Governo
Lula deve lançar política nacional para primeira infância. O que podemos
esperar?
Ainda neste mês de
fevereiro, o Brasil deve ganhar sua primeira política nacional voltada
para crianças até os seis anos, fase apontada como crucial para o
desenvolvimento infantil. A expectativa é que a Política Nacional Integrada
para a Primeira Infância (PNIPI) articule União, estados e municípios com ações
em diversas áreas, como educação, saúde, segurança, para fortalecer serviços
essenciais.
Atualmente o Brasil tem 18,1
milhões de crianças na primeira infância, 55,4% delas vivendo entre famílias de
baixa renda e 60% que nunca frequentaram creche ou pré-escola, de acordo com
dados da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal. Há, ao menos, 670 mil
crianças de zero a seis anos em situação de pobreza ou extrema pobreza. A
PNIPI pode ajudar a mudar essa realidade e alavancar a imagem do Brasil
internacionalmente, como nação pioneira a investir na primeira infância dentro
de uma estratégia de combate à fome e à pobreza, segundo a fundação.
Também é esperado que a
PNIPI estabeleça a criação de um sistema de dados integrado sobre a primeira
infância, com um aplicativo que poderá ser usado por pais e cuidadores, algo
inédito no país. Hoje, os dados do desempenho escolar de uma criança não
são integrados com os da carteira de vacinação, por exemplo.
“A criança é única,
mas ela tem, no sistema de saúde, um número, no de educação, um outro, no
CadÚnico, outro, isso não se conversa. O benefício é permitir que um gestor de
educação, por exemplo, entenda se essa criança teve alguma violação de direito,
se a família recebe alguma transferência de renda, algum apoio socioemocional,
porque isso tudo faz parte de uma gestão da criança, dessa família e desse
conjunto que estamos querendo melhorar”, adiantou Mariana Luz, CEO da Fundação
Maria Cecilia Souto Vidigal, que é membro do comitê intersetorial responsável
por orquestrar a formulação da PNIPI e do Conselho de Desenvolvimento Econômico
Social Sustentável, que formulou a proposta da política para o governo
federal.
À Agência
Pública, Luz falou sobre os bastidores e desafios da
articulação para a construir a nova política e sobre suas expectativas para o
lançamento. Uma das questões fundamentais para ela é o financiamento da
primeira infância dentro do Orçamento Federal. No exercício de 2023, um
relatório do Ministério do Planejamento e Orçamento do Governo Federal mostrou
que os gastos com crianças de zero a seis anos foram de R$ 56,1 bilhões. Em
tempos de corte de contas do governo, Luz espera que a PNIPI estabeleça
dispositivos que inibam cortes de gastos com a primeira infância. “Isso é
uma prioridade: que a gente não permita que o orçamento da agenda diminua ano a
ano. E priorizar significa alocar financeiramente”, diz.
<><> Leia os
principais trechos da entrevista.
·
Qual a situação
da primeira infância no Brasil?
A gente tem 18 milhões de
crianças na primeira infância e quase 10 milhões na pobreza, 55% em alguma
situação de pobreza. O Bolsa Família alivia, mas ainda é uma situação que se
traduz em riscos para o desenvolvimento infantil, porque a pobreza é
multidimensional, tem muitas camadas. Quando você tem uma camada que não está
bem atendida, você coloca o desenvolvimento da criança em risco.
A primeira infância é um
período fértil de conexão do cérebro – 90% do cérebro se desenvolve nessa fase
da vida. Para mim, então, a situação da primeira infância no Brasil é um estado
de emergência. A gente deveria falar disso o tempo todo. Se a gente tem
mais de 50% das nossas crianças na pobreza, a gente tem mais da metade das
nossas crianças com algum risco de não se desenvolverem plenamente, que é o que
a ciência mostra.
·
As diretrizes
para a PNIPI foram lançadas por decreto do presidente Lula ainda em junho do ano passado. O que foi feito desde então?
Um ano antes desse decreto,
em agosto de 2023, no primeiro ano do governo Lula, o “Conselhão” [ Conselho de
Desenvolvimento Econômico Social Sustentável, que foi extinto no governo
Bolsonaro] foi restituído. E eles instituíram grupos de trabalho, entre eles o
da primeira infância.
