Exclusão social no neoliberalismo abre
caminho ao crime organizado e ao extremismo religioso, diz Marcio Pochmann
O neoliberalismo foi consolidado no Brasil na década de 1990 e
alterou profundamente as relações econômicas e de trabalho. O fim de uma era de
industrialização deixou boa parte da população fora do sistema, redirecionado
ao modelo agroexportador e à prestação de serviços. O que gerou, conforme o
economista e presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), Marcio Pochmann, uma massa sobrante, para quem o capitalismo não tem nada a
oferecer. Caminho aberto, segundo ele, para o crime organizado e
o extremismo religioso.
<><> Eis a
entrevista.
·
A gente vive uma realidade mundial em que
as big techs, as grandes corporações da internet, detêm mais dados dos países
do que o próprio país. Como fica a soberania nacional nessa situação, se um
país tem suas informações capturadas e conhecidas por empresas estrangeiras?
O presidente
Lula tem falado a respeito disso. Nós estamos, de certa maneira, num
conflito que diz respeito à governança de populações. Vamos voltar no tempo:
depois da Guerra dos 30 Anos, de 1618 a 1648, houve o desenlace
da Igreja Católica no estabelecimento do que havia de estados,
impérios, reconhecimento de territórios. No caso do Brasil, na era do descobrimento,
antes disso, o Acordo de Tordesilhas [1494] estabelecia os limites e passava pela Igreja
Católica. A Guerra dos 30 Anos, de certa maneira, impõe uma separação, e
aí se constituem os chamados estados nacionais, que vão ganhar difusão no
século 20, especialmente ao final da Segunda Guerra Mundial [1939-1945]. Esse processo de criação dos estados nacionais pressupôs identificar fronteiras geográficas e, ao mesmo tempo, a governança da população, ou seja,
através da dimensão da população, de quantos jovens, quantas crianças havia.
Até então, até o século 16, 17, havia contagem de população, mas com vistas à
formação de exércitos para a guerra. Isso muda em 1790, quando os Estados
Unidos realizam o primeiro censo demográfico, feito para contar a
população para efeito da eleição, para saber quantos eleitores teriam e o
número de deputados naquele país. Ali vai se identificando cada vez mais que a
governança de populações passa por informações, por dados demográficos, e
é o papel do Estado Nacional fazer isso.
A tua pergunta
refere-se justamente a uma situação nova, que é o poder crescente de poucas,
mas grandes corporações transnacionais, cujo faturamento ultrapassa
o PIB [Produto Interno Bruto] de países. Então, há uma disputa de governança. O IBGE levou
12 anos, desde 2010, o último censo, ao que nós fizemos agora, divulgado em
2022. Exigiu 180 mil recenseadores para visitar 70 milhões de domicílios. Tem
um custo, que não é pequeno, para a sociedade brasileira, mas é importante
que seja feito. Até foi feito com pouco recurso, e nós estamos levando um, dois
anos, talvez três, para divulgar todo o censo. Na era digital, nós estamos
diante de um capitalismo cada vez mais de vigilância. As big
techs são grandes empresas de tecnologia que permitem que a
gente acesse a internet se conectado em alguma rede, aceitando sua política de
privacidade. Política que diz “você pode entrar aqui na nossa rede, mas fique
sabendo, você tem que aceitar que tudo que você postar, que utilizar, não lhe
pertence, portanto, as fotos que você posta, os filmes, as músicas, as compras,
as mensagens, os pagamentos, os roteiros que você faz de percurso, tudo isso
você utiliza, porém, não lhe pertence”. Isso é um conjunto de dados que,
ao final de cada dia, é possível fazer um censo de um país, do mundo, pelo
menos de todos que estão conectados. Dá para saber o que as pessoas fizeram, o
que nós fizemos ao longo do dia.
·
As big techs fazem um censo por dia, ou
seja, o que o IBGE faz de 10 em 10 anos, ela faz em um dia...
