sábado, 8 de fevereiro de 2025

Tatiana Dias: Toda vez que alguém duvidar do mal causado pelas big techs, mostre esse dossiê

Hoje o alinhamento das grandes empresas de tecnologia com Donald Trump – e com a extrema direita mundial – ficou óbvio. Mas nem sempre foi assim. Um discurso de relações públicas bem alinhado, um time de lobistas de várias matizes ideológicas e técnicas sofisticadas para conquistar corações e mentes de políticos, jornalistas e sociedade civil foram cruciais para, durante anos, blindar essas grandes corporações de regulação e escrutínio público.

Agora, um dossiê lançado nesta quinta-feira, 6, por três organizações, a Avaaz, o Sleeping Giants Brasil e o Projeto Brief, documenta e sistematiza as violações das big techs no Brasil e no mundo nos últimos anos – muito antes de Trump retornar ao poder de braços dados com os oligarcas do Vale do Silício. 

O relatório enumera e resume toda a podridão que assistimos, consolidando evidências do impacto destrutivo dessas empresas na política e na sociedade.

Ainda que não seja novidade – aqui no Intercept, por sinal, nunca descansamos antes de reportar boa parte desses absurdos –, não deixa de ser assustador ver tudo reunido em um lugar só. E, mais do que isso, o documento chega em um momento crítico. Só nas últimas semanas, assistimos Elon Musk implodir o governo dos EUA como se estivesse gerindo uma startup, Mark Zuckerberg desmontar qualquer iniciativa que proteja as pessoas em suas plataformas e o Google simplesmente voltar atrás da sua promessa de não usar IA para armas ou vigilância. Eles perderam qualquer freio ou vergonha.

Que o ecossistema de recomendação e monetização das big techs fortalecem a extrema direita a gente já sabia há tempos. Reportamos inúmeras vezes sobre isso só aqui no Intercept (leia como a Jovem Pan, a extrema direita e a Brasil Paralelo foram beneficiadas) . Mas o discurso público delas ainda era polido. Agora, perderam a vergonha de abraçar o caos. 

Aqui no Brasil, de certa forma, já havíamos tido um prenúncio do que viria. As big techs já haviam se alinhado com a extrema direita, inclusive com táticas sujas de lobby e mentiras, para engavetar o PL 2630, o PL das Fake News. Ali, tivemos a real noção da capacidade de influência na política real – e a consciência de que somos reféns das decisões tomadas por inconsequentes homens brancos do Vale do Silício. 

>>>> A seguir, confira os pontos-chave trazidos no dossiê.

·        1. Redes sociais detonam a saúde mental de crianças e adolescentes

Estudos e comunicados de autoridades de saúde dos EUA, de pesquisadores em todo o mundo e até da própria Meta mostram que redes sociais – particularmente TikTok, X, Instagram e Facebook – estão associadas a danos psicológicos e estímulo a comportamentos nocivos entre crianças e adolescentes. Os documentos vazados no Facebook Papers indicam que pesquisas internas revelaram que o Instagram piorava pensamentos de suicídio e automutilação em 13,5% das meninas jovens. Para 17%, a rede social afetava negativamente os transtornos alimentares. E, para uma a cada três, piorava a autoestima.

Enquanto isso, aqui no Brasil, já mostramos que as big techs pagam estudos que minimizam essa realidade.

·        2. A moderação de conteúdo é ineficiente

A recente decisão de Zuckerberg de acabar com a moderação de conteúdo foi, também, a forma covarde de a empresa se livrar de um problema: a moderação sempre foi falha. Já contamos os traumas vividos por uma moderadora, também mostramos que os sistemas de IA responsáveis por moderar conteúdo, a aposta da Meta, são treinados por pessoas que ganham centavos por isso, sem nenhum tipo de preparo.

Agora, o dossiê lembra que a própria Meta admitiu que o sistema é falho, e as regras não eram aplicadas para todos. Ao mesmo tempo, Google e TikTok, além da própria Meta, lucram com disseminação de conteúdo falso e extremo – quem lembra dos atos de 8 de janeiro no Brasil, transmitidos e disseminados ao vivo em canais monetizados?