Esse grupo fez, em quase um
ano de trabalho, uma varredura ministerial de tudo o que existia dentro do
orçamento, do PPA [Plano Plurianual], das rubricas, sobre primeira
infância. Olhamos para as agendas orçamentárias e programáticas do Executivo
Federal. Fizemos ainda um apanhado de experiências de implementação de
políticas de primeira infância bem sucedidas no Brasil inteiro e um relatório
com um diagnóstico científico-técnico com argumentos do “porque a primeira
infância”, que é a nossa maior oportunidade de romper com ciclos de pobreza e
combater desigualdades na sua causa raiz.
Então, em junho de 2024, o
presidente Lula lançou o decreto que você citou, onde ele define o que seriam
as diretrizes da PNPI, com base nesse relatório produzido por esse grupo de
trabalho, e também determina a instauração de um comitê nacional intersetorial
de primeira infância com 15 ministérios e quatro assentos da sociedade civil,
onde somos um dos membros. O decreto é de junho, mas só foi instaurado mesmo em
10 de outubro, porque tinha que nomear, aquela coisa de governo. E, a partir
daí, começamos a trabalhar dentro dos prazos estabelecidos no decreto: 60 dias
para fechar o plano de ação e 120 para o desenho da política.
·
Considerando que
estamos no penúltimo ano do governo Lula, esse processo não demorou demais?
Estamos atrasados em relação à primeira infância?
A cada dia que a gente não
lança e começa a implementar essa política a gente está perdendo um dia, e as
crianças estão perdendo parte da primeira infância delas. A primeira
infância são seis anos, essa janela de oportunidade também é uma janela de
risco. Se a gente oferece serviço de qualidade, ela tem oportunidade; quando
isso não é ofertado, a gente tá, no mínimo, preservando desigualdades. Se
a gente quer romper ciclos de pobreza precisamos agir, e agir rápido.
O Marco Legal da Primeira
Infância é de 2016 e ele já previa a política nacional integrada de primeira
infância. Por que não foi feito ainda? Estamos falando de uma coisa que está
prevista em lei. Ninguém fez ainda. O mérito será de quem fizer, eu espero
poder dizer que será este ano, este mês, dentro do governo atual, durante esse
esforço que a gente faz parte. Mas não significa que a gente tá à frente,
estamos atrasados.
A gente celebra, mas com
esse sentido de urgência. Porque não é nem o lançamento da política que é o
mais importante, mas a implementação. É fazer chegar na ponta, na operação da
política pública. O Brasil é bom de fazer políticas públicas, mas não tão
bom de implementá-las.
·
Como é o
orçamento para primeira infância no Brasil?
Sobretudo em momentos de
ajuste fiscal, defender mais orçamento é um desafio. Mas isso é uma
prioridade: que a gente não permita que o orçamento da agenda diminua ano a
ano. E priorizar significa alocar financeiramente. Mas não é um tema
simples justamente porque esses recursos são pulverizados. Tem orçamento para
primeira infância na saúde, nos esportes, na assistência – a gente identificou
em quase 50 programas diferentes nos ministérios.
Penso que a gente evoluiu do
ponto de vista orçamentário, pela maior identificação do recurso nos
ministérios atualmente. Mas ainda defendo que a primeira infância precisa estar
no orçamento. Para a gente garantir a qualidade mas também a austeridade fiscal
é a gente entender o que estamos investindo hoje e não permitir que haja
desinvestimento.
·
Então a Política
Nacional Integrada da Primeira Infância deve ser lançada sem um orçamento
específico?
Provavelmente. Eu estou
sonhando que ela saia estabelecendo que não pode haver desinvestimento.
·
Uma das
propostas da nova política é criar um sistema integrado com uma base de dados
da primeira infância e também um aplicativo que poderá ser consultado por pais
e cuidadores. Como vai funcionar?
Essa é uma das maiores
apostas dessa política. O decreto presidencial tem três grandes
diretrizes. A primeira é ter essa base de dados integrada. Logo no
início do governo foi lançada uma lei que determinava que o CPF deveria ser
usado como o número de identificação para todos os sistemas. Porque estamos num
país que permite que você tenha 27 RGs diferentes. Eu sou carioca e moro em São
Paulo, tenho dois RGs. Você imagina o que é esse problema na potência da
realidade nacional, com 5.571 municípios e 200 e tantos milhões de brasileiros:
deve ser enlouquecedor gerir dados no Brasil.
