'Quando
criminalizamos os imigrantes, começamos a retirar deles a ideia de serem parte
dos EUA'
Algemados e com
correntes em torno da cintura e dos pés. Assim caminham para o avião os imigrantes sem
documentos, rumo à sua deportação dos Estados Unidos.
Recentemente, o
presidente americano Donald Trump se referiu a
um grupo de colombianos
deportados como
"criminosos", mas o governo do presidente da Colômbia, Gustavo Petro,
declarou que eles "não têm nenhuma pendência com a justiça, nem da
Colômbia, nem dos Estados Unidos".
O Brasil prevê
receber, nesta sexta-feira (7/2) mais um voo trazendo
brasileiros que foram detidos e deportados dos EUA.
Desde que Trump
assumiu o poder, em 20 de janeiro, aumentaram as prisões de
imigrantes sem documentos, tanto de pessoas que cometeram delitos quanto
daqueles que não têm antecedentes criminais.
"É uma grande
mudança cultural na nossa nação observar alguém que viola nossas leis de
imigração como criminoso. Mas é exatamente isso que eles são", declarou a
secretária de imprensa da Casa Branca, Karoline Leavitt.
A estratégia de
Trump atinge também os imigrantes que tenham cumprido com os procedimentos
legais para regularizar sua situação.
Atribui-se à
jurista Juliet Stumpf a criação, no ano de 2006, do termo
"crimigração", que ganhou novo vigor e atualidade no segundo mandato
de Donald Trump.
"Historicamente,
observamos imigrantes sem autorização como membros desta sociedade [americana]
de alguma forma, oferecendo seu trabalho ou outros benefícios", declarou
Stumpf à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.
"Mas, quando
criminalizamos os imigrantes, realmente começamos a retirar deles a ideia de
serem parte dos EUA. A 'crimigração' é uma forma de fazer isso de duas formas,
pelo lado penal e pelo lado migratório."
O uso do termo
"crimigração" se estendeu amplamente, dentro e fora do setor
acadêmico. Um exemplo é a Faculdade de Direito da Universidade Harvard, nos
Estados Unidos, que possui uma Clínica de Crimigração.
A BBC News Mundo
conversou com a professora Stumpf sobre este termo, sua origem, o uso adotado
por diferentes governos e seu atual significado, com as medidas do presidente
Trump.
<><> Confira
abaixo a entrevista.
·
Mudar
de um lugar para outro, em busca de um lugar melhor e mais seguro para viver,
faz parte da nossa natureza. Existem pessoas que chegam a defender que emigrar
é um direito humano.
Como o direito à
livre movimentação se transformou em algo que, muitas vezes, é muito perigoso
e, em alguns casos, pode acabar gerando punições?
Juliet Stumpf
- A migração sempre foi uma das nossas grandes vantagens enquanto espécie
– um dos motivos que nos levaram a conseguir viver em quase todos os continentes
do planeta.
Mas acredito que,
desde o princípio, deva ter havido disputas e discussões sobre quem deveria
morar onde, além de enfrentamentos por território.
O que temos visto
com o passar do tempo é que, à medida que migramos e nos assentamos em diferentes
lugares, esta conduta de deslocamento de um lugar para outro foi criminalizada.
As leis dos Estados
Unidos permitiram grande liberdade de movimento entre os Estados. Quando a
pessoa está dentro do país, ela pode se deslocar e se estabelecer em outro Estado
sem nenhuma barreira, o que tem sido uma vantagem real para o país.
Por muito tempo, os
Estados Unidos mantiveram leis relativas à migração. Mas foi apenas em 1929
que, de fato, criminalizamos o deslocamento através das fronteiras.
Em relação àquele ano,
as fantásticas pesquisas de Kelly Lytle Hernández e outros pesquisadores
demonstraram que a aprovação destas leis que criminalizaram a migração não
autorizada se deveu a um senador eugenista e
supremacista branco.
Ele acreditava na
pureza das raças e achava que, criminalizando a migração, ele iria deter a
imigração mexicana para os Estados Unidos.