Exatamente, e mais do
que isso, ela tem informação online, atualizada a todo momento. Portanto,
essas big techs, que são estrangeiras, têm mais informações que o
próprio IBGE, têm mais informações que o presidente da República. Nós
estamos assistindo aí uma disputa de um empresário, de uma grande
empresa, Starlink, que entrou na guerra Ucrânia e Rússia. Algo que a gente desconhecia sobre isso, ou seja, desde o
início do século 17, da Guerra dos 30 Anos, que não havia o setor privado
entrando em guerras, governando populações. Nós estamos, inclusive, eu mesmo
pertenço a uma universidade que praticamente colocou todas as suas informações
na mão de uma empresa estrangeira, por quê? Porque o correio eletrônico é feito
por essa empresa estrangeira, então todas as informações são de posse dessa
empresa. Alguém vai lembrar aqui do ChatGPT,
que é um avanço importante etc. Mas de onde sai o conteúdo para as perguntas
que a gente faz sobre o Brasil? Saiu de nós mesmos, que doamos, ao longo
da pandemia,
várias aulas que foram ministradas, debates. Essa é uma questão central do
ponto de vista do que serão os países, do que será a governança de populações
nesse processo de digitalização, em que predomina um outro modo de organização
do capitalismo. O Brasil não é uma sociedade letrada digitalmente. As
pessoas até sabem teclar... Eu mesmo me considero um iletrado digital.
A União Europeia está preocupada com esse tema e estabeleceu um
programa de letramento digital, com a meta de que, até 2030, pelo menos 30% da
população europeia esteja letrada digitalmente. O que é letrada? Saber que, por
exemplo, ao fazer uma pergunta em uma rede, que a resposta varia conforme o
perfil do usuário. Esse é o grande risco. Por incrível que pareça, na sociedade
com tantas informações, o que predomina é a desinformação.
·
É outro paradoxo. Até esse letramento que
tu falas, eu imagino que é uma espécie de realfabetização, só que digital.
Exatamente. Se no
passado, na era industrial, se dizia que informação é poder, hoje a gente pode
dizer talvez o contrário, desinformação é que é poder. Porque não se acredita
mais em nada. Nós estamos tendo uma vulgarização das estatísticas, o IBGE levanta
400 mil preços, vai em nove regiões metropolitanas, nossos pesquisadores
que levantam os preços e o IBGE divulga a inflação.
Aí alguém vai no supermercado, filma e diz “olha, o preço da batata subiu 20%,
a inflação está errada”. Obviamente que não é obrigado saber como se faz a
inflação no Brasil, mas é uma vulgarização, uma descrença. É preocupante
porque há o risco de nós entrarmos numa nova era, uma nova Idade Média,
como foi aquela que prevaleceu entre o século 5, depois da destruição
do Império Romano, até o século 15, com a descoberta
de Gutenberg e da imprensa. Durante praticamente 10 séculos, com o
fim do Império Romano [ 27 a.C. - 476 d.C.] , a Igreja
Católica passou a absorver todas as informações nas suas próprias
bibliotecas enquanto predominava um profundo analfabetismo no mundo. Tem um livro fantástico, um filme também muito bom, O
Nome da Rosa, que mostra isso. É o que nós estamos tendo hoje. Ou seja, há uma
monopolização das informações e do conhecimento em pouquíssimas corporações
estrangeiras. O risco, portanto, é se difundir o analfabetismo digital numa sociedade praticamente descrente de tudo, em que o
governo vai ser cada vez mais aquele das grandes corporações.
·
Você disse esses dias que há um processo
gradativo, contínuo, de decadência das regiões litorâneas do Brasil,
enquanto o interior do país está se desenvolvendo. Eu gostaria que você
comentasse um pouco isso.
