Tatiana Dias: Toda
vez que alguém duvidar do mal causado pelas big techs, mostre esse dossiê
Hoje o alinhamento das
grandes empresas de tecnologia com Donald Trump – e com a extrema direita
mundial – ficou óbvio. Mas nem sempre foi assim. Um discurso de relações
públicas bem alinhado, um time de lobistas de várias matizes ideológicas e
técnicas sofisticadas para conquistar corações e mentes de políticos,
jornalistas e sociedade civil foram cruciais para, durante anos, blindar essas
grandes corporações de regulação e escrutínio público.
Agora, um dossiê lançado nesta quinta-feira, 6, por três organizações, a Avaaz, o Sleeping Giants Brasil e o
Projeto Brief, documenta e sistematiza as violações das big techs no Brasil e
no mundo nos últimos anos – muito antes de Trump retornar ao poder de braços
dados com os oligarcas do Vale do Silício.
O relatório enumera e
resume toda a podridão que assistimos, consolidando evidências do impacto
destrutivo dessas empresas na política e na sociedade.
Ainda que não seja novidade
– aqui no Intercept, por sinal, nunca descansamos antes de reportar boa parte
desses absurdos –, não deixa de ser assustador ver tudo reunido em um lugar só.
E, mais do que isso, o documento chega em um momento crítico. Só nas últimas
semanas, assistimos Elon Musk implodir o governo dos EUA como se estivesse
gerindo uma startup, Mark Zuckerberg desmontar qualquer iniciativa que proteja as pessoas em suas plataformas e o Google simplesmente voltar atrás da sua
promessa de não usar IA para armas ou vigilância. Eles perderam qualquer freio
ou vergonha.
Que o ecossistema de
recomendação e monetização das big techs fortalecem a extrema direita a gente
já sabia há tempos. Reportamos inúmeras vezes sobre isso só aqui no Intercept
(leia como a Jovem Pan, a extrema direita e a Brasil Paralelo foram beneficiadas) .
Mas o discurso público delas ainda era polido. Agora, perderam a vergonha de
abraçar o caos.
Aqui no Brasil, de certa
forma, já havíamos tido um prenúncio do que viria. As big techs já haviam se
alinhado com a extrema direita, inclusive com táticas sujas de lobby e mentiras,
para engavetar o PL 2630, o PL das Fake News. Ali,
tivemos a real noção da capacidade de influência na política real – e a
consciência de que somos reféns das decisões tomadas por inconsequentes homens
brancos do Vale do Silício.
>>>> A seguir,
confira os pontos-chave trazidos no dossiê.
·
1. Redes sociais detonam a
saúde mental de crianças e adolescentes
Estudos e comunicados de
autoridades de saúde dos EUA, de pesquisadores em todo o mundo e até da própria
Meta mostram que redes sociais – particularmente TikTok, X, Instagram e
Facebook – estão associadas a danos psicológicos e estímulo a comportamentos
nocivos entre crianças e adolescentes. Os documentos vazados no Facebook Papers indicam que pesquisas internas revelaram que o
Instagram piorava pensamentos de suicídio e automutilação em 13,5% das meninas
jovens. Para 17%, a rede social afetava negativamente os transtornos
alimentares. E, para uma a cada três, piorava a autoestima.
Enquanto isso, aqui no
Brasil, já mostramos que as big techs pagam estudos que
minimizam essa realidade.
·
2. A moderação de conteúdo é
ineficiente
A recente decisão de Zuckerberg
de acabar com a moderação de conteúdo foi, também, a forma covarde de a empresa
se livrar de um problema: a moderação sempre foi falha. Já contamos os traumas vividos por uma moderadora, também
mostramos que os sistemas de IA responsáveis por moderar conteúdo, a aposta da
Meta, são treinados por pessoas que ganham centavos por isso, sem nenhum tipo de preparo.
Agora, o dossiê lembra que
a própria Meta admitiu que o sistema é falho, e as regras não eram aplicadas
para todos. Ao mesmo tempo, Google e TikTok, além da própria Meta, lucram com
disseminação de conteúdo falso e extremo – quem lembra dos atos de 8 de janeiro no Brasil, transmitidos
e disseminados ao vivo em canais monetizados?