Até então, os
Estados Unidos não tinham este tipo de legislação. Ela faz parte da história de
racismo estrutural dos Estados Unidos e são mais uma peça do quebra-cabeça para
tentar criar partes do país privilegiadas ou totalmente brancas.
No início dos anos
1990, começamos a nos basear nos antecedentes criminais, ou na crença de que
uma pessoa tivesse ou pudesse ter antecedentes, para não permitir sua entrada
nos Estados Unidos ou promover sua deportação.
Nas décadas de 1990
e 2000 e mais recentemente, a legislação americana foi alterada para aumentar a
criminalização. Foram incluídas mais sanções e antecedentes criminais que
poderiam constituir motivos para a deportação.
Até mesmo se o
imigrante tivesse sido condenado, mas cumprido totalmente sua pena, ele
poderia, agora, estar sujeito à deportação, de formas como nunca havíamos visto
antes. E some-se a isso o aumento da implementação dessas leis e o ambiente de
vigilância migratória.
Tudo isso criou nos
Estados Unidos a tendência de colocar ideias sobre a imigração e os imigrantes
em nossas mentes. Eles deixaram de ser percebidos como pessoas que vieram
trabalhar, que procuram segurança e reunião com seus familiares, para serem
considerados criminosos, pessoas indesejáveis ou perigosas, especialmente neste
momento.
·
O
que é o conceito de 'crimigração'?
Stumpf - É a
intersecção entre a imigração e o direito penal.
Basicamente, é
possível observar e analisar esta tendência crescente de criminalização dos
imigrantes de três formas distintas.
Os antecedentes
criminais se transformaram em uma base muito mais ampla para a deportação,
especialmente de moradores permanentes que vivem legalmente no país.
Podemos também
analisar a forma em que se desenvolveu esta criminalização da entrada nos
Estados Unidos por motivos raciais. Esta motivação quase nunca era empregada e
a tendência que estamos observando é que os processos ocasionados pelo
cruzamento da fronteira dispararam.
E também podemos
tratar da forma como as agências adotaram uma mentalidade de criminalização e
como elas próprias se consideram agentes da polícia de imigração.
Tudo isso é
englobado pelo sentimento público, a visão pública da imigração como algo
relacionado ao crime.
Acredito que este
talvez seja um dos aspectos mais importantes de todo este panorama. Se
observarmos os imigrantes, em grande parte, como pessoas de cor e entendermos
que a imigração está relacionada ao crime, faremos uma combinação em nossas
mentes que considero realmente perigosa e prejudicial.
·
Por
que ocorreu essa convergência entre a legislação migratória e o direito penal?
Stumpf - Eles
se conectaram por duas razões. Uma delas está relacionada ao sentimento público
sobre a imigração.
Este sentimento
costumava acompanhar tendências econômicas. Se a economia andasse mal, o
sentimento anti-imigração aumentava.
É possível observar
isso em gráficos. Mas, se a economia melhorasse, o sentimento público sobre a
imigração também melhorava.
Assim costumava
ser, independentemente de ser algo certo ou errado. Mas o que temos visto desde
os anos 1990 é que esta convergência se desfez.
Até mesmo quando a
economia vai bem, o sentimento público em relação à imigração, agora, piorou.
Acredito que este fenômeno tenha muito a ver com as mudanças das leis e da
retórica sobre a imigração.
Também acredito que
a raça desempenha papel importante.
O conceito de
imigrante, sua imagem perante o público, costuma ser, geralmente, de alguém de
cor, da América Central ou do Sul – ou de outras partes do mundo,
particularmente do Sul Global.
Isso não reflete
necessariamente a realidade. Acredito que, quando as pessoas pensam, por
exemplo, em visitantes que vieram para os Estados Unidos com vistos válidos e
ficaram por mais tempo que o permitido pelo visto, elas possam imaginar pessoas
de cor.
Mas, na verdade, os
canadenses (que costumam ser brancos) formam o maior grupo de pessoas que ficam
nos Estados Unidos por mais tempo que o permitido pelo seu visto de entrada –
os overstayers, como são chamados no país.