A meu juízo, nós
estamos numa rota que é o inverso daquela que ocorreu no Brasil, desde o
Império [1822-1889]. No período da Colônia [1530-1822], havia o
chamado exclusivismo metropolitano, ou seja, as colônias só podem exportar
para Portugal. Depois ouve a Liberação dos Portos para
as Nações Amigas e, entre 1808 e 1920, o principal parceiro comercial
do Brasil foi a Inglaterra. Nossas instituições naquele momento,
a própria República, estão muito contaminadas pelos valores, pela
ideologia, pela orientação inglesa. Os investimentos que vieram do
exterior, por exemplo, que permitiram a construção das primeiras ferrovias no Brasil, eram aquelas que ligavam o interior aos portos. Era a ferrovia
que desovava a produção de café para o litoral, para o Oceano Atlântico, o
que não se alterou drasticamente desde 1920 até 2009, quando os Estados
Unidos passaram a ser o principal parceiro comercial do Brasil. Desde
2009, o principal parceiro comercial do Brasil é a China. Muda,
em primeiro lugar, que o Oceano Atlântico já não é o centro do
comércio externo brasileiro. O centro do comércio externo é cada vez mais
o Pacífico. E, se nós olharmos os investimentos que estão sendo feitos,
públicos, privados e internacionais, são investimentos que ligam
o Centro-Oeste, o Norte e uma parte do Sul aos países
latino-americanos, visando a saída para o Pacífico. Então, isso que eu
quero dizer, há um inverso no século XIX. Os investimentos estão sendo
organizados para viabilizar a logística que leva para o Oceano Pacífico,
porque se economiza três semanas de transporte, comparado com a saída
pelo Atlântico.
Se olharmos
o PIB dos municípios, vemos três tipos no Brasil. Cerca de 10% a
15% são municípios fantasmas, onde o PIB não cresce, está paralisado,
a população jovem sai, e há um envelhecimento, vivendo praticamente de
transferências fiscais.
O segundo grupo é
formado pelos municípios das regiões litorâneas. Geralmente, com exceções, são
as metrópoles que outrora eram a base da indústria e dos melhores
empregos, mas, com a desindustrialização, foram definhando. Têm um crescimento econômico médio de 2% ao
ano, e suas rendas per capita estão estagnadas. Agora, se você olha o interior
de São Paulo, pegando um pouco de Paraná, Santa Catarina, e
alguma coisinha do Rio Grande do Sul, e subindo rumo
ao Centro-Oeste e parte do Norte, nós vemos ali municípios que
crescem 6%, 7% ao ano, são praticamente municípios com ritmo chinês. É um outro
país, é outra configuração. O que vai acontecer com a população brasileira, 70%
dela ainda residente a não mais de 200 quilômetros da região oceânica,
do Oceano Atlântico? Porque isso está sendo cada vez mais um espaço
conflagrado com a presença predominante do que eu denomino como o novo sistema
jagunço, que é a liderança do fanatismo religioso e do banditismo social. São questões estruturais que não vamos resolver com a eleição,
até porque a eleição também já está contaminada com o efeito do novo sistema
jagunço. Perpassam justamente por um novo sistema de dados do país e uma
reflexão do povo brasileiro a respeito do seu futuro.
·
Pode explicar melhor esse conceito do
sistema jagunço? Acrescentando sobre algo que temos visto, um aumento da
penetração do crime organizado em várias instituições públicas ou
privadas - e nós temos, toda semana, evidências, digamos assim, daquela zona
cinza, que você não sabe se é exatamente legal ou ilegal - como um avanço na
conquista do poder para facilitar o negócio do crime organizado.
É uma questão que
estudo há algum tempo, com produção sobre o tema. O fanatismo
religioso e o banditismo social são consequências diretas da
predominância do receituário neoliberal. No início da República, em
1889, houve uma tentativa de industrialização que foi derrotada, e aí
acendeu a política do café com leite, a política dos governadores etc. Que
assentou o liberalismo. O que era o liberalismo? Era o Estado
mínimo, um liberalismo que patrocinava o capitalismo para
poucos.