·
3. Elas não estão nem aí para
a privacidade das pessoas
Qualquer um que já mandou
uma mensagem no WhatsApp e depois viu um anúncio sobre o que conversou no
Instagram sabe do que eu estou falando. Mas fica
ainda pior. Com três curtidas, o Facebook consegue saber se uma pessoa é homossexual, mostrou o estudo. O Google já permitiu que parceiros lessem e-mails privados dos
usuários. Nem dados de crianças estão a salvo.
·
4. Usam táticas sujas para se livrar de regulação
e influenciar a política
Na Europa, a Meta está
sofrendo um processo por abuso de poder econômico relacionado à compra do
WhatsApp. E adivinha o que a empresa fez? Mentiu. Mentiu e tomou uma multa milionária por
isso. Também precisou aceitar um acordo por enganar investidores nos EUA sobre
riscos de uso impróprio de dados. Aqui no Brasil, elas foram mais deselegantes:
estamparam desinformação na capa dos principais jornais do país para travar o PL 2630, atuaram ativamente com
campanha de pânico e usaram muito dinheiro para influenciar o debate público.
Conseguiram.
·
5. As redes sociais conduzem pessoas para o
extremismo
Elas negam, negam e negam.
Dizem que são plataformas neutras, que os algoritmos de recomendação seguem as
preferências dos usuários. Mas vários estudos, inclusive um do próprio Facebook,
mostram que isso é balela. O dossiê cita este, do Counter Extremism Project,
que mostra como o algoritmo do YouTube promove
desinformação, teorias da conspiração e extremismo. O mesmo acontece com Twitter, TikTok e Meta.
Este último, aliás, é
revelador: era um estudo da própria Meta, o que prova que a empresa sabia muito
bem o quanto sua plataforma estava servindo para popularizar teorias conspiratórias.
Ou seja: elas já tinham
esse posicionamento político, mas se preocupavam em disfarçar. Agora, perderam
a vergonha.
·
Entidades querem pressionar
governo, STF e Congresso para regulação
Há mais casos
listados no dossiê, que ainda cita outros estudos mostrando como as plataformas passam pano para bandidos e lucram com desinformação. As
referências também estão disponíveis no site. “Há muito tempo as plataformas
digitais não são espaços neutros”, diz o texto do dossiê. “Os poderes da
República precisam agir com urgência, cada um dentro de suas atribuições, para
enfrentar os desafios que se impõem”, defendem os organizadores, defendendo a
regulação urgente.
Hoje,
no Brasil, há três propostas para regular o tema: o julgamento no STF que
avaliará a responsabilização das plataformas de internet, propostas no Congresso,
particularmente o PL 2630, o PL das Fake News, e possíveis iniciativas do Poder
Executivo. “Não podemos esperar pelos próximos atos de violência, ódio, e
ataques à democracia para tomar atitudes mais contundente”, defendem.
Segundo
Carolinne Luck, coordenadora do projeto Brief, o dossiê será apresentado a
parlamentares e ministros atuantes no tema das regulações das big techs. O
grupo também fez uma carta aberta aos três poderes cobrando a retomada do
julgamento do Tema 987 no STF, que trata da responsabilidade de provedores na
internet, e a aprovação do PL 2630, o PL das Fake News, no Congresso.
¨ Da internet morta ao mercado de
trabalho morto? Por Luis Felipe Miguel
Quase ao mesmo tempo em que expressava seu descompromisso com o combate
às mentiras em suas plataformas, Mark Zuckerberg fez outra declaração. Disse
que, ainda esse ano, pretende substituir engenheiros de software de nível médio
por rotinas de inteligência artificial.
E outro dia ouvi uma entrevista com Bill Gates – aquele que tem uma fundação
caritativa e tenta passar para o mundo a imagem de bilionário do bem. Foi
perguntado sobre os efeitos da IA no mercado de trabalho (a Microsoft é sócia
da OpenIA, responsável pelo ChatGPT).
O entrevistador entregou que Gates sorria enquanto dava sua resposta,
uma resposta atravessada pelo cinismo. Em resumo, ele disse que não era
problema deles: os políticos é que deviam regular.
Ou seja: as corporações jogam todo seu poder para evitar qualquer
regulação. E depois dizem que, se não está regulado, a culpa não é delas.