Então, a gente defende que
essa integração comece pela primeira infância. Essa base vai unificar dados de
quatro eixos: educação, saúde, assistência social e sistema de proteção e
justiça. Por quê? A nossa proposta é de uma política nacional integrada onde
todo mundo trabalhe de uma forma conjunta. A criança é única, mas ela tem, no
sistema de saúde, um número, no de educação um outro, no CadÚnico outro, isso
não se conversa. O benefício é permitir que um gestor de educação, por exemplo,
entenda se essa criança teve alguma violação de direito, se a família recebe
alguma transferência de renda, algum apoio socioemocional, porque isso tudo faz
parte de uma gestão da criança, dessa família e desse conjunto que estamos
querendo melhorar.
Quando a gente diz que a
primeira infância é uma oportunidade, o que os economistas dizem? Heckman [o
economista James Heckman, vencedor do prêmio Nobel] demonstrou que a cada
1 dólar investido até os seis anos de idade – nessas dimensões de segurança
pública, de saúde, de educação, de geração de renda, empregabilidade – há um
retorno de 7 dólares. Porque você conseguiu blindar essa criança e essa
família e retirá-los desse ciclo de pobreza. Mas se um desses elementos está
fora, eles são detratores do processo. Então, por isso é importante esta
intersetorialidade.
E um dos eixos é construir
um aplicativo com essa intersetorialidade de dados, porque hoje a mãe também
não sabe esses dados. Eu falo mãe, porque 73% das famílias na linha de pobreza
são lideradas por mães solo. Os cuidadores hoje não têm esses dados.
·
E no campo da
educação especificamente, o que o PNIPI deve trazer de novo?
Para educação infantil, o
trabalho é muito voltado para garantir creches e pré-escolas de qualidade, e
uma avaliação nacional. Ano passado, o MEC lançou os parâmetros de qualidade de
educação infantil. Agora tem que fazer isso chegar na sala de aula. Isso via uma
articulação entre estados e municípios. Hoje, o Brasil não tem uma
avaliação nacional da qualidade da educação infantil. Tem alguns caminhos,
incluir dentro do próprio Saeb [ Sistema de Avaliação da Educação Básica] e o
outro criar uma nova avaliação. Estamos defendendo que isso entre via Política
Nacional Integrada. Tem todo um debate sobre orçamento também. O que não dá é
ter ajuste fiscal e contingenciamento e tirar dinheiro da educação
infantil.
·
Algum ponto
importante ficou de fora nessa articulação da PNIPI?
Acho que essa questão do
orçamento é difícil emplacar no atual momento do governo. Talvez a gente
consiga emplacar algo para garantir a transparência do orçamento da primeira
infância. O que eu queria emplacar é um impeditivo legal de redução do orçamento
da primeira infância, mas não sei se vou conseguir.
A gente precisa implementar
e avaliar continuamente. A política pública não nasce perfeita. A gente tem
muito a melhorar, o que a gente tem no Brasil é uma oportunidade de fazer isso
acontecer. Meu sonho é que essa nova política seja o novo Bolsa Família,
que a gente possa ter uma expansão e aplicação que gere benefícios palpáveis
para que a população entenda esse benefício e não abra mão. A gente quer
uma política de Estado, que seja perene, não de governo. Mas a gente entende
que a política que tem continuidade no Brasil é aquela que a população se
apropria. E entende que está mudando a vida delas: isso tá me ajudando a marcar
aquele exame na UBS; a entender que a creche é um direito. Eu quero que o
cidadão entenda que quando tem uma violação, tem um caminho protegido pra gente
ajudar aquela família e criança.
Dos 10 milhões [de pessoas]
do CadÚnico, 9,6 milhões estão no Bolsa Família. São 55 milhões de pessoas no
Bolsa, um quarto da população vivendo de transferência de renda. Quando a gente
tiver o PNIPI com o mesmo patamar de prioridade política que o Bolsa, a gente
vai conseguir tirar famílias do Bolsa. Quebrar a pobreza. A transferência de
renda é super importante e venceu muitos preconceitos e paradigmas, mas ele não
resolve a pobreza. O Bolsa Família é uma porta de entrada e, talvez, a
política nacional integrada poderá ser uma porta de saída para vencer a
pobreza.
Fonte: Por
Mariama Correia, da Agencia Pública
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