Caio Prado [Júnior, historiador e geógrafo brasileiro] destacava que esse
capitalismo gerava uma massa "inorgânica" para o capital, composta
pelas pessoas pobres do campo, sem futuro no sistema. Exemplo disso foi a Guerra de Canudos (1896-1897), com 25 mil pessoas vivendo em uma economia solidária, fora do
capitalismo. Outro exemplo foi o cangaço de Virgulino Lampião, que reunia essa massa sobrante, praticando o justicialismo ao
invadir fazendas. Isso acaba com a Revolução de 30, que organizou o desenvolvimento capitalista, que abriu espaço
para incorporar essa massa sobrante através do emprego assalariado formal, dando às pessoas a oportunidade de ter um direito, o direito
de se aposentar, de receber um salário mínimo, de ter férias, descanso
semanal, de ter representação, o sindicato. Um sistema que dava identidade e
pertencimento.
Com o
receituário neoliberal e a entrada do Brasil na globalização a partir de 1990, o capitalismo brasileiro foi
definhando. Nos anos 80, cerca de 70% dos ocupados no Brasil estavam
em atividades capitalistas, focadas no lucro e crescimento. Hoje, apenas
49% estão vinculados a essas atividades, enquanto 12% estão no setor público, e
cerca de 40% se encontram em atividades de subsistência ou economia
popular, sem estratégia capitalista clara. Para essa massa sobrante
que nós temos hoje, que eu calculo entre 60 a 70 milhões de brasileiros,
o capitalismo não tem nada a oferecer. É uma massa sem destino. E
quem oferece destino? Porque o Estado, cada vez mais contido, distante das
regiões mais pobres do país, tem a oferecer bolsas que são fundamentais, mas
não são suficientes, porque não oferecem um horizonte. De um lado, você tem
aqueles que questionam esse horizonte, e, portanto, buscam as igrejas. E outros
que questionam que as igrejas também não oferecem tanto, e, portanto, passa por
imediatismo. O imediatismo é a ascensão pelo crime. E isso obviamente está
reorganizando o Estado brasileiro em novas bases. Grande parte
do crime organizado são empreendimentos, tem bancos. Eles
contaminaram o Estado e têm estratégias para financiar o estudo de
jovens em faculdades de direito, que se formam e fazem cursinhos para
a OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] e concursos públicos, ocupando
cargos no governo. Essas instituições se organizam também por meio de processos
eleitorais, tendo um projeto de futuro. Enquanto
o neoliberalismo continuar predominando, incapaz de absorver a todos,
deixará as massas sobrantes cada vez mais vulneráveis
ao crime e ao fanatismo religioso.
·
O que nos leva também para a extrema
direita.
A extrema
direita é uma demonstração do quanto ela é antissistema. Ela está se
colocando contra esse sistema, ainda que possa ser apenas uma retórica. Ao
contrário da esquerda, que muitas vezes defende a ordem do jeito que está aí.
Essa é uma contradição enorme, porque há uma defesa de uma ordem que está, de
certa maneira, com sérios problemas de sustentação, porque também está sendo
contaminada pela própria presença do crime e do fanatismo religioso. A direita
tem um discurso antissistema, antiordem, quando talvez ela seja a própria
ordem. Mas, do ponto de vista do jogo da retórica, do jogo eleitoral, ela se
coloca contra tudo o que está aí, acreditando que a destruição de tudo o que
está aí gerará uma espécie de emergência das cinzas. Quando, obviamente, isso
aí é algo que depõe contra qualquer mínimo de racionalidade nesse sentido. Mas
não podemos esquecer que também a esquerda. Os progressistas têm uma parte importante no que estão fazendo e no que
estão dizendo. Até que ponto a sua retórica, é, de fato, capaz de mudar a
realidade?
·
E até que ponto é capaz?
Trazendo para os dias
de hoje, olhando o governo federal, eu não tenho dúvida que o governo
do presidente Lula tem clareza dos limites em que ele assumiu o
governo. É inegável que a direita não morreu. A direita está viva, vai disputar
as eleições. Tentou um golpe de Estado e não está sendo simples comprometê-los.