A outra razão que
temos observado é que, devido à forma de operação das leis de admissão nos
Estados Unidos, é mais difícil, por exemplo, para alguém do México ou outro
país latino-americano entrar legalmente nos Estados Unidos, em comparação, por
exemplo, com pessoas da Europa ou do Canadá.
Isso é algo muito
complicado de se explicar. Mas tem a ver com a forma de operação dessas leis em
relação a quem pode entrar com facilidade e quem só pode entrar
temporariamente. Ou até com o tipo de comprovação que cada pessoa apresenta
para mostrar que não vem para ficar nos Estados Unidos.
As relações entre o
México e os Estados Unidos vêm de muito tempo atrás.
Os mexicanos
passaram gerações migrando de um lado para outro da fronteira. Por isso, a
existência de leis de admissão que os desfavoreçam em comparação com pessoas de
outras partes do mundo, de certa forma, é algo estranho e muito surpreendente.
·
A
sra. mencionou algumas datas, mas quando a sra. acredita que ocorreu essa
convergência entre as leis de migração e o direito penal? Houve algum momento
ou contexto específico?
Stumpf
- Diversos estudiosos da crimigração indicaram diferentes épocas, mas
acredito que a mais importante começou em 1986 e continuou ao longo dos anos
1990.
Em 1986, foi
aprovada a Lei de Reforma e Controle da Imigração [IRCA, na sigla em inglês],
sancionada pelo presidente [Ronald] Reagan [1911-2004]. Esta foi, de fato, a
última vez em que fizemos uma grande legalização de pessoas que moravam nos
Estados Unidos com situação legal indefinida.
Mas ela também foi
uma peça fundamental e criminalizou certas condutas relacionadas à imigração,
como se casar para obter benefícios migratórios. E também criminalizou certos
empregadores reincidentes na contratação de pessoas sem autorização [para morar
no país].
Aquela também foi a
primeira vez em que se exigiu visto de trabalho para [o imigrante] poder
trabalhar para um empregador americano.
Nas décadas de 1990
e 2000, nosso país enfrentou a chamada guerra contra as drogas. Foram criadas
medidas destinadas particularmente aos afro-americanos e, concretamente, aos
latinos.
Mas, de forma
geral, a guerra contra as drogas gerou a aprovação de leis, denominadas leis
antidrogas, que ampliaram largamente as razões para deportação.
Elas estabeleceram
muitos outros motivos para deportar imigrantes com base nos seus antecedentes
criminais. E também para evitar que alguém entrasse no país devido ao seu
histórico criminal, ou se o funcionário da imigração suspeitasse, ou
acreditasse, que aquela pessoa havia cometido um delito.
O Congresso aprovou
leis antidrogas que criaram novas razões que poderiam levar à deportação, como
crimes qualificados. Foi incluída uma longa lista de delitos.
Até então, os
moradores que viviam com permanência legal nos Estados Unidos eram bastante
protegidos contra a deportação. Eles eram quase considerados cidadãos
americanos, mas sem cidadania – eles não podiam votar, nem concorrer à
Presidência.
Mas, naquele
momento, os moradores permanentes em situação legal no país passaram a ser mais
vulneráveis à deportação. E, de fato, com aquelas leis penais, foram deportados
quase exclusivamente moradores permanentes.
Começamos a
presenciar a deportação massiva de pessoas que moravam aqui há muito tempo.
A guerra contra as
drogas foi criticada pelas suas motivações raciais ou pelo seu enorme impacto
racial sobre as pessoas de cor, especialmente homens, que foram detidos.
Mas ela também
abriu as portas para a criminalização e detenção de outros grupos de pessoas de
cor, particularmente da América Latina. E este, na verdade, foi o objetivo do
meu artigo a este respeito.
·
A
sra. escreveu que a exclusão, a deportação e a detenção foram medidas
historicamente empregadas como "soluções civis", que foram pouco a
pouco transformadas em "castigos comparáveis a sanções penais". Como
assim?