O que estamos vendo é a chamada IA generativa tomar uma parcela cada vez
maior dos empregos. Nas plataformas, vemos cada vez mais robôs interagindo com
robôs (a teoria da chamada “internet morta”). Será que, no lugar do mercado de
trabalho, teremos máquinas passando tarefas para outras máquinas?
Uma empresa nos Estados Unidos, que na verdade vende um software
mixuruca para automação de vendas, faz propaganda com o slogan “não
contrate mais humanos”. A imagem que ilustra seu anúncio é um avatar dizendo
que não se incomoda com jornadas de trabalho excessivas¹.
A gente imaginava que o avanço da tecnologia podia de fato eliminar a
necessidade de trabalho humano em várias áreas. Mas a gente pensava que
seríamos libertados do fardo de capinar a grama, varrer as ruas, limpar as
latrinas, minerar carvão, coisas assim. E as pessoas, num mundo minimamente bem
ordenado, seriam qualificadas para ocupar outras funções.
Que nada. Para esse tipo de trabalho, ainda compensa mais pagar muito
pouco para uma mão-de-obra superexplorada. Afinal, sempre tem um imigrante
ilegal disposto às piores tarefas, sem nenhum direito e por quase nada.
Em suma, é a redução do postos de trabalho mais qualificados e
criativos.
São ilustradores, tradutores, redatores, programadores, roteiristas,
jornalistas, compositores. Em breve (quem duvida?), professores, médicos,
arquitetos, engenheiros civis.
Sim, a IA ainda nos entrega bizarrices, como as biografias ou fontes
bibliográficas inventadas no ChatGPT (e no DeepSeek é igual), a surpresa sempre
renovada ao contar o número de dedos nas mãos das pessoas nas imagens, o
inesquecível Jesus camarão. Mas não há muita dúvida de que logo esses
probleminhas podem ser sanados.
Há uma perda óbvia com a colonização das profissões criativas pela
inteligência artificial. É o fato de que ela não tem nenhuma criatividade. Ela
é, como disse alguém, uma máquina de plágio.
É verdade que as pessoas se comovem com as fotos fake, seja
de criancinhas africanas pobres e sorridentes fazendo monumentos de sucata,
seja com os passarinhos nunca encontrados na natureza, com suas cores vibrantes
de desenho da Disney. E depois se decepcionam quando descobrem que é tudo
falso.
É o apelo do Kitsch. Assim como as pessoas se emocionam com
pílulas da autoajuda mais vulgar, desde que, é claro, atribuídas a grandes
nomes da literatura como Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade ou
Gabriel García Márquez.
Mas o nosso próprio gosto estético se aprimora com o contato com o novo.
(Por isso, nunca gostei do sistema de recomendação por afinidade com o conteúdo
prévio das plataformas de streaming.) E o novo, para surgir,
depende da criatividade humana.
Alguém pode dizer que, de toda maneira, sempre haverá quem se disponha a
produzir sua própria arte, a escrever roteiros de cinema autorais e assim por
diante. É verdade. Mas sem o mercado de trabalho que os acolha, isso vai se
tornar simplesmente o hobby de uns poucos em endinheirados.
Quanto aos outros, aqueles que tirariam seu ganha-pão do mercado de
trabalho hoje existente, eles terão que procurar outra coisa para sobreviver —
quem sabe capinando a grama ou nas minas de carvão.
Ao mesmo tempo, isso aponta para uma verdadeira distopia: o mundo em que
um punhado de multibilionários controla mais riqueza do que é humanamente possível
sequer imaginar como gastar, diante de uma massa de despossuídos, que se
equilibra no limite da subsistência.
É a profecia que Marx fez sobre o futuro do capitalismo: a polarização
cada vez mais gritante entre uma burguesia cada vez mais concentrada e uma
classe trabalhadora cada vez mais pauperizada. A profecia foi (até certo ponto)
desmentida com desenvolvimento da sociedade de consumo, que exigia a integração
de uma classe trabalhadora com algum poder aquisitivo – mas parece espreitar
nosso futuro de novo, em sua versão mais radical.
A manutenção de um tal estado de coisas só é possível com a ampliação da
repressão aos movimentos resistência e com desmantelamento de qualquer
estrutura minimamente democrática que dê voz aos dominados. É por isso que
estes superricos se alinham, de forma cada vez mais ostensiva, com a
extrema-direita.
Fonte: The
Intercept/Amanhã não existe ainda
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