Portanto, é um governo de transição para uma possibilidade de transformações
mais profundas. O que tem sido possível fazer até agora, diante dos limites
impostos, é recuperar aquilo que o governo do presidente Lula e
da presidente Dilma haviam já estabelecido. Porque nós tivemos um
retrocesso inegável de 2016 para cá. O próprio IBGE sofreu
demasiadamente, sem concurso público, redução de salários, problemas seríssimos
de realização de pesquisas. Mas isso não é específico do IBGE. Isso é uma
coisa geral. A defesa da privatização, a destruição das instituições, ou seja,
reestabelecer isso nas condições que o governo do presidente
Lula assumiu não é pouca coisa. Evidentemente que há uma expectativa do que
pode ser feito à medida que nós possamos acumular forças. Nesse sentido a
questão eleitoral deste ano me parece muito importante para redefinir rumos e,
obviamente, garantir que a democracia se sustente no país.
·
Nessas perspectivas, qual seria o papel dos
Brics? Tu és otimista quanto às possibilidades que serão abertas, ou que estão
sendo abertas?
Parto da hipótese de
que vivemos uma mudança de época com quatro eixos. O primeiro é o deslocamento
do centro dinâmico dos Estados Unidos e do Ocidente para
a China, abrindo espaço para o Sul Global. O Brasil e
a América se desenvolveram sob o eurocentrismo, mas, com o declínio do Ocidente, temos menos a aprender
com Europa e EUA. Agora, enfrentamos o apogeu do Oriente,
sobre o qual sabemos pouco, e o Brasil, com os Brics,
tem a chance de questionar e oferecer uma alternativa à governança ocidental. O
segundo eixo é a era digital, que reconecta a sociedade de novas formas. O
terceiro é a mudança no regime climático. O quarto eixo é a mudança
demográfica. Até 1800, o mundo tinha cerca de 1 bilhão de habitantes. De 1800 a
2000, a população mundial multiplicou-se por 10. Hoje, vemos uma inflexão, com
o Brasil prevendo regressão populacional após 2040 e países
como China, Japão e Itália enfrentando quedas
significativas em suas populações. É uma mudança de época sobre a qual
o Brasil precisaria também discutir. Nós estamos razoáveis, achamos
razoável a população que nós temos hoje? Com 212 milhões num país de dimensão
continental, de baixa densidade demográfica, será que nós vamos aceitar mais
imigrantes? Por que está havendo a queda na taxa de fecundidade? Por que as
mulheres estão tendo menos filhos? A gente sabe que estão tendo, mas por quê?
Qual é a razão? Falta política pública? Perceba que mudança de época é, na
verdade, um momento de grande questionamento, de oportunidade de disputar o
futuro de forma diferente.
·
O Brasil está presidindo o G20. Está
acontecendo vários encontros, reuniões importantes no Brasil, o que pouco se
fala. A população em geral, na verdade, acho que pouco sabe sobre isso. E um
dos debates que se faz no G20 é justamente a questão da tributação dos
super-ricos, que o ministro da Economia, o Fernando Haddad, defende uma
tributação global. Como é que você está vendo esse debate?
Ele não é, de certa
maneira, novo. Isso já vem do final dos anos 1960 e 1970, a teorização,
propostas. E foi retomado, agora, nesse fórum especial, o que é o G20. É
realmente promissor nesse sentido, mas eu imagino que uma decisão mais ampla
que comece com os países do G20 precisará ganhar maior dimensão,
porque o vazamento de tributação deve ocorrer na medida em que outros estados
possam, na verdade, não se engajar nesse sistema de tributação. Aí vem uma
questão adicional, o esvaziamento das Nações Unidas, que é um produto do
final da Segunda Grande Guerra Mundial e, hoje, realmente, tem dificuldades de estabelecer,
normatizar critérios de dimensão mundial. Talvez os Brics possam
também contribuir nesse sentido, porque, a partir do Sul Global, se olha o
mundo noutra perspectiva, e nós não esperamos mais o andar de cima
do Norte Global, mas nós mesmos vamos construir os nossos caminhos.
·
Interessante que quando o governo federal
toma qualquer medida visando o desenvolvimento do país, tem uma afirmação
econômica ou tenta fazer uma melhor distribuição de renda, logo se forma um
coro de defensores do rigorismo fiscal, da elevação da taxa de juros, do gasto
social. A gente ainda vive isso muito fortemente, né?
