Povos tradicionais de Santarém sofrem com a
seca extrema
As árvores frutíferas
estão secando, e isso é sinal de escassez de alimentos à vista na região do
Lago Grande, em Santarém (PA). O peixe, há dias, desapareceu da mesa das
comunidades distantes. Na Vila de Boim, às margens do rio Tapajós, o calor
extremo está forçando os moradores da aldeia Tucumã a abandonarem suas casas de
alvenaria, que agora precisam buscar refúgio sob as árvores ou em cabanas de
palha.
O que parecia
improvável aconteceu de novo: a natureza repete em 2024 o cenário extremo da
seca do ano passado. Mas, desta vez, o drama foi agravado, porque a natureza
não teve tempo de se recuperar. Não são só as plantações de laranjeira,
açaizeiro e bananeira que estão definhando com a estiagem. Os roçados de
mandioca também não conseguiram amadurecer o suficiente. “Muitas famílias estão colhendo a mandioca
ainda verde. Isso vai trazer um problema muito grande de falta de farinha”,
prevê Marcílio Tupynamboiñwara, vice-coordenador do Conselho Indígena Tupinambá
do Baixo-Tapajós (Citupi).
O rio Tapajós virou
“praticamente um canal”, descreve Marcílio para falar da dificuldade de
transporte na região do Lago Grande. Nas aldeias mais distantes, como Cametá e
Samaúma, o transporte por barco está precário ou deixou de existir. Os
moradores agora são obrigados a se deslocarem por grandes distâncias para
conseguir obter os mantimentos. No rio Amorim, as aldeias estão isoladas, pois
apenas as pequenas embarcações conseguem transitar.
Muitos estudantes
estão sem aulas, porque o transporte fluvial foi interrompido. A saída tem sido
recorrer às motocicletas, mas o risco de acidentes é alto, principalmente
devido às condições das praias do município paraense. Quem precisa ir de barco
até um posto de saúde enfrenta muitas dificuldades. O transporte aéreo, que
poderia ser uma solução, também tem se tornado menos acessível, aumentando o
tempo de resposta para atendimentos urgentes.
“A gente está correndo
um grande risco de que os poços nas aldeias sequem”, alerta Tupynamboiñwara. Se
isso ocorrer, vai faltar água potável, agravando a luta pela travessia neste
período de seca na Amazônia. “A gente espera que isso não aconteça, mas na
verdade a gente já está enfrentando.”
A Terra Indígena
Tupinambá é composta por 28 aldeias, e ainda tem Reserva Extrativista Tapajós
Arapiuns sobreposta ao território. O povo Tupinambá vive à margem esquerda do
Tapajós. O assentamento PAE Lago Grande é dividido em três microrregiões: a
região do Arapiuns, região do Lago Grande e região do Arapixuna.
• Quilômetros de caminhada
Sônia Turiarte, do
povo indígena Arapium, vive na aldeia Atodi, na região do Arapiuns. Nessa
localidade, a situação não é diferente. Os indígenas precisam caminhar por
quilômetros para conseguir encher um balde de água. “Imagine isso, [caminhar
às] 11 horas, meio-dia, carregando água. Estamos sofrendo demais, perdendo
plantações, perdendo pequenos animais por causa da quentura. É muito quente,
está difícil. Esse ano só piorou”, desabafa. O rio, que poderia ser uma
solução, agora “está muito longe”.
Além das aldeias
indígenas, povos ribeirinhos e quilombolas da região de Santarém enfrentam o
mesmo problema. “As comunidades de várzea estão recebendo uma cesta básica, que
não é o suficiente. A água potável [que chega] também não é suficiente, porque
para uma família com várias pessoas, um galão com água não é nada”, alerta
Turiarte. O pouco de água serve para beber e preparar alimentos, mas não sobra
nada para a higiene pessoal.
Entidades e movimentos
sociais estão distribuindo cestas básicas e água para amenizar o sofrimento das
famílias, por meio da campanha solidária SOS PAE Lago Grande. Ajuda, mas não
resolve o problema de quem tem que se deslocar por terra, uma situação mais
crítica para os idosos e as crianças.