·        3. Elas não estão nem aí para a privacidade das pessoas

Qualquer um que já mandou uma mensagem no WhatsApp e depois viu um anúncio sobre o que conversou no Instagram sabe do que eu estou falando. Mas fica ainda pior. Com três curtidas, o Facebook consegue saber se uma pessoa é homossexual, mostrou o estudo. O Google já permitiu que parceiros lessem e-mails privados dos usuários. Nem dados de crianças estão a salvo.

·        4. Usam táticas sujas para se livrar de regulação e influenciar a política

Na Europa, a Meta está sofrendo um processo por abuso de poder econômico relacionado à compra do WhatsApp. E adivinha o que a empresa fez? Mentiu. Mentiu e tomou uma multa milionária por isso. Também precisou aceitar um acordo por enganar investidores nos EUA sobre riscos de uso impróprio de dados. Aqui no Brasil, elas foram mais deselegantes: estamparam desinformação na capa dos principais jornais do país para travar o PL 2630, atuaram ativamente com campanha de pânico e usaram muito dinheiro para influenciar o debate público. Conseguiram.

·        5. As redes sociais conduzem pessoas para o extremismo

Elas negam, negam e negam. Dizem que são plataformas neutras, que os algoritmos de recomendação seguem as preferências dos usuários. Mas vários estudos, inclusive um do próprio Facebook, mostram que isso é balela. O dossiê cita este, do Counter Extremism Project, que mostra como o algoritmo do YouTube promove desinformação, teorias da conspiração e extremismo. O mesmo acontece com TwitterTikTok e Meta

Este último, aliás, é revelador: era um estudo da própria Meta, o que prova que a empresa sabia muito bem o quanto sua plataforma estava servindo para popularizar teorias conspiratórias

Ou seja: elas já tinham esse posicionamento político, mas se preocupavam em disfarçar. Agora, perderam a vergonha.

·        Entidades querem pressionar governo, STF e Congresso para regulação

Há mais casos listados no dossiê, que ainda cita outros estudos mostrando como as plataformas passam pano para bandidos e lucram com desinformação. As referências também estão disponíveis no site. “Há muito tempo as plataformas digitais não são espaços neutros”, diz o texto do dossiê. “Os poderes da República precisam agir com urgência, cada um dentro de suas atribuições, para enfrentar os desafios que se impõem”, defendem os organizadores, defendendo a regulação urgente.

Hoje, no Brasil, há três propostas para regular o tema: o julgamento no STF que avaliará a responsabilização das plataformas de internet, propostas no Congresso, particularmente o PL 2630, o PL das Fake News, e possíveis iniciativas do Poder Executivo. “Não podemos esperar pelos próximos atos de violência, ódio, e ataques à democracia para tomar atitudes mais contundente”, defendem.

Segundo Carolinne Luck, coordenadora do projeto Brief, o dossiê será apresentado a parlamentares e ministros atuantes no tema das regulações das big techs. O grupo também fez uma carta aberta aos três poderes cobrando a retomada do julgamento do Tema 987 no STF, que trata da responsabilidade de provedores na internet, e a aprovação do PL 2630, o PL das Fake News, no Congresso. 

 

¨      Da internet morta ao mercado de trabalho morto? Por Luis Felipe Miguel

Quase ao mesmo tempo em que expressava seu descompromisso com o combate às mentiras em suas plataformas, Mark Zuckerberg fez outra declaração. Disse que, ainda esse ano, pretende substituir engenheiros de software de nível médio por rotinas de inteligência artificial.

E outro dia ouvi uma entrevista com Bill Gates – aquele que tem uma fundação caritativa e tenta passar para o mundo a imagem de bilionário do bem. Foi perguntado sobre os efeitos da IA no mercado de trabalho (a Microsoft é sócia da OpenIA, responsável pelo ChatGPT).

O entrevistador entregou que Gates sorria enquanto dava sua resposta, uma resposta atravessada pelo cinismo. Em resumo, ele disse que não era problema deles: os políticos é que deviam regular.

Ou seja: as corporações jogam todo seu poder para evitar qualquer regulação. E depois dizem que, se não está regulado, a culpa não é delas.