Precisamos compreender
que o neoliberalismo se mantém porque tem apoio social. Parte da
sociedade é beneficiária e, por isso, controla os meios de comunicação e a base
parlamentar. Essa parte utiliza sabiamente as oportunidades para manter o modelo
praticamente intacto. O Brasil não tem dívida externa significativa,
a dívida pública é em moeda nacional, sob controle do Estado. Portanto, não há
justificativa técnica para a alta taxa de juros que prevalece, que está acima
da inflação e dificulta os negócios e as atividades produtivas. Isso
desestruturou a classe dominante do país. Como falávamos anteriormente, se
tinha uma burguesia industrial, tinha Antônio Ermírio de Moraes [presidente do Grupo Votorantim de 1973 a 2001],
para citar um, que era, na verdade, uma âncora da produção, uma disputa com o
próprio capitalismo estrangeiro nesse sentido, porque guardava o interesse da
produção nacional. Na medida em que você teve a dominância do
receituário neoliberal, ou seja, você tem taxas de juros muito elevadas,
fica mais fácil você vender o seu negócio, converter o seu negócio em dinheiro
e aplicar no seu financeiro. Não tem risco algum e tem um ganho espetacular. Então
houve uma conversão de uma parte importante da burguesia industrial em
rentistas, que anteriormente eram contra a taxa de juros, porque atrapalhavam
os seus negócios e agora são defensores da taxa de juros, porque ali é o ganho,
é o chamado rentismo, vive de rendas, rendas que não produz. Por outro lado,
aquele segmento da burguesia industrial que conseguiu manter seu negócio e sua
fábrica acaba se tornando uma espécie de comerciante. Ele manteve a sua
fábrica, porém, só monta, ele compra lá fora os componentes e monta aqui
no Brasil. Então esse é amante da taxa de câmbio valorizada, porque quanto
mais valorizada a nossa moeda, é mais barato comprar lá fora e vender aqui
dentro. A defesa sempre da valorização cambial no nosso país. Com isso, se
compra barato lá fora, vende caro aqui. Esse giro não gera emprego decente, não
gera recurso fiscal suficiente e mantém a armadilha do Estado, que tem que
pagar a taxa de juros elevadas, que tem que manter a taxa de câmbio elevada,
porque assim é mais fácil comprar lá fora do que produzir internamente. É um
círculo vicioso, que nos está asfixiando já há muito tempo.
·
Ou seja, é uma elite que não está
preocupada com o desenvolvimento do país.
Exatamente. Até o
desenvolvimento pode ocorrer, sendo que esses ricos de hoje continuassem sendo
beneficiados, mas não pelo rentismo. A meu ver, isso é uma questão política.
O Brasil tem uma poupança de recursos aplicados em títulos públicos
acima de 70% do PIB, ou seja, o dinheiro está aqui, não precisa tomar
dinheiro no exterior. O Brasil é um país em construção, falta de
tudo, falta casa, falta hospital, falta estrada, falta estrutura. Ou seja, tem
espaço para o investimento privado e, obviamente, público. Assim, esse dinheiro
poderia ser investido nesses setores demandantes. É claro que o retorno não
será tão vantajoso quanto a taxa de juros, a taxa de juros tem que ser muito
menor. Você tem tecnologia, porque o que precisa ser feito
no Brasil não precisa de tecnologia estrangeira. Temos mão de obra
qualificada, preparada para isso. Os fundamentos econômicos estão dados, não
precisamos de ninguém. Mas por que, se os fundamentos estão adequados, o
desenvolvimento não ocorre? Ocorre por uma questão política, que impede o
desenlace nesse sentido. Se colocarmos o recurso no sistema produtivo,
garantimos que não haverá recessão e que não aumentará o preço da energia. Quem
tem dinheiro fica em dúvida: se retirar do banco para abrir uma fábrica, levará
um ano para produzir e, quando isso acontecer, o país pode estar em recessão. É
um grande risco, e o papel do Estado é garantir que, nesse período, haverá
crescimento econômico, dando segurança ao investimento.
Fonte: Brasil de Fato
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