“Está faltando comida,
água, assistência social, a saúde está precária. Apesar de a gente ter um barco
que visita as comunidades, ele não vai a todas as comunidades porque não
consegue chegar por causa da seca”, comenta. Quando uma pessoa fica doente, continua
Sônia, a ambulancha não consegue fazer o resgate à noite por medo de encalhar a
embarcação nos arredores da comunidade.
Marcílio
Tupynamboiñwara diz ainda ter notado a formação de fortes temporais, que antes
não eram frequentes na região do Lago Grande. “De repente se forma um temporal
que é com vento, com chuva, com raios e trovoadas. Um raio já matou uma mãe e
um filho. Foram atingidos enquanto andavam de bicicleta. Esses temporais
derrubam árvores, viram as manivas [maniva ou maniva-semente é a parte das
ramas ou hastes usada no plantio da mandioca], os roçados, isso prejudica a
produção também”, diz o líder indígena.
• Estiagem severa
Pescar nas poucas
águas tem sido uma tormenta. As embarcações ficam presas em lagos e nos
igarapés pelo nível baixo da água. Para pescadores do Lago Grande como Agnaldo
Regis Batista, o seu Bibi, a situação deste ano é inédita. A vazante está muito
mais avançada que no ano passado, garante Bibi, que diz acreditar que a alta
mortandade dos peixes, ocorrida no ano passado, tornou o pescado muito escasso
este ano.
“O rio está com uma
base de 25 centímetros de água aqui de frente da nossa comunidade, que é o
Curuai, no Lago Grande. Paramos de pescar por esses dias [na semana passada]”,
lamenta ele, que vive da atividade em 30 de seus 50 anos. “E a gente não pode
fazer nada, né? Essa é a realidade da nossa região.”
Morador da comunidade
São Pedro do Uruari, no Lago Grande, o pescador Idevaldo Ferreira Góes, de 53
anos, conta que mal consegue peixe para alimentar a si, à esposa e ao filho.
Ele conta que a situação se agravou a partir do dia 8 – já são duas semanas de
sacrifícios. “Hoje de manhã [na última sexta] fui dar uma volta, mas está muito
seco, não tem condições. [O jeito é] só ficar mesmo em casa, fazendo algum
trabalho por aqui mesmo, porque até o negócio do peixe para o consumo da gente
está muito difícil, muito difícil mesmo”, reclama.
Também na lembrança
dele a seca deste ano é mais grave que a do ano passado. Isso porque Idevaldo
se recorda de, nessa mesma época, ainda conseguir pescar um peixe aqui e outro
acolá. Para ele, sem ter como ganhar dinheiro, os pescadores vão precisar de mais
ajuda. “Só temos o Bolsa-Família, que minha esposa recebe. É o que tem dado
para segurar a barra. Sobrevivemos da pesca, não tenho outro meio de ganho, a
gente precisa sim [de auxílio governamental]”, diz.
Lenilson Sarmento, de
32 anos, pescador desde os 18, na comunidade São Pedro do Uruari, lembra dos
tempos de fartura. “Por dia a gente pegava 60, 70 quilos de peixe. Dava para
defender o alimento da família, agora ficou difícil”, constata o pescador. Atualmente,
pelo menos 500 famílias vivem nas 70 comunidades do Lago Grande.
• Falta de prevenção
Para o coordenador do
Projeto Saúde e Alegria, Caetano Scannavino, houve tempo e previsões de sobra
para se preparar para este novo cenário de mudanças climáticas se repetindo
mais vezes e de formas extremadas. Faltaram investimentos preventivos em infraestrutura
básica, como sistemas de abastecimento de água e saneamento, o que atenuaria o
impacto junto às comunidades ribeirinhas da região de Santarém e arredores. “A
seca e a cheia fazem parte do ciclo da Amazônia, mas o que estamos presenciando
são eventos extremos que se tornaram o novo normal”, relata.