Stumpf
- Excluir alguém, evitar que uma pessoa entre nos Estados Unidos com
autorização; deportar, expulsar uma pessoa do país ou detê-la são ações
administrativas.
Nestas
circunstâncias, a pessoa não foi castigada penalmente, não foi condenada, nem
acusada por um crime.
Mas, mesmo sendo
ações administrativas civis, a expulsão, deportação e detenção se parecem
exatamente com a nossa forma de gerenciamento do sistema de justiça penal.
Os funcionários do
ICE [o Serviço de Imigração e Alfândega dos Estados Unidos] exercem funções
administrativas, mas seus uniformes são parecidos com os dos agentes da
polícia.
Na primeira vez em
que soube da detenção de imigrantes, pensei que eles talvez fossem levados para
hotéis ou locais de estadia temporária, até poderem resolver sua situação e
saber se poderiam ficar ou se deveriam partir.
Mas fui investigar
e alguns centros de detenção são de propriedade dos Estados Unidos. São
dirigidos por empresas que costumavam gerenciar prisões particulares.
Quando o mercado
das prisões particulares começou a entrar em declínio, essas empresas quase
abriram falência. Em seguida, a detenção de imigrantes aumentou.
Por isso, essas
empresas, agora, mantêm milhares de imigrantes em centros de detenção que
costumavam ser prisões particulares ou foram construídos seguindo o modelo
dessas prisões.
Também temos
imigrantes detidos administrativamente, que não foram condenados por nenhum
delito, em cadeias e penitenciárias porque o governo federal alugou esses
espaços junto aos Estados e municípios. Por isso, os centros de detenção não
funcionam apenas como penitenciárias e cadeias, mas, na verdade, são ou já
foram cadeias e penitenciárias.
Estes são os tipos
de lugares onde mantemos imigrantes que não cometeram nenhum delito e,
basicamente, estão detidos com base na legislação civil.
·
E,
paralelamente aos movimentos migratórios, operam máfias de traficantes de
pessoas...
Stumpf - Não
há dúvida que o tráfico de migrantes é prejudicial para eles e gera
criminalidade na fronteira. É algo terrível que precisamos combater.
Esta tendência
aumentou desde a criminalização da imigração e as tentativas de fechar as
fronteiras.
Quando o custo e a
dificuldade de cruzar a fronteira aumentam e, ainda assim, as pessoas precisam
ir ou vir para se reunir com seus familiares, existem aqueles que recorrem aos
considerados especialistas e caem nas mãos dos traficantes.
Por isso, acredito
que um dos motivos que estão gerando esta tendência é porque dificultamos muito
o cruzamento da fronteira de forma organizada. E esta indústria cresceu em
torno a esta situação.
Antes, ela não
existia porque o custo de cruzar a fronteira não era tão alto, nem o risco era
tão grande. Mas nós transportamos a migração sem documentos para lugares mais
perigosos.
Nós fizemos isso de
propósito e foi uma das nossas estratégias de controle da imigração. Mas a
consequência não foi a redução da migração, mas sim o aumento do tráfico [de
migrantes], infelizmente.
·
Temos
observado nos últimos dias imagens de imigrantes algemados embarcando em aviões
para serem deportados dos Estados Unidos. Entendemos que esta seja uma prática
habitual neste tipo de operação. A sra. acredita que ela faz parte da
crimigração?
Stumpf - Com
certeza.
A deportação é uma
ação administrativa, não um castigo penal. Com a deportação, retiramos uma
pessoa dos Estados Unidos e a enviamos para outro país.
Embora as pessoas
deportadas frequentemente sintam que estão sofrendo uma punição, os tribunais
defendem que este traslado é uma ação administrativa civil.
Mas nós costumamos
estabelecer forte correlação entre as algemas ou correntes e o direito penal e
a punição. E seu uso em voos de deportação envia uma mensagem poderosa de que
as pessoas sendo deportadas são perigosas e precisam ser fisicamente contidas.
Este é mais um
exemplo da forma em que a aplicação da lei civil de imigração pode ter
aparência de criminalidade.
Fonte: BBC News
Mundo
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