O que estamos vendo é a chamada IA generativa tomar uma parcela cada vez maior dos empregos. Nas plataformas, vemos cada vez mais robôs interagindo com robôs (a teoria da chamada “internet morta”). Será que, no lugar do mercado de trabalho, teremos máquinas passando tarefas para outras máquinas?

Uma empresa nos Estados Unidos, que na verdade vende um software mixuruca para automação de vendas, faz propaganda com o slogan “não contrate mais humanos”. A imagem que ilustra seu anúncio é um avatar dizendo que não se incomoda com jornadas de trabalho excessivas¹.

A gente imaginava que o avanço da tecnologia podia de fato eliminar a necessidade de trabalho humano em várias áreas. Mas a gente pensava que seríamos libertados do fardo de capinar a grama, varrer as ruas, limpar as latrinas, minerar carvão, coisas assim. E as pessoas, num mundo minimamente bem ordenado, seriam qualificadas para ocupar outras funções.

Que nada. Para esse tipo de trabalho, ainda compensa mais pagar muito pouco para uma mão-de-obra superexplorada. Afinal, sempre tem um imigrante ilegal disposto às piores tarefas, sem nenhum direito e por quase nada.

Em suma, é a redução do postos de trabalho mais qualificados e criativos.

São ilustradores, tradutores, redatores, programadores, roteiristas, jornalistas, compositores. Em breve (quem duvida?), professores, médicos, arquitetos, engenheiros civis.

Sim, a IA ainda nos entrega bizarrices, como as biografias ou fontes bibliográficas inventadas no ChatGPT (e no DeepSeek é igual), a surpresa sempre renovada ao contar o número de dedos nas mãos das pessoas nas imagens, o inesquecível Jesus camarão. Mas não há muita dúvida de que logo esses probleminhas podem ser sanados.

Há uma perda óbvia com a colonização das profissões criativas pela inteligência artificial. É o fato de que ela não tem nenhuma criatividade. Ela é, como disse alguém, uma máquina de plágio.

É verdade que as pessoas se comovem com as fotos fake, seja de criancinhas africanas pobres e sorridentes fazendo monumentos de sucata, seja com os passarinhos nunca encontrados na natureza, com suas cores vibrantes de desenho da Disney. E depois se decepcionam quando descobrem que é tudo falso.

É o apelo do Kitsch. Assim como as pessoas se emocionam com pílulas da autoajuda mais vulgar, desde que, é claro, atribuídas a grandes nomes da literatura como Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade ou Gabriel García Márquez.

Mas o nosso próprio gosto estético se aprimora com o contato com o novo. (Por isso, nunca gostei do sistema de recomendação por afinidade com o conteúdo prévio das plataformas de streaming.) E o novo, para surgir, depende da criatividade humana.

Alguém pode dizer que, de toda maneira, sempre haverá quem se disponha a produzir sua própria arte, a escrever roteiros de cinema autorais e assim por diante. É verdade. Mas sem o mercado de trabalho que os acolha, isso vai se tornar simplesmente o hobby de uns poucos em endinheirados.

Quanto aos outros, aqueles que tirariam seu ganha-pão do mercado de trabalho hoje existente, eles terão que procurar outra coisa para sobreviver — quem sabe capinando a grama ou nas minas de carvão.

Ao mesmo tempo, isso aponta para uma verdadeira distopia: o mundo em que um punhado de multibilionários controla mais riqueza do que é humanamente possível sequer imaginar como gastar, diante de uma massa de despossuídos, que se equilibra no limite da subsistência.

É a profecia que Marx fez sobre o futuro do capitalismo: a polarização cada vez mais gritante entre uma burguesia cada vez mais concentrada e uma classe trabalhadora cada vez mais pauperizada. A profecia foi (até certo ponto) desmentida com desenvolvimento da sociedade de consumo, que exigia a integração de uma classe trabalhadora com algum poder aquisitivo – mas parece espreitar nosso futuro de novo, em sua versão mais radical.

A manutenção de um tal estado de coisas só é possível com a ampliação da repressão aos movimentos resistência e com desmantelamento de qualquer estrutura minimamente democrática que dê voz aos dominados. É por isso que estes superricos se alinham, de forma cada vez mais ostensiva, com a extrema-direita.

 

Fonte: The Intercept/Amanhã não existe ainda

 

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