O Projeto Saúde e
Alegria, em parceria com outras organizações e movimentos locais, tem promovido
ações emergenciais, como a distribuição de filtros de nanotecnologia para
garantir água potável para famílias afetadas pela vazante. “Nosso objetivo é
entregar 5 mil filtros, que conseguem tornar a água barrenta em água potável”,
explica o coordenador, ressaltando que são medidas paliativas. Uma coalizão de
organizações da sociedade civil também tem distribuído cestas básicas em áreas
onde a seca compromete a produção agrícola familiar. Essa ajuda vai se estender
até 2025.
A solução ideal,
contudo, passa por projetos estruturais, como sistemas de abastecimento movidos
à energia solar, capazes de oferecer uma solução sustentável e duradoura. Ele
também critica a ausência do tema nas campanhas políticas. Nas campanhas municipais,
segundo Scannavino, o tema “clima” sequer foi mencionado, e quando falam de
meio ambiente, as ONGs são vistas como inimigas.
• Negativo na régua
O nível do rio Tapajós
atingiu marcas negativas na régua, algo nunca visto antes na região. É este o
cenário que a Defesa Civil de Santarém enfrenta neste ano. O coordenador
Darlison Rego Maia e sua pequena equipe de nove pessoas tentam vencer uma
batalha logística para chegar até as comunidades isoladas. Os rios e igarapés,
principais vias de transporte, estão secos.
A missão é entregar
cestas básicas e água potável para 9.252 famílias, entre quilombolas, indígenas
e ribeirinhos, espalhadas por 187 comunidades de Santarém. Em alguns locais, a
Defesa Civil consegue chegar com o uso de caminhões e picapes, mas nem sempre o
caminho está livre para todos os lugares.
“Nossa maior
dificuldade é justamente o acesso [às comunidades]. Estamos iniciando [na
última semana], até mesmo porque depende de decreto, de situação de emergência,
tem a parte burocrática para a gente receber os kits”, revela o coordenador da
Defesa Civil. A distribuição de suprimentos depende de uma força-tarefa que
envolve diversas secretarias do governo municipal e estadual, além do Corpo de
Bombeiros.
O coordenador da
Defesa Civil de Santarém se mantém esperançoso com o início da subida dos
níveis dos rios, mas alerta que o município continua em estado de emergência e
que o apoio governamental é fundamental para superar a crise.
Darlison detectou que
outro problema tem sido a elevada mortandade de peixes. Presos nos lagos pela
baixa das águas, eles não resistem ao choque térmico quando chegam as primeiras
pancadas de chuva forte. “A gente perde muitos peixes”, relata. O coordenador
lembra de uma seca pior, a de 1941, mas reconhece que a falta de registros
precisos da época impede uma comparação real com a atual crise.
• Perda de superfície de água
Para o pesquisador
Bruno Ferreira, do Imazon e do projeto MapBiomas Água, a reprodução de peixes
pode estar sendo afetada com o aquecimento das águas, já que essas espécies
vivem dentro de um ecossistema composto por uma fauna e uma flora aquáticas. “A
gente tem tipos de vegetações que dependem da água para frutificar, para
florescer e esses impactos podem ser sentidos por essa perda de superfície de
água”, analisa, ressaltando que esses fenômenos têm estrita relação com o
aquecimento global.
O cientista traz
também dados preocupantes sobre a região do Tapajós. “Ano passado, em 2023, na
região do Tapajós, detectamos em todo ano 52 mil hectares de perda de
superfície de água. Até setembro de 2024, já registramos 47 mil hectares de
perda de superfície de água na bacia do Tapajós, e o período de estiagem não
terminou”, revelou.
Esse número de 47 mil
hectares não vai diminuir para 2024, segundo o cientista. “O que pode
acontecer, em caso de chuva nos próximos meses, é esse número não subir. Mas a
realidade é que esse número ainda pode aumentar, pois ainda estamos em curso
com o período de estiagem que dura até novembro.”
Isso porque, segundo o
cientista, os “rios e lagos não estão conseguindo se recuperar por completo
depois de secas consecutivas”.
Fonte: Amazônia Real
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