos professores como trabalhadores intelectuais e profissionais –
consequências essas que têm representado um défice material, mas também um
défice simbólico, impedindo, em grande medida, uma nova remobilização e
motivação docente.
São necessárias
alternativas viáveis e outras oportunidades de realização e progressão
profissional – condições para uma escola mais igualitária, de maior justiça
social e epistémica, para as alunas e alunos de todas as classes e grupos
sociais. Vale a pena, por isso mesmo, revisitar brevemente a Revolução de Abril
(afinal é esse cinquentenário que estamos a comemorar) e fazer mais duas ou
três notas breves sobre os caminhos entretanto percorridos pela profissão
docente.
Durante as longas
décadas de ditadura fascista, o regime esperava das professoras e professores
dos ensinos básico e secundário (fundamental e médio) que tivessem vocação e
espírito de missão, e que agissem como zelosos e subalternos funcionários de um
sistema educativo centralizado, burocrático e fortemente hierarquizado,
essencialmente organizado para dar conta de um mínimo de escolaridade (nem
sempre para todos), que garantisse a indução diferencial (classista) de
eventuais percursos posteriores (escolas técnicas industriais e comerciais
versus liceus), e que selecionasse os poucos de que necessitava para, ao nível
superior, sustentar a ideologia dominante, o statu quo e os projetos do Estado
Novo.
No período
revolucionário, pós-25 de abril de 1974, em liberdade, as professoras e os
professores desenvencilharam-se das amarras do regime que colapsava,
assumindo-se muitos como militantes pedagógicos e intelectuais transformadores,
sendo certo que qualquer caracterização do turbilhão de sentimentos e desejos
que emergiam nessa altura será sempre avessa a generalizações, muito embora as
vivências e experiências estivessem profundamente imersas no espírito
progressista do tempo. Lamentavelmente, na educação, as energias utópicas da
Revolução esmoreceram mais cedo do que esperávamos.
Gradualmente, os
professores acabaram por aderir aos discursos e promessas do profissionalismo
docente (com tudo o que isso poderia significar como conquista coletiva), mas
estão hoje confrontados com a desprofissionalização, ou, talvez mesmo, com um
neoprofissionalismo.
Nos antípodas de
abril, a desprofissionalização, que se traduz (também) na desvalorização social
e política do trabalho docente, torna hoje ainda mais insuportável e alienante
o efeito dos mil constrangimentos presentes no quotidiano: da impossibilidade dos
usos criativos dos espaços e tempos, à solidão da sala de aula; do esbatimento
da colegialidade, à natureza cada vez mais tática das interações; dos
desequilíbrios provocados por injustiças várias na feitura de horários e na
atribuição de cargos e tarefas, ao não reconhecimento dos investimentos na
formação; dos efeitos mais nefastos da periferização das questões éticas, à
permeabilidade acrítica a formas várias de desdemocratização; do assédio moral
e atitudes de cancelamento, à manipulação gestionária e à vigilância
autocrática.
Claro que também há
resistências em contracorrente, alternativas construtivas, projetos inovadores
(alguns em parceria com universidades e outras entidades de natureza diversa) e
também há importantes compromissos educativos que continuam a acontecer nas
escolas e que dignificam o trabalho docente. Mas o contexto atual é igualmente
favorável à emergência do neoprofissionalismo – um conjunto de práticas que se
fundem na assimilação acrítica do didatismo psicologista; na adesão
incondicional à tecnicização digital do ensino e à sedução da inteligência
artificial; na interiorização da lógica dos resultados mensuráveis para o
marketing dos rankings nacionais e internacionais; na transformação do
professor em eficaz tutor, mediador ou (mesmo) personal trainer.
Um neoprofissionalismo
que convive com condições cada vez mais difíceis de trabalho em muitas escolas,
nomeadamente com a acentuação da subordinação hierárquica (quando não
autoritária) dos professores, com a simplificação da formação inicial e
consequente desvalorização das ciências da educação mais críticas (ao contrário
da exigência de uma formação complexa que é devida a trabalhadores
intelectuais), entre muitos outros problemas.
As relações entre
professores, induzidas por ideais da Revolução dos Cravos, foram mudando ao
longo do tempo, e hoje redefinem-se de forma sincrética e muitas vezes
paradoxal. Reivindicações conjunturais justas e lutas sindicais mobilizadoras,
convivem com competições solipsistas, obsessões pela carreira e estratégias
(nem sempre leais) de sobrevivência profissional.
A erosão das
solidariedades no contexto de trabalho e a desvalorização de espaços e tempos
de colegialidade dialógica coexistem com a desilusão de promessas políticas
adiadas e com a exaustão motivada por horários sobrecarregados e tarefas
burocráticas. Tudo isso, não raras vezes, com a vigilância panótica e
autocrática de alguns (sublinhe-se, alguns) gestores escolares, pouco ou nada
democráticos, agindo nos antípodas das promessas mais emancipatórias da
Revolução dos Cravos – razão maior para reimaginarmos (criticamente) as
experiências colegiais e autogestionárias.
Precisamos, aliás,
urgentemente (no tempo que resta) conhecer mais biografias e testemunhos vivos,
para que não sobre apenas a possibilidade da pós-memória (isto é, a história
contada em segunda ou terceira mão pelos seus herdeiros). É importante homenagear
todos os que ousaram ser livres e foram capazes de contribuir criativamente
para as mudanças então em curso, sobretudo quando se assumiram como militantes
pedagógicos ou intelectuais transformadores, encontrando novos sentidos para a
realização das decisões coletivas, e assumindo os novos e inéditos desafios do
trabalho pedagógico.
E se é verdade que a
opressão se alimenta em grande parte da ignorância e da alienação, há também
muitas razões que continuam a confirmar que o conhecimento no contexto de uma
educação crítica contribui para nos manter no caminho da emancipação.
Concordo por isso com
Patrícia Collins que numa entrevista recente sublinha: “Eu vejo uma distinção
entre educação emancipatória e educação crítica. A educação emancipatória tem
um compromisso com uma visão mais ampla da mudança social porque é informada
por princípios éticos como liberdade, justiça social ou democracia
participativa. A educação crítica, por sua vez, responde à realidade tal como a
realidade se apresenta num dado momento — critica as desigualdades sociais,
aponta os problemas sociais, propõe soluções e prepara as pessoas para serem
solucionadoras de problemas. Porque visa mudar as realidades atuais, a educação
crítica ajuda as pessoas a lidar com os problemas sociais com os quais elas se
confrontam. A educação emancipatória imagina o que é possível além do aqui e
agora, e a educação crítica fomenta as habilidades de pensamento crítico que
nos levam até lá” (Corrochano et al. 2024).
Então, vale a pena
sublinhar de novo: se queremos que a ignorância deixe de reforçar a opressão, e
se pretendemos manter-nos e contribuir para que mais pessoas e educandos se
mantenham no caminho da emancipação, não abandonemos nunca a educação crítica! Esta
será sempre uma utopia realizável de abril!
Fonte: Por Almerindo
Janela Afonso, em A Terra é Redonda
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